Passos Arcanos - Capítulo 58
Andar pela parte mais nobre de São Burgo era bem diferente. As pessoas caminhavam sem parecer apressadas, paravam para averiguar o tipo de objetos que iam comprar, tateando os alimentos, procurando malefícios.
Era de impressionar porque no distrito sul o ditado ‘a pressa é inimiga da perfeição’ não existia. Cada um por si, procuravam pegar os mais bonitos por fora, comprando e indo para a próxima loja. O distrito norte tinha o charme de lazer que Orion não estava acostumado.
E Rob tinha dito onde o estábulo se localizava. Numa ruazinha perto de lojas de ferraria, a placa no alto anunciava o nome ‘Clamor e Cavalos’ em letras amarelas na tábua escura.
Quando se aproximou, Orion achou Daniz, o guardião das éguas, como Rob gostava de zombar dele.
— Bom dia.
Com um ancinho no feno e curvado, ele lançou um olhar para trás e voltou a fazer o trabalho.
— Para o seu porte, creio que uma montaria mediana seria adequado. Um Cavalo-Crioulo deve te servir.
A fama dele era sem dúvida alta para captar qual animal se assemelhava a quem iria comprá-lo. E endireitando as costas, se espreguiçando, deu pra ver a barba rala e seus olhos negros.
— Posso te vender por duas moedas de ouro, nada além disso.
— Não tenho estábulos — respondeu Orion. — Posso alugar ele por algum tempo por uma moeda de ouro e devolvo depois?
O homem fez uma careta de lado e viu que não era um péssimo negócio.
— Eu seria uma pessoa horrível em dizer que uma moeda de ouro é ruim. Tem alguma estimativa de quanto tempo vai demorar para devolver?
— Alguns meses, no máximo. Devo fazer uma viagem e voltar para a cidade depois.
— Só um segundo. — Danis foi até uma porta, chamou e deu ordens para alguém dentro da casa. Orion reparou que as lojas mais básicas do distrito norte eram feitas de pedras ou mármore, sendo quase impossíveis de queimarem. Ao voltar, ele continuou:— Meu garoto foi pegar o cavalo pra você.
A moeda de ouro foi dada a ele e Orion ficou andando de um lado para o outro por quase dez minutos. Abriu seu Quadro Arcano e ficou dando algumas mexidas em matrizes da Escola de Fogo, aprimorando com símbolos e conceitos da Escola de Vento.
Escutou o relincho nas suas costas. Ver o animal lhe trouxe uma sensação complexa. O pelo cinzento misturado no negro era uma pelugem reluzente e se assemelhava aos seus olhos quase tão vivos quanto fogo.
O rosto largo e um porte poderoso, com o peito estufado. E suas duas orelhas eram mais afastadas, dando liberdade para a crina balançar ao seu trote.
— Esse é o Campion. — Orion só prestou atenção no garoto porque ele disse. O cavalo tinha o fascinado. — Ele gosta de beber bastante água e é bem obediente. Qualquer lugarzinho calmo, e ele vai ficar.
Tomando as rédeas, se aproximou e passou a mão em sua pelugem. Liso e grosso. Um animal fantástico.
— A sela está aqui. — O garoto jogou por cima e amarrou algumas fivelas na barriga dele, ajeitando a postura do cavalo e deixando Orion montar. — Senhor, eu proponho que pegue uma rua mais vazia se estiver saindo da cidade.
— Por que?
— As principais tem muita gente andando. Vai ficar parado lá por muito tempo. É só um conselho.
Orion assentiu, seguiria as palavras dele.
— Acho que darei um nome a ele. Mallos — passou a mão no pescoço avolumado dele —, o que acha?
Outro relincho mais baixo e um abano de cabeça. Orion sentiu que ele gostou.
— Ótimo, vai ser esse.
O segundo local que Orion visitou foi uma loja bem no meio do distrito norte. Lá, os Aprendizes da Torre Eylan e Babel faziam rondas, conversando sobre os estudos da magia e seus usos mais diferenciados.
