Passos Arcanos - Capítulo 98
Depois de cinco dias de lazer, sem ter feito muita coisa na casa ou fora dela, Orion decidiu que era o momento ideal para ir até os Espadas Enferrujadas. Procurou no pátio, na Sala de Missões e também na cozinha.
Ninguém além de Tito, Saiss e os novos moradores estavam na casa. Quando Orion sentou-se em um dos bancos de pedra do pátio de treinamento, sentiu-se livre de muitas das amarras que tinha guardado consigo durante a viagem.
Os braços leves, os ombros soltos, fechar os olhos ali não era perigoso. Sua mente podia descansar sozinha, sem um traço de inimizade ao redor.
— Orion — ouviu Cristina a sua frente. — Está acordado?
— Estou. — Ampliou sua visão e a viu com uma roupa nova, de couro leve, e botas mais duras, e uma cinta amarrando as calças de seda. — O que houve?
— Disse que me ensinaria a ser forte, e quero aprender a lutar também.
— Já? — Inclinou-se com um Meio sorriso. — E o que sabe fazer até agora?
Ela firmou os punhos e endureceu o queixo.
— Eu já aprendi quase todos os símbolos passivos.
Todos? Uma pessoa comum demoraria cerca de seis meses apenas para entender todos eles, mais um ano para gravar e deixar bem centralizado na própria mente. Claro, era um estudo da própria Ordem dos Magos, qualquer um acima da média demoraria menos.
Ainda assim, cerca de duas semanas?
— Dite pra mim, então.
— Aceanus, primeiro símbolo, contemplação do invisível. Aceassus, segundo símbolo, contemplação do visível. Acetus, contemplação do moral. Acetuss, contemplação do imoral.
Demorou cerca de quinze minutos. Orion manteve-se quieto, a deixou confortável. Durante esse tempo, algumas pessoas chegaram ali, mas ao verem que a jovem tinha os olhos fechados e ditava símbolos completos, não deram início ao treino.
Wallace e Tito foram outros que pararam para assistir.
Cristina ditou símbolo por símbolo, de A a Z, sem hesitar e sem gaguejar. Quando terminou, abriu os olhos, respirando profundamente.
— Acho que não esqueci nenhum, senhor.
— Foi perfeito — elogio Orion. — Os símbolos servem para uma única funcionalidade. Em cada livro, existe cerca do abstrato e do palpável, em uma runa, elas se tornam uma coisa só. A comunhão entre as partes no formato do todo — jogou a mão num círculo perfeito, soltando uma linha amarelada no ar. A borda do círculo brilhava fortemente. — Esse é o todo, e para construir suas partes, precisamos desses que você citou.
Os olhos contemplantes, de uma beleza indescritível. O fanatismo pelo desconhecido, Orion se via naquele pequena garota.
— E para criação, precisamos de três sistemas. Quais são?
— Conexão, Imagem e Afinidade— respondeu Cristina sem tirar os olhos do fio brilhante ao seu redor. — Estou certa?
— Agora que sabe o básico de Simbologia, precisa aprender a calcular como se comportam uns com os outros. Por isso, está na hora dos Símbolos Ativos.
A face de algumas pessoas ao redor, de robes roxos, contraiu. Um deles se aproximou.
— Desculpe perguntar, mas estou ouvindo ela falar sobre tudo isso. — Era um homem de trinta anos, cabelos bem negros. — Me chamo Eneas, e queria comentar sobre esse treinamento que está dando a ela. Não seria mais fácil introduzir diretamente a Afinidade e seu elemento?
— Seria, mas como quer fazer um bolo só sabendo os ingredientes e não o que tem dentro dele?
Eneas viu Orion criar um segundo e terceiro círculo dentro do primeiro, cada vez menor. E parou no quinto.
— No Arcanismo, os degraus são sempre para baixo. Se aprende o que é, depois como se comporta, como se cria, como se destrói e a sua união. Para alterar suas partes, para criar novas partes, para gerar outras partes, tudo isso é preciso de estudo. — E esticou o dedo para o núcleo principal, o vazio no Meio dos seis círculos. — Ai, então, uma runa pode ser montada.
A boca de Eneas estava aberta, e seus colegas também ficaram, se aproximando mais.
— Onde estudou? — Eneas perguntou em seguida. — Eu tive minhas aulas na Torre de Babel, mas ninguém nunca mencionou nada parecido nos meus quase dez anos lá.
— Caldeiras de Ilhotas. — Orion escorreu a mão para a sacola espacial e tirou um pequeno rolo. — Sou formado em Arcanismo Avançado, Arcanismo Variável, Especializado, e Recreativo. Claro, tive ajuda, mas sou letrado também em Criação, Recuperação, Simbologia, Runas e Pontes de Mana.
O papel foi passado de mão em mão, onde os Magos tiveram a oportunidade de ver e comentarem entre si. Cristina, então, ficou alarmada ao ouvir.
— Consigo fazer tudo isso também? — a sua pergunta soou para si, mas Orion a ouviu e concordou com a cabeça.
I
— A prática leva a perfeição — pela espada que segurava, dava pra ver que Tito tinha treinado com Truman e Wallace desde que saiu —, só que você ainda tem que aprender a melhorar a posição dos pés.
Tito usou uma finta de um lado e depois usou um golpe do outro. Orion aparou apenas o segundo, não sendo levado. E usou a mão para acerta o peito dele e afastá-lo. Já tinha sido o quinto ataque liso, quebrando a sequência no primeiro movimento.
— Pode parar com isso? — a voz de Tito se misturava com o suor, saindo tremida. — Estou tentando mesclar.
