Passos Arcanos - Capítulo 71
Eliza acordou na manhã do dia seguinte e Orion abriu os olhos no mesmo momento que ela se sentou. O rosto dela tinha uma marca vermelha por dormir em cima da própria mão e sua boca estava molhada por ter babado tanto.
Ela desviou o rosto, limpando-se rapidamente.
— Está sentindo alguma dor ainda? — perguntou Orion. — Se estiver, podemos voltar para o Vilarejo Quebrado e procurar algum curadeiro.
— Estou bem. — Quando voltou a virar o rosto, a marca vermelha tinha suavizado. — Só está doendo um pouco o meu pescoço.
— Fiz um travesseiro com algumas mudas de roupa, mas deve ter sido um pouco desconfortável. — Orion pegou a sacola que tinha embrulhado as roupas e guardou de volta no saco espacial. — Podemos continuar para o Palácio das Baleias?
— Sim.
A fogueira foi dissipada pelo solo rochoso, as brasas criaram uma rota circular e Orion chutou o solo para tirar a brasa da sola dos seus pés. Depois iria mexer no restante das roupas, se conseguisse modificar vestimentas, poderia dar algumas para os Baker.
Eliza esperou ele terminar dando uma boa encarada nos Rocks. Estavam quase pelados, ficando com a calça mais leve e algumas Meias. Nem camisa foi poupada por Orion.
— Por que ainda estão dormindo? — perguntou a ele quando chegou mais perto. — Minha magia não deveria surtar tanto efeito assim.
— Quando você acertou eles, ficaram inconscientes na hora. Eu não faço ideia do que aconteceu depois disso.
Ela concordou ainda não convencida e começou a andar.
Os dois chegaram perto da cumbuca de barro de quase vinte metros. Eliza tateou a parede rígida e fria. As marcas que o Polvo tinha deixado ainda estavam lá, como se rasgasse um tecido por garras afiadas.
— Vamos logo — Orion disse a ela, em um outro ponto. Tinha feito um buraco no barro sem que ela percebesse. — Tem uma saída aqui.
Os dois passaram por baixo. O som da água tinha ficado mais forte e os ventos mais fortes. Lá dentro, pelo menos, não precisava se preocupar com as rajadas vindo das cachoeiras. Orion seguiu ao lado dela mais pra frente.
— Você pegou os pontos dos Rocks? — Eliza perguntou, de repente. — Lembrei disso agora.
— Sim. — Orion tirou uma esfera do tamanho de seu punho. — Eu dividi metade a metade. São 1500 para cada.
Ela o olhou de lado.
— Dividiu meio a meio sendo que quem derrotou eles fui eu?
— Se quiser ele toda, só precisa tirar de mim.
Sorriu lascivamente de volta pra ela. Depois de uma luta prolongada e ter sua mana inteira drenada, duvidava que Eliza faria algum tipo de esforço para ganhar uma milhar de pontos.
Ela negou e apressou os passos.
— Pode ficar.
Aos poucos, a cachoeira se aproximava. Os ventos eram tão fortes que Orion protegia os olhos com a mão, cada passo era cansativo. Eliza tinha expandido sua mana ao redor do corpo e andava sem dificuldade alguma.
Algumas vezes, lançava um olhar vitorioso sobre ele apenas para se lastimar. Orion não estava longe, pelo contrário, se mantinha ao seu lado constantemente.
Ela tentou dissipar um pouco a camada de mana sobre si para averiguar a situação dos ventos, e quase foi arrastada para trás facilmente. Orion percebeu e sorriu secretamente.
— Estamos quase lá — ela falou depois de erguer seu escudo e manter os passos leves. — Se apresse.
Orion ativou uma parcela da Absorção por debaixo da manopla e a camada no rosto dela se dissolveu. Os ventos a acertaram, obrigando-a virar de costas.
— Parece que você está com dificuldades. — Orion passou ao lado dela, endireitando a coluna. — Ficar dependendo de mana é uma falha de todos os Magos.
Eliza soltou uma bufada quando o encarou. No entanto, impressionou-se ao ver que Orion caminhava sem mais dificuldade.
— Estamos chegando perto mesmo. — Orion parou quinze metros a frente. — Estou vendo a beirada.
A vastidão que se alongava diante deles não poderia ser medida a olhos nus. Talvez, Orion questionou, que havia de um beirada a outra cerca de dois quilômetros facilmente. O outro lado da cachoeira, e nem estava na parte mais distante, não poderia ser alcançada com uma runa de voo.
A água, vindo de uma área mais acima, em uma camada de pedras por quase cem metros a esquerda, desabava uma quantidade de água que Orion também não poderia definir só com os olhos. E a quantidade que caía era tanta que o sol refletia sobre ela em perfeito estado, sem oscilar.
Parece uma parede em perfeito estado.
— É lindo — ouviu de Eliza, fissurada no quanto de verde se reunia nas paredes laterais, ao redor da água. — É bem diferente de onde estamos agora.
— É por causa da caída.
— Caída?
Orion apontou para a beirada da cachoeira, onde a curvatura da água se formava.
— Uma cachoeira pequena faria com que crescesse vegetação somente na parte debaixo, mas essa tem uma curvatura irregular por causa do peso. Os ventos empurram a água pra trás, e boa parte dela acerta a parede.
— Mas é muita coisa.
— Olha lá — seu dedo direcionou para o outro lado do abismo, onde uma segunda cachoeira, quase da mesma grandeza, desabava para o fundo. — Elas são todas assim. Por isso que os terrenos mudam tanto.
— Parece uma pintura.
