Passos Arcanos - Capítulo 55
Orion caminhava entre as madeiras carbonizadas, e os choros das pessoas vinham com a mesma intensidade do odor. O cheiro de queimado tinha aquele sentimento de dor, do trabalho de anos conquistados sendo jogado na lama, das famílias que deram suor e sangue para construírem suas histórias.
E em uma única noite, os prisioneiros fizeram do clamor de uma cidade pacífica o palco de uma sangrenta batalha.
Cairo Rent tinha dito que a guerra era avassaladora. Entendia agora o motivo de suas palavras. Uma cidade tão afastada ainda era afetada. As Caldeiras tem sorte, muita sorte.
Atravessou metade da cidade arruinada e chegou a Estrada de Pedra, onde o Banco Central era protegido. Escolheu um beco solitário e mais escuro, ergueu o capuz e pôs a runa que seu pai havia montado em funcionamento, modificando sua voz.
Saiu do beco na outra direção, já vendo o edifício de pedra. Sua porta reunia comerciantes, lojistas, Cavaleiros e Magos. Ao pisar no pátio, seu braço direito oscilou e sugou uma parcela de mana do ar. Depois, liberou com intensidade.
Os primeiros a sentir foram os Magos, virando e tomando um susto.
— É o Professor.
Orion parou e esperou. Não daria para passar sem encostar neles. Os Banqueiros viriam até ele.
Os Cavaleiros também pararam de gritar contras as portas fechadas do Banco. E a reação se espalhou como água corrente. Os lojistas, comerciantes maiores também cessaram, fitando-o.
O silêncio, esse era o poder atual de sua alcunha.
— Ora, o grande salvador de São Burgo está presente. — A voz vinha de outra ponta. De outra entrada da Estrada de Pedra. Ele usava um robe azulado e um pequeno colete marfim, com incrustações douradas, num desenho de tigre. Olhos negros e um cabelo branco puxado pra trás. — Soube que venceu Azrael Carnage numa disputa muito acirrada.
— E quem seria você? — Orion perguntou.
— Alguém que o derrotaria duas vezes mais rápido e não deixaria essa cidade pegar fogo.
Os Magos atrás do velho riram pela resposta, trazendo raiva aos moradores de São Burgo.
— E por que não estava aqui quando a cidade pegou fogo? — Orion girou o corpo para ele. Era um duelo que queria. Então, daria um duelo a ele. — Ou os Krasios simplesmente acham que só dizer que fariam resolve o caso? Alias, não foi a sua cidade que foi sitiada por Feiticeiros no ano passado e teve um prejuízo de 4 mil moedas de ouro?
— Ele sabe ler o jornal. Que ótimo. Menos um analfabeto na cidade.
— Um analfabeto saberia lidar com feiticeiros mais rápido do que vocês. — Orion deu uma risada baixa. — Pelo menos, saberiam lidar com magia vinda de pactos. A Torre de Optus criou ralés ao invés de Magos.
— E quem forjou o Professor? As Caldeiras? Aquele lugar no nada que só serve para dar problemas?
— Um lugar no meio do nada — Orion repetiu, assentindo. — Archaboom ganhou seu último confronto com bombas. Antes disso, conseguiu salvar um batalhão por uma comunicação via reconhecimento de mana. Tem disparadores automáticos. Uma runa defensiva de grau quatro. Vieram das Caldeiras. E o que veio de Santa Helena?
A boca do velho se ergueu em desdenho. Antes de conseguir, a larga porta do Banco se abriu.
De dentro, um senhor bem pequeno, de quase um metro apenas, tinha uma bengala para o equilibrar. E tremendo, levantou o dedo na direção de Orion.
— Economia lhe espera, Professor.
Orion fez uma mesura leve e caminhou em sua direção. Um corredor se abriu pelas pessoas, e ele passou caminhando lentamente. Ao se aproximar do senhorzinho, esperou até que erguesse a cabeça.
— O Guia levará o senhor.
— Obrigado.
Um jovem rapaz apareceu andando. Usava um terno negro, sem gravata. Cabelos cortados e olhos afiados. Ele se curvou e esticou o braço. Orion entrou e esperou que o rapaz o ultrapassasse e dirigisse o caminho.
O salão tinha sido o único grande cômodo que visitou no Banco Central. Depois de atravessar portas, corredores largos e uma escadaria para o segundo andar, Orion já tinha se deixado levar pelo desconhecido, apenas gravando o caminho.
O Guia parou diante uma porta vermelha e girou a maçaneta pra ele.
— Por favor, senhor. E… obrigado.
— Por qual motivo?
Nos olhos negros, satisfação.
— Por ter protegido a cidade.
Quando entrou, Orion viu o rapaz fechar a porta e sair. Ali, um homem velho sentava na cadeira e lia com óculos sobre o nariz. Segurava o próprio queixo e depois fitava outro papel ao lado, anotando algo.
— Sente-se, Professor — disse apontando para a cadeira a frente. — Não temos muito tempo.
Orion obedeceu e sentou.
— Está aqui por qual motivo? — Ele elevou o rosto. Economia, como chamavam o homem que comandava o sistema monetário de toda a cidade. — Não me lembro bem porque envolvia alguma coisa de troca.
— Estou aqui pela minha conta bancária feita nas Caldeiras por Silena Vidian. Gostaria de saber quanto eu possuo.
