A Voz das Estrelas - Capítulo 17
Pego de surpresa pelo ataque explosivo, Norman foi cercado por quatro soldados enviados do Marcado de Regulus. Suportou as fracas dores por todo o corpo e voltou a se levantar, pronto para abater todos os inimigos que apontavam as metralhadoras em sua direção.
Entretanto um movimento estranho ocorreu abaixo dos escombros do túnel. O acúmulo de destroços acima levitou de repente, permitindo às pequenas freiras retomarem a postura segura. Nenhum dos soldados compreendeu aquela anomalia, portanto encontraram-se incapazes de responder apropriadamente.
Por outro lado, ver as três meninas ressurgindo somente com sujeira nas vestes e leves arranhões lavou parte da emoção agressiva que percorria o Marcado de Altair.
— Isso dói… quem são esses caras? — Judith tirava a poeira do cabelo. — Por acaso… são seus aliados!?
— Jamais.
Mesmo com a resposta sincera do rapaz, a irmã escolheu o afastamento. Considerou todos naquele local como inimigos, portanto adotou uma posição cautelosa antes de tomar alguma decisão.
De qualquer forma, a situação apresentava-se desvantajosa para ambos os lados. A garota dispunha do poder de criar quaisquer objetos desde que os conhecesse, mas não fazia ideia se haveria capacidade de originar alguma arma voltada a combate. Além disso, nem a certeza sobre conseguir manejá-la existia.
Conforme o dilema tomava conta da mente da freira, os comandados do Marcado de Regulus prepararam as metralhadoras. Escutar o destravar das armas de fogo trouxe calafrios intensos às meninas, mas o jovem ao lado já planejava agir antes que os disparos fossem executados.
“São muitos tiros em sequência, não sei se vou conseguir!”, o nervosismo lhe preencheu a mente. Estabeleceu uma rota de ação definitiva, todavia não fazia ideia se teria sucesso em dar conta de tantas linhas de disparo simultâneas.
Nenhum dos homens posicionados puxou o gatilho. Segundos de silêncio passaram e nada ocorreu. Os olhos de Norman deixaram a tensão esvair e foram tomados pela dubiedade ao encarar a dupla de soldados paralisada em sua retaguarda.
Questionando-se sobre o átimo de indecisão, passos fracos reverberaram em sobreposição à quietude repentina.
— Karen? — Sarah murmurou num tom de aflição.
A mais nova avançou alguns passos de cabeça baixa. Em seguida, a levantou de maneira a destacar seus olhos com heterocromia arregalados.
Num primeiro instante, o Marcado de Altair reagiu boquiaberto ao encarar as respectivas cores azul-claro e verde-escuro em cada íris da menina, mas o arrepio que veio em seguida o fez congelar de medo. Para sua infelicidade, tratava-se de uma sensação familiar.
“Ela também…?”, reconheceu o brilho característico, irradiado do quadril direito, sendo ofuscado pelo hábito escuro. Aflito, imaginou a forma na qual o Áster dela se revelaria.
Contudo apenas os soldados sucumbiram ao chão. A garotinha findou o avanço ao ficar frente a frente com Norman, mas seu foco não estava direcionado a ele.
— Quem tenta ferir minhas irmãs… não vou perdoar!
A voz sombria da menina ecoou pelo espaço, como se fosse o estopim para que os agressores começassem a gritar desesperados. Sem entender nada, Norman encarou a situação dos inimigos até esbravejarem súplicas por ajuda e pedidos de desculpas efusivos.
De qualquer forma, uma seguidora da fé falar daquele jeito chegava a soar um pouco assustador. Nem mesmo Judith ou Sarah foram poupadas do espanto causado pela forte declaração de Karen, mas o cenário atual sobrepunha quaisquer crenças ou princípios. Primeiro elas precisavam deixar aquela área perigosa.
A mais velha aproveitou o baque geral para puxar a garotinha à frente do marcado inerte e correr. Ele demorou a responder ao passo que as três fugiam pela passagem oposta da viela, ultrapassando a outra dupla de soldados, também de joelhos no chão em puro sofrimento.
Pensou em ir atrás delas, porém não deveria perder o foco no objetivo principal, responsável por levá-lo até aquele lugar. Cerrou os punhos na tentativa de controlar o turbilhão de emoções que subia o corpo. De repente, sons de tiros vindos de longe alcançaram seus ouvidos.
“Elas foram encontradas também?”, semicerrou os olhos, irritado. “Quantos desses malditos esse cara deve ter?”, rangeu os dentes e voltou a correr em direção ao destino.
★★★
O mesmo questionamento era feito por Isabella, conforme desviava das balas disparadas por três soldados escondidos atrás de árvores espalhadas pelas calçadas. Embora dificultassem as ações da Marcada de Betelgeuse, os agressores não tinham sucesso em atingi-la.