— Seria ótimo pintar aqui se não fossem esses ventos. — Orion ainda se sentia incomodado sendo obrigado a inclinar um pouco seus joelhos para não ser arrastado. — Nosso objetivo final é lá embaixo.
O abismo. A escuridão que deveria existir era extinta por causa do sol. A luz chegava até o fundo, mas olhando dava para ser uma ideia de que a distância era ainda maior do que uma beira a outra. Orion tinha dito que a queda de vinte segundos inteiros sem parar.
Uma quantidade dessa mataria uma pessoa no Meio do caminho. Eliza sabia desse fato por ter estudado um pouco sobre o básico de velocidade e distância, com Arcanismo Comum.
Para Orion, metade dos seus problemas começava naquele pequeno espaço de tempo.
— É o seguinte, a runa que eu tenho pode fazer a gente flutuar até lá embaixo. Porém, você tem que ter controle exato do que vai fazer. Se você sair flutuando numa direção só, vai acabar sendo arremessada contra as cachoeiras.
— Certo — ela prestava bastante atenção. — Esses ventos parecem cortar de lados diferentes. Deve ter dois ou mais percursos.
— No mínimo duas. — Orion confirmou fitando algumas camadas de água sendo retiradas e arremessadas pelo ar. Elas pareciam dançar de tantos caminhos que faziam, sendo bombardeados, destroçadas e estraçalhadas até chegar no fundo. — Contei umas dez, mas acho que tem mais.
— Dez?
O vento nem parecia fazer tantos caminhos assim, só curvas mais acentuadas. Eliza não enxergava essas dez nem com muito esforço.
— E o que vamos fazer?
— Seguir com o plano. Pegue o seu Quadro Arcano e ative a magia. Mas, se ativamos ela agora, vamos ser arrastados para longe. Temos que ganhar impulso até metade do caminho.
— Impulso? — Nunca tinha balançado a cabeça tantas vezes na vida para negar algo. — Você está maluco. Se eu pular, vou morrer.
— Vai morrer só se não seguir meu plano. Precisamos de velocidade para conseguirmos planar no ar. Os ventos aqui tem quase a mesma intensidade que lá embaixo. Eles perdem força por causa da pressão da água e das paredes.
Eliza negou outra vez.
— Quando você disse que a gente ia pular, não disse que ia ter que ser sem a magia. — Deu dois passos para trás, balançando as mãos. — Não é uma hora muito boa, mas tenho medo de altura.
— Você só pode estar de sacanagem.
— Estou falando bem sério. Acabou de me dar um aperto no peito. — Ela pôs a mão entre os seios, respirando fundo. — Acho que aquela dor de antes voltou. Orion, isso não é normal.
— Faça o que quiser, então.
Estava um passo de chegar no lugar mais misterioso da Amplidão e não iria ser parada só por causa de Eliza. Lá embaixo, um mistério lhe esperava. E iria até o fim para descobrir o que era.
— Não, espera.
I
Henqui coletava pequenas frutas ao lado leste das Cachoeiras Duplas. Cogumelos Rosados eram ótimos para digestão das vacas que sua mãe comprou no último inverno, e eles cresciam rápido ali perto.
Como boa parte das pessoas tinha medo de se aproximar por causa dos ventos fortes e da altura, sempre estava sozinho. Sua mão não gostava tanto já que as histórias diziam que muito tempo atrás, um casal tinha se suicidado ali por um amor não correspondido.
Era uma história triste se fosse contada pela pessoa certa. O jovem rapaz sempre buscava a aprovação da donzela e sempre era rejeitado. Ela se negava a aceitá-lo por conta das diferenças entre suas famílias.
Metade das pessoas da sua fazenda conheciam a história e diziam que essa mulher tinha os cabelos esbranquiçados, vindos de uma linhagem nobre. De uma beleza surreal e com a voz de um anjo.
Numa tarde, como aquela, onde o som das aves pairavam acima dos ventos e as águas se tornavam quase cristalinas, o homem quis se jogar da beirada, e a mulher o conteve.
Henqui nunca gostou muito daquela história porque sempre tinha o clichê de sempre. Se matar porque não iria conseguir aquilo que queria. Quão mesquinho a pessoa teria que ser para se matar por alguém por amor?
Parecia impossível pra ele.
Entretanto, um eco bem suave chegou até ele.
— Não, espera.
Era a voz de uma mulher suplicando. Procurou ao redor, ninguém além dele chegava tão perto da borda para coletar cogumelos. Então, varreu os olhos pelo outro lado, procurando pela origem da voz.
E encontrou. Um homem era puxado pelo braço pra longe da beirada, e a mulher tentava falar algumas coisas, porém, ele se negava. Saiu do controle dela e deu um passo na direção do abismo.
— Mas que porra é essa? — Henqui não acreditava no que via. — Ele vai pular mesmo? Ei — gritou, mas os ventos eram fortes demais. — Porra, ele vai se matar.
A mulher tentou segurar ele de novo, mas não adiantou. Com um passo na direção do nada, ele afundou no ar. Henqui se levantou na hora e esqueceu do vento, sendo jogado no chão de novo.
— Deuses, o que ele fez?
E viu a mulher segui-lo. Ela saltou abrindo os braços e girar várias vezes. O vento mudava de direção e forçava ela a mudar junto. No entanto, o mesmo trajeto que o homem fazia, a mulher também seguia.
Pareciam sincronizados no ar.
Henqui espreitou segurando a beira. Os dois se encontraram e se abraçaram. Quase dez segundos depois, ainda no Meio do caminho até o chão, seus corpos ficaram amarelados. Henqui não entendeu o que tinha acontecido, porém, ambos pararam de descer, como se flutuassem no ar.
— Minha mãe não vai acreditar nisso.