A Voz das Estrelas - Capítulo 16
“Mais uma noite bonita”, Judith não conseguia deixar de sorrir ao encarar a extensão celestial com poucas nuvens. A Lua acabava de alcançar o ápice de sua fase cheia, encarregada de manifestar um brilho majestoso em meio à escuridão recheada de exíguas esferas cintilantes.
Apesar da leve sonolência, a pequena freira mantinha os olhos castanho-escuro bem abertos. Enquanto acariciava o cabelo curto de Karen, deitada sobre suas pernas, ponderava sobre os próximos objetivos a serem alcançados partindo do amanhecer. Logo ao lado, Sarah também descansava.
“Já fazem dias, talvez mais de uma semana que estamos sem teto. Tivemos sorte que ainda não pegamos chuva”, suspirou profundamente ao lembrar das dificuldades enfrentadas desde a tragédia no orfanato.
Diferente da noite anterior, foram capazes de encontrar um abrigo menos vulnerável. Um pequeno túnel, onde veículos não podiam passar e que tinha baixo fluxo de pessoas, foi o local escolhido pelas freiras. Próximas à uma das saídas, era possível enxergar a extensão parcial da área de poucas residências.
Talvez pudessem permanecer ali por bastante tempo. Seria ótimo caso tivessem sucesso em estabelecer um dormitório improvisado; não era tão confortável, mas dava para o gasto. Pensar nessa possibilidade atrativa, dadas as circunstâncias, arrancava um tênue sorriso da protetora.
De pouco em pouco avançariam rumo a reconstrução.
— Quem dera se a realidade fosse bondosa dessa forma…
Seu murmúrio não pôde ser escutado por ninguém além si mesma. Mesmo motivada com o curso que tomavam ao buscarem a sobrevivência, encontrava-se incapaz de cravar algum cenário favorável acima das expectativas a curto prazo. Se estivesse sozinha, seria provável que pudesse acelerar passos em busca disso.
No entanto cuidar de Sarah e Karen lhe forçava a manter um progresso cauteloso. Ainda mais após o evento onde foram atacadas por delinquentes num beco estreito.
Não queria pensar nas duas como fardo, pois as amava mais do que qualquer pessoa, incluindo aquelas que se foram no incêndio. Embora tal fator fosse inegável, jamais abriria mão delas. Seguiria junta de ambas até o fim…
Quando procurou findar os pensamentos carregados em prol de também descansar, uma sensação esquisita percorreu sua espinha. O arrepio congelante a fez arregalar os olhos assustada, porém não pôde se levantar graças a irmãzinha deitada sobre o colo.
O brilho branco-azulado irradiou do lado esquerdo do pescoço trazendo forte iluminação ao túnel. Com mesma coloração, o efeito se repetiu na panturrilha canhota da irmã ao lado, essa parcialmente bloqueada pela extensão do hábito religioso.
A reação no mínimo curiosa trouxe tensão a Judith. Sarah acordou logo na sequência, como se tivesse experimentado uma leve descarga elétrica pelo corpo. Demonstrando incômodo ao esfregar os olhos cheios de remela, somente pôde abri-los quando a claridade emanada da mais velha se esvaiu.
— Irmã Judith… o que aconteceu? — Sua pergunta soou tão fraca quanto um sussurro.
Antecipando qualquer resposta da protetora, sons de passos curtos ecoaram do lado de fora. O silêncio, interrompido continuamente por tais ruídos, conduzia toda a angústia reunida no clima frio da madrugada até as pequenas irmãs. Foi nesse momento que a íris de diferentes cores de Karen se abriu.
De repente uma sombra surgiu no outro lado do túnel. A respiração das duas mais velhas tornou-se inoperante.
★★★
— Acho que temos todos os preparativos finalizados — murmurou Layla ao ajeitar o coldre do revólver preso à cintura. — Podemos partir até o território do Marcado de Regulus agora.
— Sim… estava esperando por esse momento — Isabella comentou.
Checou a ferida cicatrizada na altura do abdômen e executou alguns saltos em sequência no intuito de verificar as condições da costela trincada. Apesar de sentir uma leve pontada de dor em ambos os locais, não pareciam incômodos suficientes que a levariam a ser atrapalhada durante o combate.