No fim das contas, sempre prevalecia a agilidade monstruosa da garota que utilizava seu Transformismo Animal para abatê-los quando a mais ínfima brecha surgia. Apesar da irritação provocada por essa insistência, pôde-se notar uma boa diferença na quantidade de enviados em prol do novo confronto.
A jovem de óculos procurou não se importar muito com tais detalhes. Após se livrar do trio irritante, checou a ferida recém-cicatrizada na altura do abdômen. Sofria com leves dores, mas nada que pudesse atrapalhar seu progresso.
Diferente dela, Layla dava atenção redobrada à redução das forças comandadas pelo Marcado de Regulus. O maior prejuízo ocorreu no ataque a universidade, mas o confronto do dia seguinte também causou uma diminuição considerável da quantia de soldados no geral.
E, apesar desses dois conflitos, o inimigo ainda dispunha de um número favorável de aliados.
— A outra deve estar escondida por aqui! Procurem por ela com cuidado!
Um dos homens trajados no uniforme escuro e o capacete protetor ordenava o pequeno grupo de cinco pessoas na busca pela garota.
Escondida no galho de uma árvore, a jovem de cabelo branco observava os caminhos cautelosos adotados pelos adversários.
“É impressionante que ainda tenha mais deles”, ponderou em silêncio ao passo que alternava o foco para a mansão a alguns quarteirões de distância, possível de ser vista daquela altura. “Talvez estejamos lidando com algo maior do que apenas um marcado?”, pressionou os dedos contra o tronco onde se apoiava.
A outra mão repousava acima do revólver no coldre.
Estreitou as vistas até os solados novamente. Daquela localização seria difícil conseguir algum resultado, além de que a traria dificuldades para se defender. Feitas as observações, desistiu de sacar a arma de fogo e optou por puxar a faca no outro lado da cintura.
★★★
Levi testemunhava toda a sequência de pequenos confrontos pelas telas do salão principal. Já recuperado dos efeitos colaterais provocados pela utilização assídua do próprio Áster, o homem procurado por todos os marcados em combate sorria.
— Vocês já estão em meu território — murmurou num tom de voz deleitoso ao estreitar o olho canhoto. — De fato, colocar todas essas câmeras se provou um fator muito positivo. Elas irão reparar os demais homens que perdi durante esses dias.
“E então…”, concluiu em pensamento ao olhar de canto até Bianca, sentada no grande sofá paralelo. Seu rosto pálido mostrava-se enrubescido, parecia transpirar mais do que o natural enquanto respirava arfante.
— Era isso que você queria ao rejeitar todos os meus cuidados? — O homem desfez o sorriso. — Ficar doente não vai te livrar do trabalho. Não adianta tentar seguir os mesmos passos de sua mãe…
As palavras frias do Marcado de Regulus trouxeram um arrepio indescritível à criança, que levou as mãos trêmulas a abraçarem os próprios braços. De olhos fechados a fim de não trocar olhares com ele, se esforçou em prol de não derramar lágrimas.
— Não deixarei você morrer. Afinal, eu prometi que ia cuidar de você, certo? — Levi tentou acariciar a cabeça dela, porém a menina se esquivou. — Não que eu me importe muito. Ao menos até alcançar meu objetivo, garanto que lhe manterei viva. Após isso… pode morrer da forma que quiser.
“Para isso, irei matar todos que ousarem entrar em meu caminho”, voltou a dar atenção às imagens monitoradas pelas câmeras espalhadas pelos quarteirões onde as batalhas ocorriam. Mesmo tendo menos soldados à disposição, exalava a confiança de quem obteria a vitória sem dificuldades.
— Mamãe… — Bianca sussurrou conforme contraía todo o corpo.
Suando frio da testa ao torso, mal conseguia controlar a respiração à medida que a vermelhidão no rosto crescia aos poucos.
Em silêncio, não deixava de suplicar por ajuda.
★★★
— Vamos, continuem correndo! — Judith gritou enquanto conduzia suas duas companheiras pela rua deserta.
Sarah e Karen encontravam dificuldades para acompanharem o ritmo da irmã mais velha, contudo conseguiram chegar no local designado após alguns segundos de diferença. Ofegantes por conta da maratona, se esconderam atrás de uma das casas nos arredores.
— Estão todas bem? — A mais velha voltou a perguntar.
— Sim… — A primeira a responder foi Sarah. — Foi por pouco…
— Me desculpem… irmã Judith… irmã Sarah…
Carregando remorso na voz, Karen murmurou para as duas irmãs enquanto segurava a cruz na altura do peito.
— Não precisa se desculpar, Karen… — Judith a abraçou e fez carinho em sua cabeça. — Você nos salvou mais uma vez.