— Pra que quer mesclar se ainda não aperfeiçoou nenhum dos dois estilos? — Sorriu, meio debochado. — Truman te influenciou bastante, pelo visto.
Sentado no banco de pedra, Wallace e Cristina. Alguns dos Cavaleiros de Ferro treinavam sozinhos, e os Espadas Enferrujadas conversavam quanto aos treinos que iriam levar.
Como já era quase noite, as tochas foram acessas. E Tito recebeu mais um golpe no peito.
— Eu cansei. — Ele massageou a barriga e peito saindo de perto. Caminhou para Wallace e apontou a mão pra trás. — Sua vez de apanhar.
A risada do grandalhão foi a resposta.
— Ele nem suou. — Wallace se pôs de pé. — Se usar essa espada, vai ser fácil demais, Orion. Pegue a lança.
— Não tem motivos para lutar a sério.
O cabo girou velozmente entre seus dedos, tensionando os observadores. Quando parou, a pegou de lado e apontou com o rosto tocando seu próprio ombro.
— Lembra da primeira vez que a gente duelou? Foi uma boa luta, mas você perdeu feio.
— Foi quando me ensinou a trapacear, não foi? — Wallace puxou o seu mais novo machado de guerra de trás das costas. Sua lâmina vibrava ao seu toque, muito mais forte do que quando estava com Orion. — Eu aprendi algumas coisas desde aquele dia.
Os dois deram passos laterais e saltaram para um encontro tintilar. O aço encontrou o outro várias vezes numa velocidade muito diferente de antes. Wallace gingava e usava o grande corpo para criar ataques tão ferozes que o ar zunia. E Orion combatia com uma defesa perfeita, prevendo esquivas e golpes corporais.
O braço de Wallace surgiu esticado e ele teve que desviar a cabeça para o lado, mantendo o corpo ainda ereto. Sua espada puxada para trás segurou o machado que chegava por baixo, na diagonal. Antes de qualquer outro movimento, Orion recuou um passo e riscou o ar como se sua arma fosse um graveto, afastando seu colega.
Um segundo, esse era o tempo necessário para que os dois recuperassem sua força e voltassem a se encontrar no Meio.
Com o tempo passado, a luta se desdobrou a mercê de Wallace. Sua lâmina havia sido descrita com símbolos mágicos capazes de alterar sua própria runa, isso lhe deu a vantagem de aumentar sua velocidade e também resistência.
E seu braço se tornou um borrão, vindo de todos os lados possíveis em fracções de segundos.
Tito e Cristina observavam, e não só eles, os próprios Espadas Enferrujadas e os Cavaleiros de Ferro pararam de conversar para assistir. E não só impressionados com Wallace, também descrentes pela absurda reação de Orion.
Eles que nunca tinham visto sua maestria na espada antes ficaram impressionados. Wallace Baker era um dos melhores em São Burgo quando o assunto era troca de golpes físicas. Ele venceu até mesmo alguns Cavaleiros da Lança Rubro, que tinham anos de treinamentos.
Naquele instante, os dois se sobressaíam entre o outro. A postura de Wallace mudava e Orion reagiu quase na mesma hora, criando um impasse nos seus movimentos. Até Tito, que tinha treinado com eles durante anos, ficou sem palavras.
Eram como um ferreiro, martelando um mesmo ferro, subjugando as impurezas e expurgando sujeiras na superfície.
Houve, então, uma parada entre os dois, quando respiraram fundo e seus braços e pernas se alastraram para o lado.
— É agora? — o sorriso de Orion se tornou determinado. — Está pronto?
— Vamos ver quem ganha.
Um giro tão poderoso vindo de Wallace que tirou a respiração dos expectadores. Seu corpo inteiro culminava para um ataque massante, extremante mortal. E do outro lado, Orion juntou as duas mãos no cabo, sem ao menos se mexer.
Quando o machado de guerra se aproximou com o grito de seu portador, a espada adiantou-se num passo quase que fantasma. Orion torceu o braço para a direita e jogou-o para frente.
As duas armas estalaram num baque seco criando silêncio no pátio. Nenhum dos dois se movia, ainda travados pela arma do outro.
Suas faces contorcidas e firmes. Wallace tinha os braços tremendo e seu queixo duro como pedra. Os olhos de Orion eram firmes, impenetráveis, como um monte.
Aqueles dez segundos se tornaram infinitos. Wallace abriu a boca e estava prestes a gritar, Orion sorriu no mesmo instante.
A espada forçou a frente e o braço de Wallace recuou.
— Ele… está ganhando — o comentário veio dos Cavaleiros de Ferro. — Ele não era um Escolástico?
— Orion Baker? — ouviu vindo de trás. Truman e Sind também assistiam. O Baker tinha os braços cruzados sobre seu colete de couro negro, e os cabelos presos. — Os dois são mestres no que fazem. Wallace em lutas, Orion em Arcanismo.
— Mas… — o homem apontou para a disputa. — Orion está ganhando dele.
— Acho que seria um pouco difícil para vocês entenderem que um Escolástico é forte, mas Orion ganharia de todos nós juntos se quisesse. — Ele mostrou um pouco de vergonha, mas foi aliviado por Sind ao seu lado.
— Não se sinta mal — ela disse. — Ele venceu os Forjadores da Relma sozinho daquela vez.
— Eu soube, vocês levaram uma surra. — Os dois fizeram caminho para a porta do Tomo. — E você veio para os meus braços, gracinha.
Ela aplicou um soco na nuca dele.
— Você quem veio, idiota.