A Voz das Estrelas - Capítulo 15
Observando a lua cheia rodeada de nuvens e estrelas, Norman ponderava sobre tudo que aconteceu até o presente momento. Nada havia corrido como o esperado, sua vida foi posta em risco mais de uma vez e, na soma dos resultados, a sensação de vitória passou bem longe das mãos.
Restava apenas o amargor por não ter sido capaz de traçar um caminho diferente. A leve ansiedade o fazia encarar a tela de seu smartphone prestes a desligar sem bateria, na espera de alguma notícia sobre a única sobrevivente entre o grupo de amigos da universidade.
Já tinha se passados mais de um dia do ocorrido e não recebeu qualquer mensagem ou ligação. Àquela altura, retinha poucas esperanças de que ela entraria em contato. Sua vontade era buscar a comunicação por conta, contudo não fazia ideia se poderia ser algo bom visto o processo recente de trauma dela.
Considerando todos os fatores, resumiu-se a exalar um fraco suspiro enquanto apagava a tela do aparelho. O devolveu ao bolso do casaco encardido e voltou a encarar o céu.
— Como você está?
A voz suave de Layla alcançou seus ouvidos e o fez espiar por cima do ombro. Norman não carregava muito contentamento no semblante e, ao invés de responder à pergunta, proferiu outra:
— Cadê aquela Isabella?
Apesar da rusticidade no tom de voz do companheiro, a jovem manteve uma expressão serena ao se sentar num tronco de árvore, partido próximo às raízes.
— Pedi para que averiguasse o perímetro. Não acho que o Marcado de Regulus tenha disposição de enviar soldados aqui, porém é sempre bom prevenir.
— Você realmente confia nela?
— Não diria que confio, pelo menos não como contigo. — A resposta sorridente dela tirou uma olhadela de canto do garoto. — De qualquer forma, ela perdeu a mãe, foi escolhida e perdeu o irmão gêmeo. Senti que estava realmente decidida a nos ajudar, desde que possa derrotar o Marcado de Regulus.
Norman não pôde retrucar as palavras da aliada, embora guardasse óbvias ressalvas sobre a união com a Marcada de Betelgeuse. Ainda estava irritado por ter sido enganado da forma que foi no evento da universidade. De toda maneira, ao menos reconhecia a própria inépcia, responsável por levá-lo a tais circunstâncias…
No mínimo serviu como uma ótima experiência, então visava não a repetir no futuro. De qualquer forma, a jovem escolhida não deixava de ser uma ameaça em potencial na qual eles deveriam pregar cautela. Ao menos imaginava que Layla já estivesse ciente disso por ser sempre tão íntegra, ainda mais quando se tratava da seleção.
— Aliás, queria te explicar um outro detalhe importante sobre nossas habilidades. — A garota retirou uma pequena pedra verde da calça. — Esse aqui é um Fragmento de Urano. Marcados podem utilizá-lo para elevar o nível dos Áster exponencialmente, assim os permitindo superar qualquer limite por um determinado período de tempo.
Interessado no objeto semelhante a uma joia esmeralda, o garoto a segurou na palma da mão direita. O brilho natural da peça de padrão tridimensional fazia uma marca de estrela ganhar destaque no centro.
— Então se eu usar isso, poderei elevar meus poderes de Telecinesia…
— Porém é uma faca de dois gumes. — Layla ergueu o indicador ao explicar. — Caso extrapole além do possível, pode causar danos severos ao corpo. E mesmo que o utilize controlando bem o poder, ainda será afligido por alguns efeitos colaterais no processo de recuperação. Por isso deve escolher muito bem o momento de utilizá-lo…
— Está me dando esse? — Mostrou a ela o artefato.
— Pode ficar com ele. Tenho mais um guardado e, além disso… — Fez uma pausa rápida e em seguida esboçou um sorriso.
“Odeio quando você faz esses mistérios”, o garoto desviou o olhar e guardou com cuidado o cristal esverdeado no bolso, junto ao celular.
Ainda que conhecesse um pouco da personalidade fechada do companheiro, assim como o olhar mal-encarado de sempre, a Marcada de Vega demonstrou preocupação quanto o estado mental deturpado dele.
Como se lesse a mente da jovem, o próprio murmurou:
— Tudo isso valeu a pena mesmo? — A indagação arrancou uma reação levemente surpresa da alva. — Continuamos vivos, mas muitas vidas inocentes foram tiradas. E tudo por nossa culpa…
— Então é por isso que deseja tanto salvar aquela marcada? Para sentir exasperação após tudo que passou?