Apesar do afago da irmã mais velha, a criança permaneceu cabisbaixa. Ela tremia amedrontada nos braços da garota, aos poucos conseguia retomar o controle das intensas emoções.
Aliviada pela segurança das duas, a protetora voltou a raciocinar com mais calma. A sequência repentina de acontecimentos alterou todas as metas traçadas durante o momento de serenidade.
— Essa batalha está acontecendo entre pessoas iguais a nós? — Sarah indagou angustiada.
“Seleção Estelar”, ponderou Judith. “Recebemos poucas informações sobre isso quando ganhamos esses poderes estranhos. Mas…”, engoliu em seco ao cogitar uma decisão arriscada em consideração ao cenário atual.
— Podemos aproveitar… — Seu sussurro saiu um pouco trêmulo. — Se derrotarmos os inimigos que também têm poderes, ficaremos mais próximas de reencontrarmos nossas irmãs!…
— Como… assim? — A de tranças gêmeas arregalou os olhos.
— Se vencermos essa seleção, encontraremos nossas irmãs de novo! Não é isso que queremos!?
Karen fitou o semblante desesperado da irmã mais velha e não conseguiu dizer uma palavra em retorno. Decerto, reencontrar as freiras mortas durante o incêndio do orfanato era o maior sonho delas, mas havia a ciência de que isso significava uma quase utopia.
— Isso tudo, com certeza, é obra de nosso Senhor! — A garota abriu os braços ao prosseguir. — Estou certa de que Ele está nos guiando a esse caminho. Essa é a provação para demonstrar toda nossa devoção para com Ele!
— Irmã Judith…
— Devemos seguir em frente! Se fomos escolhidas para isso é porque Ele nos deu um propósito maior!
As duas crianças reagiram espantadas, sem palavras perante o despejo de emoções repentino orquestrado pela líder. Ela chegava a ficar sem ar graças a forma na qual declamava às irmãs, uma prova de que devia estar guardando tudo isso há bastante tempo.
Percebendo o próprio extravaso, acuou o ímpeto corpóreo e contraiu o semblante entusiasmado. Abaixou o olhar como se desejasse pedir desculpas pela forma na qual expressou os sentimentos presos até então. No entanto não era necessário executar tal apelo.
— Nós vamos — respondeu Sarah, o olhar da irmã mais velha foi chamado de volta. — Óbvio que desejamos encontrar nossas irmãs. Se tem alguma possibilidade de conseguirmos, então devemos tentar.
— Eu também quero…
Com o retorno positivo das duas garotas, Judith voltou a projetar um sorriso gentil no rosto. Tendo os ânimos acalmados, entraram num acordo necessário para prosseguirem juntas.
Mesmo assim, ainda lhes carecia muita informação sobre o evento místico. O único conhecimento em mãos as orientava ao ocorrido de mais cedo, onde foram encontradas por um garoto que aparentava usufruir da mesma condição delas, em seguida sendo atacados por soldados misteriosos.
Proliferava-se o som de tiros e explosões não tão distantes, porém outros detalhes necessitavam de definições mais claras. Precisavam de um norte a seguir, algum caminho certeiro capaz de levá-las a alguma resposta.
Como se o destino agisse em favor delas, uma garota foi avistada correndo pela rua em altíssima velocidade. Por um breve instante, a protetora foi capaz de enxergar o fraco brilho avermelhado irradiar de uma das mãos dela. Não fazia ideia sobre esquema de cores ou algo relacionado, mas provavelmente tratava-se de mais uma.
— Vamos seguir aquela menina! — Apontou à pessoa que tinha acabado de virar a esquina. — Podemos descobrir mais sobre tudo que está acontecendo se irmos atrás dela!
Sarah e Karen trocaram olhares e assentiram positivamente. Talvez não se equiparassem a agilidade da jovem misteriosa, entretanto podia ser uma oportunidade única para as marcadas órfãs.
★★★
“Aqui está…”, Norman observou a entrada da mansão onde encontravam-se alguns soldados prontos para defenderem qualquer ataque. O garoto parou atrás de um carro estacionado no outro lado da rua, portanto todo cuidado era pouco.
Verificou os caminhos disponíveis nos arredores. Caso optasse por um confronto direto, precisaria ser rápido nas atitudes defensivas e ofensivas. No entanto tal abordagem configurava um nível de perigo desnecessário, o obrigando a procurar por alguma saída menos arriscada.
Quando encontrou a nova alternativa, semicerrou os olhos resoluto. Respirou fundo e buscou concentrar-se, a palma da mão dominante aberta recebeu toda a energia quente e foi direcionada ao poste mais próximo. Forçou os dedos na medida que franziu as sobrancelhas.
