Passos Arcanos - Capítulo 56
Durante a primeira semana de reconstrução, Rob focou o esforço dos moradores para erguerem casas próximas ao Tomo, na parte mais elevada da cidade. O motivo era que ali teriam proteção e também serviriam como ajudantes nos afazeres domésticos.
Alguns não gostaram porque eram comerciantes com bolsos mais recheados, esses Rob descartou e deixou que se fossem do Tomo.
As famílias mais humildes ganharam um quarto temporário nos andares superiores e alguns até mesmo se voluntariaram para ajudar Altero nas reformas e no trabalho braçal. Tendo somente três rapazes, o velho marceneiro ganhou ajuda de quase vinte mãos e braços.
Em cinco dias, mais de dez quartos foram alocados e uma mesa maior foi colocada no pátio fechado de treinamento, onde se reuniam a noite para jantar.
Foi um tempo que se esqueceram que a cidade havia sido atacada. E sorriam comendo os pratos feito por Saiss.
Porém, no meio dos sorrisos, Wallace e Tito comiam calados. Os dois haviam voltado de uma missão dada por Aroldo aos arredores de São Burgo, e os arranhados que receberam nos braços e no rosto chamavam atenção dos que o conheciam.
E do outro lado da mesa, Truman conversava com Sind sem se importar com o decoro ou a maior parte dos moradores ao redor. Era como se tivesse os dois ali, rindo e falando sobre festivais e lugares que queriam visitar.
Dali, a ceia se encerrou e foram dormir quem tinha trabalho pela manhã. Wallace dividia o quarto com Truman. Ele deitou no colchão. Caçar um bando de Javalis Zebrados foi mais cansativo e só teve função de suporte para as flechas de Tito.
No dia que São Burgo foi atacada, não tinha sido ele quem ajudou Orion contra o Elfo Negro. Tinha chegado para escoltá-lo. Não teve tempo para pegar os peixes maiores.
Não era somente Tito, mas Orion também. A força que se reunia ao redor deles, e agora usava magia, de algum jeito estranho. Se ele já era diferente tendo apenas sua memória fotográfica, seria quase imbatível conjurando magia.
Ainda encarando o teto, ouviu a porta de seu quarto ser batida.
— Me encontre no Pátio Fechado. — Era Orion. Os passos se distanciaram da porta.
Devia ser mais uma missão que seria dada por Aroldo. Até porque ele não colocava mais nada no quadro por causa das pessoas que andavam pela casa.
Nem fez questão de pegar sua arma ou suas armaduras de couro, só levantou e seguiu para o pátio. Passou pelo corredor meio escuro e passou pela saída, dando de cara com Aroldo, Fazin e Rob. Orion não estava lá.
Aroldo pediu que se aproximasse. Tinha os dois braços atrás da costas, mal iluminado pelas tochas crepitando ao fundo, nas paredes. O Comerciante e o Mago esperavam ao seu lado, ambos fitando-o.
A seriedade deles não era algo a se questionar.
— Sabe por que foi chamado aqui, Wallace Baker?— Aroldo perguntou.
— Achei que foi para me dar alguma missão. Mas — passou os olhos sobre os outros dois —, acho que estou errado.
— Bem errado. Hoje vai ser um pouco diferente. Não porque eu estou feliz, mas porque existe uma diferença muito grande entre ser certo e fazer o certo. E o Tomo estará passando por uma reformulação nos próximos meses. Preciso de pessoas como você ao meu lado.
— Fico honrado, senhor.
Aroldo assentiu.
— Por isso, quero te dar isso — Um dos seus braços trazia um pequeno anel, diferente do que Wallace usava. — É feito de Puro Ferro Negro, do mesmo tipo que eu uso. — E deixou que visse o objeto em seu dedo anelar. — É seu.
Recebeu dando uma boa olhada no que Aroldo usava e encaixou no anelar também. Era tão escuro que nem mesmo as luzes das chamas refletiam na superfície.
Quando olhou para Aroldo, viu a persona de Orion sentado na mesa, longe dos três, com uma caneca na mão. Ao seu lado, Tito e sua comum expressão indiferente.
— Wallace Baker, a partir desse momento, jura proteger o Tomo de Ferro, proteger as pessoas inocentes que merecem sua força e a Ordem que um dia virá a você e pedir que sacrifique sua vida em prol de uma geração futura?
Ele dobrou o joelho no mesmo instante. Era pra isso que tinha treinado a vida inteira.
— Eu juro. Juro pela minha vida.
— Ótimo. O título de Cavaleiro é seu. E como sua primeira tarefa, estará na frente da formação de um esquadrão com Tito Baker.
— Sim, senhor.