Por algum motivo, a rebatida severa de Layla tocou a ferida do rapaz. Por meio de um olhar cortante, rangeu os dentes com força.
Tão rápido e simples, ela conseguiu acender o pavio de suas emoções congestionadas próximas de explodirem.
— Eu não pedi pra participar disso. Nem mesmo me importo em me tornar Rei ou sei lá o quê! — rugiu ao permitir o escape dos sentimentos flamejantes.
— Mas você foi escolhido. Isso é um fato inegável.
A frieza intransponível nas palavras dela causou calafrios à espinha do jovem. Mesmo assim, dessa vez, ele decidiu não se acuar perante a Marcada de Vega.
— Minha família morreu em um acidente… meus amigos foram assassinados a sangue frio ontem… e você acha que quero salvar a Bianca só pra sentir exasperação? — Norman ergueu o rosto com ódio, tentava se segurar ao cerrar os punhos. — Que tipo de pessoa você é, Layla? Fica escondendo as coisas como se estivesse certa o tempo todo, ignora todas as consequências só pra alcançar algum objetivo. Você quer tanto assim ganhar essa seleção idiota?
Dessa vez, foi o Marcado de Altair que tocou a ferida, até então bem escondida pela garota. Pela primeira vez ela pareceu se desfazer de toda a frieza ao redor para erguer as sobrancelhas espantada. Os olhos azul-escuros, sempre firmes, estremeceram.
— Eu também perdi muito! Você não faz ideia!
Quando ela ergueu o rosto contorcido ao responder em voz alta, o companheiro levou um susto capaz de fazê-lo recuar dois passos inconscientemente.
— Precisamos ser fortes para superar as adversidades… se não pudermos seguir em frente, então tudo pelo que passamos valerá de nada!
Conforme era desafiado pelas palavras carregadas da garota, Norman sentiu o coração gelar. Buscou nas memórias por algum momento onde havia demonstrado uma reação tão efusiva, entretanto não teve sucesso em encontrar algo sequer próximo daquilo.
Engoliu em seco sem ter o que responder, porém o silêncio logo se estabeleceu na área deserta. Layla enfim percebeu a própria explosão e, com isso, foi tomada pelo constrangimento a ponto de desviar o rosto para escapar do olhar aturdido do aliado.
O conflito de sentimentos conduziu-lhe a respirar fundo em prol de retomar a calma. Ele não podia aceitar a forma na qual a Marcada de Vega tentava guiar a situação perante os acontecimentos recentes, porém não achava justo descarregar todas as frustações na pessoa que o salvou.
Com escolhas questionáveis ou não, ela era sua única aliada. A única pessoa que tomou a decisão de ficar ao seu lado, enquanto poderia simplesmente o largar a fim de alcançar o próprio objetivo.
Mesmo desconhecendo suas intenções mais profundas, tinha ciência de que não haveria melhor parceira. Mais do que isso, tratava-se da primeira pessoa na qual experimentava um leve sentimento de apego desde a tragédia que mudou sua vida.
Ainda possuía uma grande dívida a pagar.
Isso, decerto, jamais esqueceria…
— Foi mal… não queria falar desse jeito.
Pensar em tudo com mais calma o fez se desculpar por meio de uma voz sussurrante, o rosto enrubescido direcionava-se ao gramado.
— Eu também me expressei de forma indevida. — A alva fechou os olhos em recuperação da serenidade. — Me desculpe por ter dito palavras tão frias. Você estava certo, eu deveria considerar melhor os caminhos possíveis a serem tomados. E o melhor caminho para este cenário é resgatar aquela menina.
O Marcado de Altair respirou aliviado com a rápida reconciliação após a pesada discussão — a primeira entre os dois. Na companhia do novo momento que seguia os conformes desejados, o jovem assentiu com a cabeça e esboçou um tênue sorriso na face tranquilizada.
Layla ficou surpresa, pois não lembrava de ter fitado tal semblante agradável nele em alguma ocasião. Foi incapaz de não responder da mesma maneira conforme voltava a ficar de pé. Tendo a confiança reestabelecida, se aproximou a passos curtos, porém não contava com a repentina presença de Isabella bem ao lado.
Ao perceberem a aparição da nova aliada, os dois viraram as atenções até onde estava. Como se tirasse sarro da dupla, pigarreou com uma das mãos em frente à boca e comentou:
— Não quero atrapalhar os dois, podem continuar.
Sem entenderem nada, os marcados trocaram olhares dúbios e em seguida a responderam em uníssono:
— Não está atrapalhando.
As palavras entrelaçadas de ambos serviram para elevar ainda mais o interesse da bestial no momento. Dessa forma não conseguiu esconder o sorriso cínico.