Um ruído estranho se espalhou pelo local, porém nenhum dos guardas desconfiou de algo. Mantiveram as posições naturais à frente do portão principal até que novos barulhos chicoteados surgiram. Assim que os homens resolveram dar atenção às anomalias, era tarde demais…
A coluna de energia metálica tombou contra eles sem oferecer-lhes qualquer possibilidade de reação. Ao tocar o solo, o transformador explodiu. O Marcado de Altair aguardou por alguns segundos, tanto a fim de recuperar o fôlego quanto para verificar se outros inimigos iriam aparecer.
Nada ocorreu.
“Usar em longa distância ainda é uma droga”, resmungou consigo mesmo, a mão utilizada para direcionar seu Áster apresentava leves tremulações. Ignorou o efeito colateral causado pelo esforço e avançou até a entrada da mansão.
Não achou que seria tão fácil invadir o local. Talvez fosse resultado da redução drástica de soldados, soma dos últimos conflitos, porém isso pouco importava. O foco do rapaz resumia-se ao encontro derradeiro com o Marcado de Regulus.
Abriu a porta e adentrou o primeiro saguão. Não era tão extenso quando imaginava, também estava vazio. Notou alguns quadros que portavam pinturas renascentistas espalhados pelas paredes até chegar a uma nova passagem logo adiante.
Repetiu o processo ao abrir a segunda entrada. No momento que o cenário estreito foi avistado, suas vistas se arregalaram. Uma nova resposta para a ausência de soldados mobilizados após a explosão do transformador era revelada — diversos deles foram abatidos há tempo.
Norman se aproximou com cautela do corpo mais próximo. O ferimento fatal situava-se no pescoço, fora lacerado tão profundamente que quase se desprendia do resto do torso. A poça de sangue logo abaixo era apenas uma dentre várias espalhadas pelo trajeto.
“Como ela entrou antes?”, apesar do questionamento, o verdadeiro problema residia na invasão silenciosa capaz de passar até mesmo pelos guardas frontais. No entanto a explicação logo foi atingida quando fios de terra caíram sobre alguns escombros.
O Marcado de Altair olhou para o alto e constatou o enorme buraco destruído no teto. Engoliu em seco ao imaginar a sequência de acontecimentos sucedida naquele recinto. Só existia uma opção que indicava a responsável por ter feito tudo aquilo…
★★★
— Não diria que não esperava a chegada deles, afinal estou com poucos homens… agora a situação ficou ainda mais apertada. — Levi falava sem muita preocupação, apesar de considerar a gravidade do quadro. — Agora vem a melhor parte…
Virou o rosto até Bianca, as condições dela pareciam piorar a cada minuto. Ela sequer conseguia respirar sem ser pela boca, os olhos verdes mostravam-se pesados a cada piscada lenta. O suor frio já tinha preenchido sua blusa branca, a vermelhidão no rosto ganhou força.
Ignorando a situação na qual a criança se encontrava, o homem puxou o braço dela. Notando a ausência de força em seu corpo, semicerrou o olho acinzentado e decidiu levar o dorso da outra mão até sua testa.
“Está pegando fogo”, arregalou as sobrancelhas em espanto.
Pensar no quanto aquele momento era o pior para a menina ficar doente trouxe uma energia odiosa ao marcado. Ele apertou os punhos com tanta força que só restava partir os ossos. Não havia tempo a perder, deveria utilizá-la mesmo naquele estado.
Sem pestanejar, a puxou do sofá agressivamente. A menina conseguiu manter-se de pé e, conforme era conduzida pelo indivíduo enraivecido, caminhou quase sucumbindo de febre. Os dois deixaram o cômodo das transmissões rumo ao labirinto.
Levaram poucos segundos até completarem a travessia do conjunto de corredores, o último salão da mansão foi alcançado. Esse possuía extensão encíclica significativa, a iluminação principal vinha do grande lustre no teto central. Ao entrar, mirou a porta localizada a alguns metros, na outra extremidade do recinto…
“Se essa menina continuar assim, não será nada fácil”, pensava numa forma de amenizar a condição adoentada de Bianca em benefício próprio, mas já era tarde para tentar algo.
Antes de alcançar o lado oposto, um ruído impactante estremeceu o salão. Levi cessou o avanço e encarou por cima do ombro. Embora debilitada, a pequena também virou o rosto na direção da passagem principal, destruída sob uma fina camada de fumaça.
Dois soldados revelaram-se caídos sobre escombros arrancados das paredes, até então conectadas às portas derrubadas. Imóveis conforme sangue era derramado dos cortes profundos no pescoço, foram pisoteados na altura do tórax pela garota de garras e dentes afiados.
— Te achei, seu desgraçado!
Isabella sorriu ao encontrar quem tanto procurava, o homem que matou seu irmão gêmeo há dois dias. Detrás dos óculos trincados, suas pupilas verticais pareciam irradiar um brilho tão intenso quanto o símbolo avermelhado de Órion na palma da mão destra.