Por outro lado, Norman conferia o braço canhoto sem a tala. Como tinha sido uma fratura não muito grave, já podia movê-lo livre de muitos problemas. Decerto iria o auxiliar durante as inevitáveis batalhas contra os soldados comandados pelo Marcado de Regulus.
Além disso…
“Os treinamentos dos últimos dois dias foram intensos”, encarou a palma aberta conforme relembrava a sequência de acontecimentos precedentes àquela madrugada. A confiança havia crescido graças aos resultados positivos alcançados em tão pouco tempo, contudo o jovem pregava os pés no chão.
Até o instante atual, nada estava definido. Um singelo deslize poderia ser fatal, portanto, a cautela deveria ser mantida do início ao fim do grande conflito.
Norman levantou a cabeça e assentiu para as duas garotas que aguardavam sua resposta.
— Vamos terminar isso de uma vez — murmurou estreitando as sobrancelhas.
Mutuamente decididos, os três partiram em direção a cidade onde o maior inimigo os aguardava.
O horário era o mais propício para executar uma incursão como aquela. Eles já conheciam o poderio adversário, tanto no âmbito dos soldados restantes quanto pelo Áster do próprio comandante. A pior parte seria encontrar uma maneira de ultrapassar a habilidade de manipulação temporal.
A despeito das explicações embasadas com muito esforço pela Marcada de Vega, restava ao trio confiar no limite demonstrado pelo homem após desferir o golpe fatal em Isaac. No entanto até o ápice determinante ser alcançado, existiam pequenas metas a serem cumpridas.
— Primeiramente, iremos nos separar — disse Layla durante o trajeto. — Pelo horário, a ínfima quantidade de pessoas nas ruas vai evitar possíveis vítimas inocentes. Entretanto será muito mais fácil de chamar a atenção dessa forma.
— Entendo! Então poderemos diminuir as chances de sermos encontrados juntos! — Isabella abriu um leve sorriso ao compreender a lógica da companheira.
— Exato. Por isso precisamos fazer o que for possível para que, pelo menos, um de nós consiga alcançar o Marcado de Regulus.
— Não se preocupe com isso… certamente irei alcançar esse desgraçado e o matarei com minhas próprias mãos.
O tom na voz da bestial se alterou num piscar. O rapaz manteve o silêncio, mas foi incapaz de não sentir certo arrepio ao escutar a agressividade enunciada pela Marcada de Betelgeuse.
Era o total oposto daquela menina meiga que encontrou na universidade. Apesar de ter caído numa armadilha, não sentiu algum tipo de esforço dela em prol de aparentar uma personalidade diferente. Entretanto aquelas mudanças drásticas eram qualquer coisa exceto normais.
Se importar com aquilo seria fútil. Ela podia estar aliada a eles durante o novo conflito, porém assim que alcançassem os respectivos objetivos, tudo iria terminar. Nada importava para o garoto além de Layla e Bianca. Seu foco deveria ser mantido somente no caminho que o levaria a salvar aquela criança…
— Nós trocamos nossos contatos. Caso algo aconteça, não hesitem em chamarem por ajuda.
— Como quiser! — Isabella foi a primeira a avançar pelas ruas da cidade deserta.
Utilizando a potência mínima de sua Transformação Bestial, construiu o próprio percurso na busca pelos inimigos declarados.
— Tome cuidado — sussurrou Layla ao parar de correr junto do parceiro.
Após alguns segundos a encarando em silêncio, o jovem escolhido desviou o olhar na direção do asfalto. Diferente das experiências anteriores, aparentava ser tomado por uma sensação quente no peito. A troca de olhares entre os dois estava diferente.
Ainda não podia confirmar o significado daquela estranha comoção, contudo sabia que possuía uma ligação à Marcada de Vega. Embora tentasse a rejeitar no começo da seleção, o garoto passou a experimentar uma aproximação gradativa para com ela. Após a discussão recente, esses sentimentos tornavam-se cada vez mais intensos.
— Você também…
A resposta dele soou tão sussurrada quanto a dela, porém a garota foi capaz de receber sua preocupação. A marcada projetou um fraco sorriso antes de dar meia volta junto ao companheiro, cada um direcionado a seu respectivo trajeto.
