Passos Arcanos - Capítulo 72
A maluquice de Eliza custou a Orion dor de cabeça. Pulou para o abismo e usaria sua própria mana, independente se ela tivesse ou não medo de altura. E já no meio do caminho ouviu o grito pelas suas costas, de cima.
Já era difícil respirar normalmente e teve que prender ainda mais quando Eliza o agarrou pelas costas, girando junto dele. Ela é completamente maluca. Qualquer um negaria pular se realmente tivesse medo, mas ela não.
O vento os jogavam de um lado para o outro, em caminhos diferentes. A parede se tornava mais perto, ouvia a quebra da água lá embaixo, mas Eliza enterrava sua cabeça em seu peito, o impedindo de se virar.
Nada bom. O peso dos dois juntos os conduzia para as correntes mais fortes, em direção a cachoeira. A água era densa o suficiente para quebrá-los ao eio. Segurou Eliza pelos ombros e a empurrou para trás, mesmo ela apertando os dedos em suas roupas.
A boca tinha que se manter fechada ou perderia o ar que ainda restava. Cutucou a testa dela várias vezes, ela nem se mexeu.
Não tinha superado o medo, nem mesmo perto disso. Parecia paralisada.
Merda.
A parede de água se aproximava mais ainda. Orion esticou o braço na direção dela e usou a manopla para camuflar as tatuagens negras de sua mão. A mana preencheu seu núcleo, e manteve o braço apontado para lá.
Atirou um jato de ar mais forte do que a corrente, obrigando a mudar de direção. Eles giraram várias vezes no ar mais algumas vezes e ouviu Eliza choramingar ainda o abraçando.
O fundo se aproximou mais rápido do que tinha previsto. A duração foi de quinze segundos, e virando o rosto, a bacia formada pela cachoeiras era duas vezes maior do que tinha visto lá de cima. Dava para chegar lá.
O resto da mana foi direcionado para sua runa, ainda no Quadro Arcano. A camada amarelada revestiu os dois. O peso dos dois diminuiu e o ar planou por baixo dos dois.
O Colar de Arigax seria perfeito aqui, lembrou-se que Tito o tinha. Ele conseguiria passar tranquilamente por aquela descida sem problema.
Na diminuição do peso, a velocidade da caída diminuiu. Eliza mostrou a cara, dando uma olhada ao redor. Tinha sentido a falta de pressão ao redor. A camada que os rodeava protegia e ainda mantinha-os em movimento.
— O que você fez? — perguntou ainda o abraçando fortemente.
— Só usei a runa que era pra você usar.
A mana foi usada para mudar a direção novamente e os dois chegaram a lateral do abismo, onde pedras ainda não tinham sido submersas as Cachoeiras Duplas. Orion se desgrudou de Eliza, a deixando de lado.
— Pronto — disse ajeitando a roupa. — Agora pode parar de me agarrar.
O rosto dela avermelhou na hora.
— Perdão. Eu… pulei e não sabia o que ia acontecer.
Orion desviou o olhar e ajoelhou-se na beirada da pequena ilha de pedra.
— Devia ter confiado em mim, assim como eu disse no Vilarejo Quebrado.
— Seu plano era ativar a runa antes de pular — contrariou com vontade. — Como eu ia saber que ia ter que pular em um abismo, Orion? Já era maluquice vir até aqui, agora morrer tentando chegar no fundo, eu não ia.
— E cá está você. — Ele lançou um olhar de lado. — Se quer ir embora, fique a vontade.
— Não vou.
A decisão dela era firme, Orion percebia pelo queixo endurecido. Seria melhor se fosse.
Desde que tinha encontrado ela, sabia que teria que esconder ainda mais seus segredos. Uma Maga sendo instruída por uma Arche-Mago, Ofélia vai pedir todas as informações que sua aprendiz conseguiu ali na Amplidão.
Esperava que a luta entre Green Shay e ele tenha sido bem esclarecida pelos outros.
— E agora, para onde vamos? — Eliza se ajoelhou em uma perna ao seu lado. A água era calma mesmo com as cachoeiras socando as pedras com tanta vontade que pareciam prestes a rachar. — O Palácio deve ser lá embaixo.
— Depende. — A água se mexeu quando a mão dele percorreu na superfície. No fundo, um turbilhão eclodiu. — Tem runa protegendo a entrada, como já esperava.
— Já esperava?
— Claro. Por que acha que ninguém conseguiu entrar nesse lugar ainda? — Sorriu. — Você é bem ingênua de vez em quando.
Ela não recebeu seus elogios com gratificação, fazendo bico.
— E o que você, ó grande Escolástico, faria para passar por essa runa?
— Primeiro, temos que saber o que estamos enfrentando. — O Quadro Arcano foi ativado. Orion afundou a mão direita na água e sentiu a pressão do fundo repercutir contra ele. Usou a memória muscular para transmitir os dados de volta para o Quadro.