As roupas deles eram quase idênticas aos dos Magos, a cor dependia da Escola a qual pertencia ou seguia, com uma insignia a esquerda do peito, um pequeno pássaro metálico batendo suas asas.
Era um símbolo estranho já que os pássaros costumavam voar para longe quando o frio do inverno se aproximava. Qualquer com um senso saberia que aquilo iria ridicularizar a Ordem dos Magos.
Entrou na loja e viu a bancada cheio de livros e papiros. Alguns velhos que liam seus livros não perderam o foco com o sino na porta, mantendo-se de cabeça baixa. Orion ficou perto da bancada e esperou uma senhora sair dos fundos, ajeitando o óculos.
— Ah, boa tarde, rapaz.
— Boa tarde, senhora. Eu estou procurando um livro chamado ‘Pequenas Encrustações’. O autor é Nicolau Nicolei. Datado faz quase cinquenta anos.
Ela sorriu com sinceridade.
— Faz tempo que não vejo alguém tão objetivo. Posso perguntar quem seria o seu mestre?
Mestre? Acho que é lógico pela minha idade.
— Fazin Myag, da Torre de Babel.
O nome do Mago atraiu os olhares dos senhores que liam. Alguns até ergueram a sobrancelha, surpresos. A vendedora, além de não revelar espanto, se mostrou bem receptiva.
— Faz alguns anos que o senhor Myag não vem nos fazer uma visita. É sorte a nossa dele lembrar de nós e mandar seu aprendiz.
— Ele sempre comenta daqui, senhora. Vou falar com ele para vir quando voltar para encontrá-lo.
Buscar o livro demorou alguns minutos. Tempo suficiente para Orion dar uma olhada nos papiros em cima da mesa e rabiscar algumas coisas um papel em branco. Quando a senhora retornou, entregou a ele e pediu cinquenta moedas de prata.
Sem muito o que fazer, Orion entregou quase chorando.
Tinha ficado sem nada desde que moveu toda a fortuna do nome do Professor para o Tomo.
— Estudem bem, rapaz. Fazin é uma ótima pessoa.
— Claro que é. Alias, isso aqui é pra você. Uma ajuda com essas runas.
Orion deixou o papel em cima da bancada e saiu andando.
O papel foi lido pela senhora, dando uma leve encarada, e a medida que listava cada uma das instruções, seu choque aumentava.
— Isso é perfeito — ela revelou, ansiosa. — Simplesmente, perfeito.
Deu a volta no balcão e correu até a porta, procurando por Orion. Ele já estava longe, montado em Mallos, trotando para a saída norte de São Burgo.
I
O mapa de Saiss indicava que a viagem demoraria dez dias no máximo. A Amplidão era bem ao norte, depois de um bosque, cortando um rio e chegando perto da montanha que Orion tinha visto ao ir na direção do Templo de Maio.
Só que, a viagem em si era mais calma do que realmente achou ser possível. Mallos trotava devagar e sem fazer muito alarde, não relinchava ou brigava ao caminhar em estradas mais pedregosas.
E o céu azul facilitava essa travessia rápida.
A única coisa que deixava a mente de Orion mais concentrada era as incrustações que queria aprender. O livro de Nicolau tinha uma base bem pequena comparada aos de Josef Ancar, que estudava bem aos poucos, por causa da tradução mais demorada e um conteúdo arcaico.
Queria muito usar as manoplas de couraça reforçada feitas por Milan. Só que queria implementar também um pouco da capacidade de armazenamento dos Criânio dado por Abominável. E o nome dada as magia que uniam algo inorgânico a mana era dotado de uma raça carrancuda e pequena, vivendo no Extremo Norte, em outro continente.
Os anões de Juntorril.
Runas Justas, como eles chamavam. Uma habilidade de unir símbolos e matrizes de pequena ou média escala em peças de armadura ou armas, objetos ou pessoas, dependendo do nível de quem a conjurasse.
E a couraça reforçada só tinha um pequeno defeito: Milan tinha feito ela fraca demais.
Mesmo tendo dupla proteção, sua ligação era fraca e Orion não podia implementar runas dentro dela. A conta no Arcanismo Comum era simples se comparado aos datadores dos Anões.