— O que estavam prestes a fazer, então? — Estreitou as sobrancelhas em clara provocação.
Eles trocaram olhares novamente antes de a Marcada de Vega responder:
— Tivemos uma discussão rápida, mas já está tudo resolvido. Estávamos a aguardando para terminarmos os planejamentos.
— Ah, é? — O tom desanimado de Isabella trouxe mais interrogações à dupla.
“Eu jurava que estavam entrando no clima”, bufou sem muitas expectativas de que eles conseguissem entender o motivo de sua instigação. Sentindo que a história criada na mente não avançaria, resolveu mostrá-los o que havia encontrado durante o reconhecimento da área.
Retirou dos bolsos duas pedras idênticas à que estava em posse de Norman, conquanto uma delas possuía coloração azulada. Layla disponibilizou total atenção a ela como se já pretendesse adentrar o próprio assunto.
— Pra deixar claro, essa azul era do meu irmão. Me lembrei de mostrar a vocês quando encontrei essa aqui numa casa queimada.
Entregou o Fragmento de Urano esverdeado a jovem nívea que, na sequência, ergueu as sobrancelhas curiosa sobre as últimas palavras proferidas pela de óculos.
— Casa queimada?
— Sim, posso mostrar a vocês se quiserem.
Sem pestanejar, aceitaram o convite da Marcada de Betelgeuse. Ela os guiou pela trilha de terra extensa até chegarem na tal moradia em poucos minutos. Era a única habitação por aquele lugar deserto, portanto o rapaz achou que se tratava de uma construção bem antiga, talvez até abandonada.
No entanto quando pisou nos destroços carbonizados do interior, encontrou algo que jamais imaginaria num local como aquele. Seus olhos se arregalaram à medida que ossos surgiram debaixo dos escombros de madeira, aglomerados logo na entrada.
— Isso foi recente… — Layla murmurou conforme averiguava a área.
— Pois é. Consigo sentir o cheiro de carne carbonizada por aqui… — Isabella carregou certo remorso ao proferir tal informação.
— Entendi…
A voz falhada da jovem soturna pôde ser escutada pelo Marcado de Altair, que a encarou sem dizer uma palavra. Ele não queria mais desconfiar dela, contudo a curiosidade voltou a se manifestar perante tal semblante de conformidade.
Ao passo que encarava a companheira não tão distante, Norman encontrou uma cruz danificada acima de alguns entulhos. Lembrou nunca ter seguido alguma crença. Desde quando se reconhecia como um indivíduo, nutria um firme ceticismo perante qualquer doutrina religiosa. Mesmo assim não encontrou maneiras de evitar sentir o peso da mesma tragédia vivenciada ao perder a própria família.
Ele não era o único. Existiam outros, talvez incontáveis. Ninguém estava pronto para perdas. Ninguém estava imune a perdas…
Exalou um fraco suspiro em respeito àqueles que não abandonaram a própria devoção até o fim. Se de alguma forma pudesse findar esses acontecimentos fatídicos… ao pensar nisso, uma rápida ideia passou por sua cabeça, mas logo se esvaiu junto à brisa gelada.
— Achou algo a mais, Isabella? — Layla perguntou sem sequer a encarar.
— Uma arma de fogo. — A pronta resposta puxou a atenção da alva. — Não tinham soldados daquele marcado pelas redondezas, mas encontrei uma pequena bolsa com esse revólver e algumas balas.
A Marcada de Betelgeuse mostrou o instrumento prateado aos novos aliados. Sem duvidar, a jovem de olhos escuros segurou o objeto e o analisou por alguns segundos em silêncio. Na sequência, abriu o tambor giratório a fim de conferir as seis câmaras de munição. Todas estavam preenchidas com uma bala cada.
— Você sabe usar isso? — Norman se aproximou curioso.
— Conheço os mecanismos… acho que não terei dificuldades em me adaptar. — Ela fechou uma das vistas conforme examinava cada detalhe do revólver. — Agora sim estamos devidamente preparados. Mas antes devíamos treinar um pouco mais de seu Áster, Norman.
— Tem certeza? Eu acho que já estou dominando o suficiente…
— Quero testar algo novo. — Liberou a trava da arma e apontou em direção ao aliado. — Pode ser uma arma defensiva e tanto…
“Sério?”, o rapaz projetou um sorriso desconcertado ao recuar um passo.