Os números e letras começaram a descer. As posições eram estranhas para Orion. Normalmente, era seguido em ordem crescente ou decrescente. Um Escolástico mais antigo poderia até criar sua própria codificação — implementar numa magia era a parte mais difícil já que demandava um alto controle, não só de símbolos, como ligações e planos secundários.
— Isso é tão confuso — Eliza comentou ao dar uma olhada. — Consegue traduzir isso?
— Me dê um minuto, eu estou tentando.
Era numeração, Orion tinha certeza. Um código que invertia letras para números, números para símbolos, símbolos para palavras no Idioma Morto. E do próprio Idioma Morto para letras novamente na Língua Comum.
A mente se tornou escura, liberta de pensamentos secundários. O foco era na conversão. Cada letra deveria ter um caminho inverso, e na mistura que faziam, três palavras se formavam. O Quadro Arcano ganhou uma novo plano secundário, completamente escuro.
As runas começaram a se desembaralhar ao tempo que Orion tinha para ler. Aos poucos, o plano secundário ganho uma cor. A letra M apareceu e Eliza ficou atordoado ao vê-la.
A segunda letra apareceu depois de dez segundos— U.
Por longos cinco minutos, Orion manteve-se de olhos abertos enquanto a infinidade de símbolos se embaralhavam e rodopiavam, querendo fugir de seu controle. A cada letra encontrada, a dificuldade aumentava.
Chegou um ponto que o próprio plano com a runa do Palácio da Baleia se multiplicou em três, forçando-o a recuar.
Vai ter que fazer melhor do que isso. Sem recuar, Orion intensificou o foco e projetou um terceiro plano do Quadro Arcano, jogando todos os símbolos que não eram para estarem ali ou que não faziam sentido.
O transe era intenso demais para continuar. O olho já ardia ao ponto de lacrimejar e engolia em seco com a garganta rangendo. Parar agora só retardaria o fato de que tinha sido derrotado em decodificação.
Desde quando perdeu alguma batalha em Arcanismo? Sua última luta perdida contra Oliver lhe acendeu a chama da competição. E jurou que nunca perderia para alguém no que mais lhe trazia prazer.
Render-se era proibido para Orion Baker nesse ponto.
— Música — Eliza disse. — Música é a primeira palavra, Orion.
Eu sei. Quero as outras duas.
— Está ótimo — ela elogiou dando um tapinha em suas costas. — Pode descansar um pouco. Temos tempo.
A pressão esmagadora dos ombros de Orion foram apoupadas por uma mão suave. O choque existente entre os dois lados se dissipou como se nunca tivesse estado lá. Ele piscou algumas vezes, encarando o quadro.
— Ofélia sempre me falou que os Escolásticos gostam de desafios, mas você deve maneirar um pouco. — Ela nem mais estava ajoelhada. Tinha sentado numa pedra e trazido o plano secundário do Quadro Arcano dele para perto. — Se não, vai acabar igual a mim depois de lutar contra os Rocks.
A calma dela era estranhamente fora de contexto.
— Por que acha que eu ficaria igual a você?
— Deve ser porque todo mundo tem um limite.
Limites.
— Eu não tenho limites — Orion sentou-se. Puxou o quadro primário para perto e começou a coçou o cansaço dos olhos. — Se eu não conseguir desativar uma runa decodificada, nunca vou conseguir chegar onde quero.
— E onde quer chegar?
Ele não respondeu.
— Ah, vamos. Fala de uma vez. Você parece desesperado pra ter alguma coisa. E mesmo que não fale, eu tenho minhas expectativas.
— Mesmo que eu fale, você não pode fazer nada pra me ajudar. Só vai piorar a situação. — Ele continuou mexendo no quadro. — Foque na decodificação.
— Se não quer falar, tudo bem. Mas saiba bem, Orion Baker, que sei que você pode usar magia de algum jeito. E mesmo que negue isso, sinto que esconde muito mais do que parece.
Orion concordou sem dar muita bola.
— Só me deixa acabar isso aqui.
Permaneceram naquela ilha de pedra de menos de cinco metros, lado a lado, até a noite. As estrelas começaram a aparecer e a lua também deu sua graça. Antes, o sol se refletia na cachoeira, mas agora era hora da grande esfera branca.
De vez em quando, podia ouvir a mulher de cabelos brancos reclamar da demora ou que estava muito tempo sem fazer nada. E o som se dissipava com a queda d’água. Orion já tinha decifrado a runa quase duas horas atrás, porém, ainda se impedia de continuar.
A tranquilidade que a bacia tinha mesmo com as duas cachoeiras golpeando furiosamente a todo instante lhe deixava atento.
— Não vamos conseguir descer.