A couraça inteira representava sua capacidade máxima, seus 100%. Mas, Milan reforçou ela e usou metade de seu armazenamento. Ou seja, uma runa com tamanho ou poder acima de 50% era impossível de ser implementado.
O trabalho das Runas Justas era simplesmente burlar essa numeração e implantar as runas em todo o seu poder. Bom, Orion achou que seria fácil. Se fosse, os Anões tinham conseguido resolver esse problema antes de trezentos anos de estudo.
E só um livro base de Incrustações Mágicas não seria suficiente. Por isso, Orion resolver agir de maneira autoral.
Naquela noite, sentou em uma pedra, no meio do bosque. Expandiu o Sol Negro ao redor da mão em uma escala menor, tentando controlar o fluxo de sucção da mana, e tocou o solo.
Aos poucos, as pedrinhas começaram a pular em sentido horário, todas juntas.
Se Orion tivesse certa, seu núcleo era o próprio Sol Negro, dentro de si. Conseguia senti-lo, mesmo que os outros quatro parecessem mortos. E a quantidade de mana que podia armazenar era temporária.
Quando parou de sugar a mana da terra, apontou o dedo para alguns pequenos gravetos amontoados.
— Viesk: Fagulha.
De onde estava, os galhos se incendiaram de uma só vez, clareando os arbustos e árvores ao redor. Mallos se aproximou, abaixando a cabeça ao lado de Orion e empurrando-o pelo ombro.
— Eu peguei um pouco antes de sair.
Tirou cerca de cinco maças da bolsa e o deu. Mallos mastigou duas quase de uma vez, levando uma terceira para outro canto, e deitando sozinho.
É um cavalo bem inteligente.
Focou na manopla dessa vez. O livro de Nicolau Nicolei dizia que para um objeto ser incrustado, ele precisava ser aberto magicamente pelo seu portador. Ou seja, Orion precisava acessar suas estruturas internas e mexer em suas matrizes de composição.
E acessar essas mesmas matrizes era o que nenhum humano, fosse Mago ou Sacerdote, aprovava. Por isso, a fama dos Anões não era das melhores. Seus produtos, sim. Eles, não.
Pra alguém que mexia sempre nas estruturas de magia ativas e passivas, Orion só precisou abrir seu Quadro Arcano e tocar na manopla usando o resto da mana armazenada.
Os símbolos, letras e escrituras começaram a ser descritas em amarelado, correndo pelo quadro transparente. Orion só precisou dar algumas olhadas para ver as brechas e falhas no couro reforçado.
Não que Milan tivesse errado. Qualquer coisa possuí falhas e impurezas, era assim que Monique Aurelius decifrava as magia e as quebrava.
A habilidade dela era surreal, como se pudesse destruir completamente tudo o que tocava. E Orion não tinha como conjurar uma magia individual.
O tipo de couro, como foi forjada, o tipo de material usado na couraça e também os símbolos mágicos padrões de cada estrutura. Em escala pequena, a manopla tinha cerca de quinhentas maneiras de ligar uma runa a outra, e Milan usava a ferraria como sua base.
E o símbolo que encaixou no meio de cada ligação do couro foi ‘Acumular’, tão básico que uma criança de cinco anos poderia aprender e escrever.
Fechou o plano de decodificação do equipamento e encaixou na mão, tendo fivelas até o antebraço, prendendo a camisa e o conjunto de casacos que usava aquela noite. Pôs a mão no chão novamente e refez o processo de ‘Sucção’.
A mana se uniu ao seu braço e com o comando de ‘Acumular’ já gravado na manopla esquerda, fez com que ela percorresse para o tecido reforçado, brilhando fracamente em um tom amarelado.
Inspecionou a movimentação dos dedos e também do pulso, não mudando em nada.
— Pra uma primeira incrustação, está ótimo.
Orion ficou orgulhoso de si.
Só não sabia que o que tinha feito havia quebrado setenta anos de estudos dos Anões. Tudo isso em uma única noite.