— Se levante. — Wallace o fez, animado. Aroldo continuou:— Sua força e sua técnica superam e muito aos outros. Assim como proteger é um juramente, ensinar aos mais crus também é. Seja correto, seja duro, seja fiel ao seu próprio código. E assim como o Anel de Ferro Negro, nenhuma chama do mal irá te corromper. — Fez uma pausa, sorrindo. — Parabéns, rapaz.
Segurou a própria felicidade e só esticou o braço, cumprimentando-os.
Como seu pai iria reagir se soubesse que tinha se tornado um Cavaleiro com só quatro meses em São Burgo? Claramente diria que eles estavam desesperados demais ou que os outros Cavaleiros teriam morrido de fome ou sono.
O humor de Helio Baker fazia falta. E naquela noite, a única coisa que queria era poder mostrar ao pai que tinha feito a escolha certa.
A escolha de proteger o futuro.
I
— Você deve ser Tito Baker. É um prazer, eu me chamo Krens.
A estranha roupa azulada do homem deixou Tito um pouco surpreso. Era parecido com um robe, como os Magos costumavam vestir, mas tinha um estranho barbante dando duas voltas ao redor de sua cintura, com um nó.
Além de uma braçadeira de leão e um colete fino negro com bordados dourados.
Não fazia ideia de quem fosse esse homem. Mas, pela quantidade de homens que o seguiam, era importante.
— Sou eu. — Ele abaixou e pegou as tábuas chamuscadas. — Precisa de alguma coisa?
Krens esperou até que ele ficasse endireitado, com a madeira nos ombros.
— Eu quero dizer que fiquei impressionado pela sua capacidade. Seus disparos são quase tão perfeitos quanto um Arqueiro. Vim pessoalmente perguntar se gostaria de fazer parte dos Krasios, estamos formando um grupo de…
— Não estou interessado. — Ele se virou, deixando os moradores que ajudavam e até mesmo os subordinados do homem surpresos. — Eu sou um ajudante hoje, não arqueiro. Se querem conversar, procurem Aroldo ou Wallace.
Ele andou até uma pilha de tábuas e jogou por cima. Todas queimadas, seriam usadas depois pelo Professor.
— Acho que não entendeu — outro velho falou com um pouco de raiva. — O próprio líder dos Krasios está aqui para te pedir. Essa é a uma oportunidade que pessoas comuns não tem.
— Que pena. — Tito voltou e pegou mais algumas tábuas. — Tem tanta pessoa comum com boa habilidade espalhado por ai. Estão perdendo tempo comigo.
— Entendo. Você realmente faz parte do Tomo de Ferro. — Krens suspirou com pesar. — Um grupo tão pobre realmente possui talento para achar indivíduos habilidosos. Acha que eles vão conseguir te pagar o suficiente quando seu nome estiver nas alturas?
— Olha, senhor Krens. — Ele bateu as duas mãos e os encarou. — Pode guardar essas ofertas. Sou um Baker, e assim como todos os outros, faço parte do Tomo de Ferro. Insultar minha família, insultar meu grupo, a cidade que estou tentando ajudar não vai fazer diferença.
O próprio Krens deu um sorriso lascivo.
— E por que acha que minhas tentativas não vão dar frutos? Posso ir atrás dos seus amigos.
— Pode tentar, se quiser. Ele já nos avisou que viria.
— Ele?
Tito esboçou um sorriso que Krens odiou ter visto.
— O Professor.
II
Rob e Orion entraram na loja. E foram interceptados por dois guardas grandes como montanhas.
— Da última vez foi fácil de entrar — provocou Rob com uma risada. — A princesinha não quer nos ver? Eu trouxe alguém importante.
A resposta veio de dentro, sonolenta e cansada:
— Deixem, meninos.
Os dois saíram da frente. Orion entrou depois de Rob, e ficou surpreso com a mulher sentada do outro lado da mesa. Seus olhos queriam fechar de qualquer maneira e ela se forçava a continuar acordada.
E sua pele bem roxeada era resultado dos anos usando a pedra Zonso. As veias da têmpora se erguiam e os lábios ressecados, como se não tocassem a água por meses. Aquele era o estado de alguém em estágio crônico.
— Kassandra, minha querida — Rob abriu os braços e se jogou na cadeira, cruzando as pernas. — Está linda hoje. Tem usado…
— Pare com isso.
Rob piscou duas vezes antes de virar sua cabeça. Orion passou por ele e deu a volta na mesa. Esticou a mão para ela.
— Senhora, posso?
— A mão? — Ela meneou a cabeça para um dos seus guardas que ajudou a erguer o braço na direção dele. — A doença atingiu um estágio bem mais avançado nessas últimas semanas. E não consegui usar a pedra.