— Depois de quase seis horas — ela desgrudou as costas do chão, sentando—, você diz isso?
— A entrada do Palácio tem alguma coisa a mais. Não consigo saber o que é.
— Use o seu título de Escolástico e aquela motivação de chegar até o topo e arranje alguma forma de nos fazer entrar. É tão difícil assim.
— Sim. É bem difícil.
No Quadro, as contas e também possibilidades a se entrar podiam ser contadas em quase mil variantes. Cada uma delas era uma chance de morte certa. Levando em conta a densidade da água, a calma do ambiente e o fato de que nenhum animal marinho se aventurava abaixo deles, mergulhar naquela bacia seria fatal.
Peixes eram claramente o fator principal.
— Preciso pensar um pouco — disse para si, apoiando o queixo na mão. — Deve ter alguma forma de entrar.
— Tem alguma coisa no meu Quadro.
Orion virou-se. Eliza tinha seu plano primário aberto, com uma esfera rotacionando lenta e sozinha no centro. Os símbolos e ligações, a precisão da mana— Orion sabia bem de onde era.
— É uma chamada por mana — respondeu a ela. — Você deu uma parcela da sua mana para rastreamento?
— Sim, mas foi pra minha mestra.
— Deve ser ela, então. Aperte esse círculo menor no meio.
Ela o fez. A runa inteira se moveu, destravando-se e perdendo força, dando liberdade para uma face envelhecida. Os cabelos brancos e as rugas nos olhos negros. A Arche-Maga Ofélia, como previra antes.
O mais inesperado era o fato de sua runa ter sido aprovada pela Ordem e utilizada tão rapidamente. Desde que tinha sido implementada, só os campos de Archaboom tiveram oportunidade de testar, e a vantagem era gigante comparada aos Sacerdotes que ainda precisavam de animais para entregar mensagens e ordens.
Utilizar para uma conversa casual, a Ordem não daria permissão.
— Mestra — Eliza segurou um pouco da emoção de antes, mantendo-se fria. — Algum problema?
— Eliza, é ótimo ver que não teve nenhum acidente. Tivemos um problema, sim. — A face dela era pura preocupação. — Onde está agora? Em qual parte da Amplidão?
Eliza mexeu os olhos e Orion sibilou.
— Cachoeiras… Duplas, mestra. — E voltou a encará-la. — É um lugar bem escondido.
— E bem escuro também, pelo que vejo. Com quem está nesse momento?
Orion negou com a cabeça.
— Um colega que conheci — mentiu. — Ele me ajudou com muitos lugares interessantes. Mas, qual foi o problema?
— Os Rocks. Descobri quem está financiando a ida deles ai na Amplidão. O líder da Krasios mandou uma mensagem para o diretor da Torre de Optus. Zisara pediu que você volte imediatamente.
— Voltar?
Eliza inclinou a cabeça de lado, sem entender.
— Os Krasios hoje tomam conta de metade de Santa Helena. Ameaçaram cortar todas as verbas dos projetos que a Torre vem tendo esses anos todos porque houve um problema entre vocês e os Rocks. Não é um pedido, Eliza, é para voltar agora.
— Mas, se eu voltar…
— Nada de ‘mas’— cortou Ofélia rispidamente. — Não importa se está se divertindo ou se gostou, a Torre vem em primeiro lugar. Existe um protocolo a se seguir, e é necessário que retorne, imediatamente.
A face da jovem murchou na mesma hora. Ela assentiu de olhos caídos.
— Sim, mestra. Vou partir.
— Imediatamente. E não demore.
A runa se fechou com o estardalhaço dos símbolos. A escuridão retornou, mas o rosto dela se mantinha iluminado pelo reflexo da lua na cachoeira. A tristeza pairava entre suas sobrancelhas, ainda sem saber o que tinha feito de errado.
— Eu… tenho que voltar — falou como se Orion não tivesse ouvido. — Minha mestra…
— Eu entendo. É necessário. Um bem maior.
Ela concordou. Ainda hesitante, levou a mão a cintura e puxou um rolo de dentro de uma das suas pequenas bolsas. Os dedos apertavam o papel, mas não o desdobraram.
— Espero que me conte depois — ela falou erguendo os olhos — como é o Palácio das Baleias.
— Vou contar, não se preocupe.
O selo do papiro foi desfeito e a runa no seu Meio foi acesa. Fragmentos azulados se desprenderam do papel e se ligaram a Eliza, envolvendo-a com sutileza. Aos poucos, sua pele se tornou claro, partindo para um transparente.
— Runa espacial — disse ela. — Vou voltar para Santa Helena. Quero que fique com os meus pontos já que não vou poder usar pra nada.
A esfera azulada foi passada a Orion. Ela ergueu a mão, mordendo os lábios.
— Até.
Orion ergueu de volta, um pouco deprimido.
— Até logo.