“Estou indo, Bianca”, Norman cerrou os punhos conforme avançava pelo quarteirão vazio. Seus olhos verdes varriam toda a área, os passos rápidos ecoavam no espaço frio.
Seria a primeira vez que poderia resolver a situação por conta própria. Até o presente instante tinha sido defendido ou auxiliado por Layla, tudo graças a sua ingenuidade somada à ausência de atitudes causada pela mente afetada desde o acidente.
Além de não desejar perder a vida naquele conflito que desprezava a realidade, foi conduzido a tomar uma decisão importante em prol de seguir adiante. Utilizando as palavras ditas pela parceira, escolheu avançar no intuito de não fazer tudo pelo que passou ser em vão.
Prosseguiu até alcançar um pequeno parque. Percebeu a possibilidade de cortar caminho até o quarteirão onde o confronto contra Levi e seus soldados ocorreu.
Com todo cuidado, seguiu a trilha asfaltada entre o solo relvado. Nenhum inimigo foi avistado até então, portanto ocorreu de sentir-se confiante em chegar no local combinado sem muitos problemas.
“Isabella disse que ele ficava em uma mansão”, ponderou durante a tranquila travessia da área verde. “E imaginar que estava tão próximo”, estalou a língua na sequência.
Embora não saísse muito de casa, Norman conhecia relativamente bem a área na qual morava. Se existia alguma mansão naquela região, sabia com exatidão onde deveria ir.
No entanto quando estava prestes a contornar a rua principal após sair do parque, uma conhecida sensação desconfortável percorreu seu corpo. Mesmo tendo a marca da Constelação da Águia sobreposta por uma faixa branca na testa — além de alguns dos fios de cabelo, sabia que essa estava a reagir num brilho intenso. Precisou levar a palma esquerda até o local em prol de evitar qualquer escape da luz quente.
Algum marcado encontrava-se nas proximidades.
Preparado para utilizar seu Áster a qualquer momento, o garoto decidiu proceder a passos curtos. O cintilar da própria marca permaneceu por mais tempo do que o habitual. Todavia a maior preocupação passava pela identidade das pessoas reconhecidas ali.
Afinal, sabia que não se tratava de Levi, Bianca ou das duas companheiras. Ainda que fosse orientado pela maré da seleção na grande maioria dos acontecimentos, ao menos dispunha da capacidade de compreender certos mecanismos por conta.
Por exemplo, a repetição do brilho de alerta dos símbolos não tinha se repetido durante encontros secundários. Tanto no conflito do hospital quanto na universidade, o fulgor capaz de reconhecer os Marcados de Polaris e de Betelgeuse ocorreu apenas uma vez.
E ainda podia ser inserido o encontro no beco, com o grande inimigo atual e a criança que desejava salvar. No momento que os reencontrou no evento da morte de Isaac, a reação também não ocorreu. Ao considerar esses pequenos detalhes, logo…
“Novos marcados… era a pior hora”, rangeu os dentes nervoso ao considerar os prováveis inimigos inéditos a serem combatidos antes do Marcado de Regulus.
O jovem levou a mão direita ao bolso do casaco e dali puxou o celular. Se escondeu atrás de um carro estacionado em prol de não chamar atenção ao ativar o cintilar da tela. No intuito de comunicar Layla ou Isabella, acabou por encontrar uma mensagem de Helen, sua amiga sobrevivente da matança na universidade.
Pela notificação pop-up, pôde ler uma das cinco mensagens enviadas pelo aplicativo de conversas onde a destacada dizia: estou me recuperando, quero te ver de novo.
Sem tempo para a responder, apenas apertou o aparelho eletrônico com força antes de desligá-lo. O devolveu ao bolso da calça dessa vez, a decisão de acessar as companheiras foi embora. Sem medo, seguiu o caminho até encontrar uma grande viela decrescente…
Ali residia um pequeno túnel.
De dentro dessa passagem, um clarão intenso era irradiado.
Norman engoliu em seco e apertou os punhos a fim de decidir avançar, através de passadas curtas na direção da entrada circular. A cada passo a tensão aumentava, o silêncio absoluto lhe permitia escutar os próprios batimentos cardíacos acelerados.