Isabella só observou a interação estranha entre os dois sem proferir qualquer declaração. Prometeu a si mesma que não iria mais se meter nos assuntos deles, a exemplo da frustrada situação anterior. Poderia ser tão perigoso quanto imaginava…
— Creio que esta noite será suficiente. Também nos dará tempo até o ferimento de Isabella cicatrizar um pouco mais. — Layla virou o sorriso até a garota que procurava esconder a tensão no olhar atrás dos óculos. — Aliás, ele fechou bem rápido. Teria alguma relação com seu Áster?
— Acho que sim…
A Marcada de Vega não compreendeu a repentina mudança de tom em Isabella, mas resolveu dar de ombros àquele pormenor. Sem dizer mais nada, guardou o revólver com cuidado no coldre entregue pela companheira e caminhou pela trilha de volta ao local onde estavam desde o desfecho do confronto na cidade.
Norman observou os passos comedidos da garota abrirem distância do local destruído pelas chamas, ao que a menina de cabelo escuro se aproximou dele e sussurrou uma pergunta:
— Por falar nisso, qual é o Áster dela?…
Mesmo se tivesse a intenção de revelar a verdade para a antiga rival que quase o matou na universidade, o próprio não fazia ideia sobre os poderes dela.
— Ela não me contou.
— Pensei que fossem aliados. Que estranho…
Ele concordava com a reação surpreendida da Marcada de Betelgeuse. Preferiu omitir o fato de que unir-se a ela não passava da única opção favorável ao objetivo de permanecer vivo.
Não lembrava um instante sequer onde ela teria utilizado tal poder oculto. As únicas vezes na qual viu o brilho de sua marca, na altura do peito, foram no evento do beco com Bianca — sendo a reação de alerta — e quando encerrou a vida do Marcado de Polaris no hospital…
“Será que esse é o poder dela?”, ponderou consigo, porém achou muito óbvio para que ela desejasse manter segredo. E a partir do ponto onde já havia mostrado, esse não existira mais. “Quando terminarmos com isso, irei perguntar”, encontrou uma nova determinação para seguir em frente e vencer a batalha que estava por vir.
Dessa vez, não deixaria brechas para uma resposta enigmática.
★★★
Ainda atordoado pelo confronto passado, Levi socou a parede dos corredores na mansão que formavam um extenso labirinto. Encontrava algumas dificuldades para caminhar, porém recusava qualquer oferecimento de ajuda por parte dos soldados remanescentes.
Precisava superar aquele momento sozinho. Era um pequeno preço a pagar por ter rompido o limite dos próprios poderes, decisão crucial que o permitiu continuar ativo na Seleção Estelar. De quebra, ainda retirou um oponente complicado do jogo.
— Sim… isso não é nada… — murmurou consigo mesmo conforme avançava a passos pausados. — Afinal eu ainda nem usei… aquele fragmento…
Se arrastou pelas paredes até seus aposentos, trancou a porta e acendeu as duas luminárias vermelhas localizadas acima da cama de casal. Cambaleante, dirigiu-se até a penteadeira ao lado quase jogando o corpo pesado acima dos porta-retratos posicionados à frente do espelho.
— Isso tudo… é culpa sua… Elisa…! — cuspiu como se fosse uma maldição.
Abriu uma das gavetas e encontrou o cristal esverdeado com a marca de uma estrela no centro. A mão trêmula avançou com relutância à peça, o olho esquerdo encontrava-se arregalado. Quando os dedos a tocaram, tudo escureceu de repente.
A imagem de uma mulher surgiu das profundezas da mente deturpada, seu sorriso parecia brilhar no meio do vazio obscuro.
Na sequência, essa mesma pessoa foi vista sentada sobre uma cama trajando vestes brancas, conforme o cabelo encaracolado dançava pelo ar. O sorriso permanecia vivo na face pálida…
— Maria! — Levi retornou à realidade com o semblante atordoado. — Maria… Maria… Maria!!
Repetiu o nome da mulher incontáveis vezes até cair de joelhos no chão. Debruçou-se sobre a cama após devolver o Fragmento de Urano à gaveta ainda aberta, os dentes rangiam com ímpeto à medida que forçava um sorriso de escárnio.
— Eu vou vencer… e irei te encontrar… onde estiver!…
Pegou um dos porta-retratos acima da penteadeira. O único olho mirou a foto onde ainda possuía o outro órgão acinzentado normal… ao lado, aquela mulher sorridente abraçava seu braço com afeição. Lembrar desse momento lhe fez soltar uma gargalhada que foi elevando o tom até alcançar o quarto escuro de Bianca.
Amedrontada pela reação anormal do Marcado de Regulus, a garotinha espremeu-se contra a parede fria, flexionou os joelhos e afundou a testa sobre eles. Desejava se proteger das risadas perigosas que ecoavam do cômodo isolado.
Nada mais que isso…