— Ah, apenas isso? — Ele saiu pegando um livro de capa verde e abriu levando o dedo nas linhas. — Está por aqui. Deixa eu ver. Só um pouco. Ah, achei. Seu saldo no Banco Continental está com 3 mil moedas de ouro. Porém, seus projetos são um pouco desproporcionais. A Ordem está pagando uma grande fortuna. Que interessante.
— O total, por favor.
Economia piscou algumas vezes e levou o dedo para as linhas finais.
— São um total de 50 mil moedas de ouro. — E fitou o Professor. — Surpreso?
— Não. Poderia fazer a conta de quanto eu ganharei em um ano pelos projetos que estão em atividade?
— Claro. Isso é fácil. Só precisamos converter o seu ganho do último ano para o próximo, mas temos que levar em consideração também a guerra e os ganhos e perdas. Se eu fosse calcular tudo de cabeça, daria em torno de 70 mil moedas de ouro.
Era o suficiente? Orion não tinha certeza.
— Eu quero comprar toda a parte destruída de São Burgo.
Economia fez uma pausa, e endireitou a postura. Levou um tempo e retirou os óculos do nariz, repousando na mesa. Por algum tempo, ficaram em silêncio.
— E por qual motivo quer aquela parte da cidade? Está destruída.
— Porque sei que o foco do Banco Central será dado a parte nobre. E também sei que o grupo Krasios está aqui justamente porque eles pretendem fazer uma oferta para restruturar a cidade.
Tanto Orion quanto Economia sabiam bem desse feito.
— Seria uma oferta e tanto vindo deles. Só que existe algumas coisas além de dinheiro que envolveriam a cidade, Professor. Digo, não que seu nome não seja grande, mas não é consolidado. Os Krasius tem uma base sólida. O que nos daria para contrapor essa base deles?
— O que querem?
O sorriso dele cresceu.
— Você quer jogar a responsabilidade para o nosso lado. Não é um ato nobre.
— Vender as terras das pessoas que perderam suas casas também não é. Nem mesmo prestar atenção nas pessoas que estão na porta de seu banco pedindo ajuda. — Orion deu de ombros. — Existem muitas definições de nobreza.
— Ótimo. Eu sou insultado no meu ambiente de trabalho. — Economia voltou a colocar o óculos. — Se acabou de fazer seu péssimo discurso, pode sair. Sabe o caminho até a porta da frente.
Orion se levantou, agradecendo num gesto de mão.
— Antes de eu ir, coloque o dinheiro que recebi e os próximos na conta do Tomo de Ferro. Se não quer reconstruir a cidade, deixe que alguém assuma essa função.
Ao abrir a porta, o Guia o esperava.
— Professor — Economia o chamou. — 60 mil moedas de ouro. E o seu nome será oculto dos papéis. A cidade ainda estará em controle do Banco Central.
— O Tomo tomará conta da reconstrução — respondeu ao se virar. — E quanto os Krasius terão da cidade?
— Não tenho como vender toda aquela área de uma só vez. Eles terão metade do terreno se quiserem comprar. — Economia mostrou um olhar cuidadoso. — Se quer entrar em guerra contra um grupo milionário como eles, saiba que terá que dormir com um olho aberto.
— O Professor não dorme, senhor — Orion deixou sua voz real sair. — E nem o Tomo.
— Gosto de como fala. O distrito Sul é seu.
Orion saiu e fechou a porta.
I
Aroldo lia a carta recebia do Banco Central e depois passou a Fazin e Rob. Os dois leram um após o outro. Sendo o último, Rob soltou uma risada fraca e depois abanou a cabeça.
— Parece que agora temos uma missão bem importante — Fazin disse aos dois. — Precisamos começar a ajeitar a parte destruída da cidade. Como faremos isso?
— Teremos que fazer muitas mudanças — Rob respondeu. — Deixe que eu falo com os lojistas. Faremos uma reunião em forma de sindicato e levarei as notícias.
— A Torre de Eylan vai entender meu pedido — Fazin anunciou. — E Paan já se recuperou. Vou conversar com ele sobre os planos do Banco Central.
Aroldo ainda lia o nome do Professor e também a conta que foi enviada a eles. 70 mil moedas de ouro do próximo ano seriam entregues como empréstimo. Era uma soma que eles nunca tinham juntado sem ter problemas envolvidos.
A última vez que juntaram quinze mil, alguns membros roubaram o tesouro e foram embora, deixando-os na miséria. Levaram mais de dois anos para se reerguerem.
— Não temos Cavaleiros suficiente para tomar conta da cidade por nós. Os outros grupos não vão querer se juntar a nós.
— Use a moeda de troca.
Aroldo olhou para Rob.
— O que seria moeda de troca?
— Dê algo para eles no futuro, e diga para pagarem no presente. É como costuma ser feito entre a parte nobre. Me empreste sua força e te dou poder no futuro.
O Cavaleiro concordou. Pegou o copo de café e se levantou, indo até a janela do segundo andar, no quarto dado a ele. Os garotos treinavam normalmente, lutando uns contra os outros. Esse era o futuro que seu mestre havia visto.
— O Tomo ainda será forte, tão forte que fará o necessário para que a cidade não desabe em ruína. Lembre-se, somos mais do que o tempo, mais do que o lugar. Somos o Tomo.
— Somos o Tomo — Aroldo adorava essa frase. Sorriu ao lembrar do seu melhor amigo. Seu sonho e também sua realidade determinada. — Está na hora da mudança, como o senhor previu.