— A poeira restringiu as veias — Orion sentia ao tocá-la. Um dos minérios mais resistentes já listados era resistente ao sangue humano, sem conseguir diluir. Por isso, sua toxidade era lenta e mortal. O vício levava a mais, prejudicando ainda mais. — Está perto do coração.
— Eu sei.
— A senhora Kassandra teve uma convulsão faz duas noites — um dos guardas falou. — Ela está fraca demais pra andar. Até beber ficou difícil.
— O pó atingiu a pele também — Orion afirmou. — Pode pegar uma cadeira pra mim, rapaz?
O outro guarda foi puxou uma do fundo e deixou que Orion se sentasse. Os dois ficaram observando atentos, qualquer movimento em falso, cortariam ele ali mesmo.
Com bastante cuidado, Orion pôs o braço de Kassandra sobre a mesa.
— Quero que feche os olhos.
— Não posso. — O restante da força veio com a voz. — Se eu fizer, vou apagar pra sempre.
— Só feche. Juro a você, pela magia de Maio, que vai ficar tudo bem.
Sua boca tremulou.
— Maio?
— Sim. Confie em mim, senhora Kassandra.
Se deixando levar, ela respirou fundo. Orion recostou-se na cadeira.
— Hora de começar. Rob, me dê a Criânio.
De dentro de seu bolso, uma pedra brilhante azulada foi entregue a ele. Tinha pedido a Abominável para que achasse um minério que conseguisse armazenar mana a vontade, e ele tinha um sobrando que achou no ano passado.
Orion sugou runas e magia de Fazin armazenando na pedra e a fazendo de seu cartucho de magia conjuradas. Só que para aquele momento, seria alimentada.
A mancha negra assumiu seu braço, engolindo os dedos e a palma. Orion fitou os dois guardas.
— Não se preocupem. É minha magia.
Levou a mão e tocou o pulso. A mancha correu de sua pele para o da Kassandra. E sumiu entre os poros. Orion controlou o movimento e o fluxo de sucção, atravessou o braço, ombro e aproximou ao peito.
Para conseguir sugar toda a parte mágica do Zonso, a pessoa deveria estar completamente fora de si. O núcleo mágico estaria desprotegido, como o dela, e Orion poderia observar o interior aos olhos da mancha.
Uma esfera brilhante de pura mana.
Assim se parecia o núcleo. E flutuando ao redor dele, pedras rosadas e fragmentos roxos. Focou nelas e respirou fundo. De uma vez só sugou a mana de Criânio, e liberou para dentro do corpo.
O Sol Negro tomou forma em seu braço. E a mancha negra e expandiu indo pra cima do Zonso.
O processo inteiro durou uma hora. Orion sugava a pedra do sono e jogava seu conteúdo para dentro de Criânio invertendo as habilidades. Aos poucos, a cor de Kassandra retornou ao branco e depois o moreno.
Os guardas quase surtaram vendo os lábios, os olhos e o nariz voltar a ganhar pigmento e seus cabelos macios de novo.
Orion tirou tudo de ruim de dentro dela, e quando puxou o braço, a mancha negra correu para si.
Apenas uma gosma rosa permaneceu na área do contato. Orion limpou também.
— É suficiente. — E se levantou, deixando que os dois se aproximassem de sua senhora. — Ela deve dormir por dez horas antes de acordar. Água e comida, para começar. Nada muito pesado. Se não tiverem como preparar, vão até o Tomo de Ferro e digam ao Saiss que foi um pedido de Rob.
— Ei — o garoto reclamou ainda sentado ali. — Por que eu?
— Porque ele te conhece bem. — Voltou aos guardas. — Entenderam, senhores?
— Sim, claro.
Kassandra foi segurada e levada para dentro dos seus aposentos. O mais baixinho dos homens se apresentou com um saco de moedas, e esticou em sua direção com uma expressão contente.
— Não sei o que fez, senhor, mas espero que possa recompensar um pouco do seu tempo.
O pequeno saco de moedas não agradou nada Rob.
— Isso não paga nem o começo, garoto.
— Guarde isso pra vocês — Orion empurrou as moedas de volta. — Vai ter um dia que precisarei da ajuda de Kassandra. E esse vai ser o pagamento.
Rob recuou primeiro e depois Orion, saindo da loja. Acenaram para os dois grandalhões na porta e ficaram a luz do sol no beco. O Comerciante bocejou e espreguiçou de um lado pro outro.
— Achei que iria demorar mais. Com o Gruu foram quase três horas.
— Seu amigo é imenso, Rob. Ele não estava pior do que Kassandra porque a gordura tinha consumido bastante do Zonso.
Dando de ombros, o garoto saiu andando.
— E quem iria imaginar que tirar a pedra do sono também o faria perder vinte quilos.
Orion o seguiu.
— Pessoas gordas tem benefícios diferentes.