Ao chegar no acesso ao túnel, observou a fonte da luz. Era tão forte que dificultava sua identificação, no entanto essa acabou perdendo força segundos depois. Quando foi capaz de discernir alguns detalhes na escuridão, enxergou três pessoas trajadas em hábitos religiosos sem qualquer reação.
“Crianças?”, questionou-se em silêncio conforme encarava as expressões amedrontadas das meninas, próximas a outra extremidade da passagem coberta. “Elas também são Marcadas? Todas as três?”, o jovem se via incapaz de tomar alguma decisão.
Ele estava preparado para confrontar quem fosse o novo inimigo, mas não esperava aquela recepção. As três meninas encontravam-se estremecidas, o semblante de duas delas demonstrava pura aflição. O da maior, numa posição defensora diante dessas, parecia buscar a superação do temor criado pelo encontro com um desconhecido ameaçador.
— Saia daqui! — essa gritou conforme abria a mão esquerda.
Norman não encontrou palavras para dialogar com a menina em posição amedrontada. Observar o quanto a garotinha no colo da mais velha se apertava contra o corpo dela o fez desistir de qualquer ação ofensiva.
Ele sabia que, caso não as derrotasse ali, poderia criar problemas futuros. Não só para ele. Mesmo assim, encontrava-se incapaz de atacar aquelas crianças indefesas sem ao menos conversar. Afinal, a face delas demonstrava a mesma confusão que tinha passado ao ser selecionado para tal evento.
Levantou as duas mãos em sinal de cordialidade. Buscou se aproximar com alguns passos leves, porém as pequenas não aparentavam estar a fim de aceitar suas ações. Ainda assim, manteve as palmas à mostra para demonstrar a ausência de vontade em atacá-las.
— Eu não quero fazer mal a vocês — mussitou com cuidado, tentava escolher bem as palavras antes de prosseguir. — Devem estar perdidas. Podemos conversar e…
— Não queremos conversar! Você é um deles!? Não se aproxime!
Perante os gritos enfurecidos da mais velha, que se levantou bruscamente do chão e recuou passos apressados com as outras irmãs, Norman resolveu acatar as ordens.
“O que eu faço? Mesmo sem demonstrar hostilidade, elas estão eufóricas demais”, interrompeu o avanço sem abaixar os braços. Quando as três voltaram até saírem do túnel, a luz do exterior lhe permitiu observá-las com maior exatidão.
Seus olhos se arregalaram no átimo de um detalhe que pôde ser visto em questão de segundos. Flashes de memórias velozes remeteram ao dia no qual visitou a moradia queimada junto de Layla e Isabella.
A mesma cruz dourada encontrada sob os escombros era utilizada pelas três, num colar que caía até a altura do peito. Não demorou muito até o garoto interligar as informações, mas era tarde demais.
Antes de poder tomar alguma atitude, um objeto arredondado quicou ao seu lado sem permitir qualquer reação. Quando percebeu ser uma granada com o pino já puxado, ergueu as sobrancelhas até o limite e tentou gritar. Antecipando sua voz, a explosão engoliu todos junto com o túnel.
Apesar de ter sido atingido, Norman teve sucesso em evitar o pior graças ao próprio Áster. Impediu que os escombros o atingissem, assim os ferimentos causados pela detonação em si não foram piores. No máximo foi lançado para trás graças à onda de choque, apesar de manter-se ativo.
Quanto as pequenas freiras, não pôde identificá-las entre a densa cortina de fumaça. Levantou-se com certo esforço por conta das dores causadas pelo impacto. Na posição atual, já imaginava a causa daquele ataque surpresa.
A resposta não demorou a ser revelada. Passos amontoados cercaram as duas saídas da extensa viela, uma dupla de soldados de preto se posicionou em cada passagem.
— Então vocês vieram primeiro — Norman resmungou após erguer a postura. — Desgraçados…
Preparou a concentração em prol de ativar o Áster da Telecinesia. A confiança não havia sido abalada, contudo um sentimento enraivecido subiu à cabeça.
A vontade de esmagar os inimigos cresceu como nunca antes…