Passos Arcanos - Capítulo 3
— Estou estudando outras coisas no momento, pai — Orion não ligou para os comentários sobre as magias ativas que os Anciões discutiam nos últimos dias. — E eles não quiserem ouvir a gente da última vez, por que está tão animado?
— Parece que descobriram uma nova forma de assimilar magias passivas sequenciais — Oliver tinha um jornal na mão, lendo a notícia do continente. — Eles acham que podem vencer a guerra, e a pessoa que respondeu veio aqui da Caldeira.
— Impressionante. — Orion usou palavras vazias para continuar escrevendo algumas pequenas runas, interligando-as e formando um símbolo diferente do que estava acostumado. As Escolas Elementares, dos Quatro Primários, se baseava bastante em porções iguais de mana por todo o símbolo, ou seja, independente se uma pessoa trabalhasse por dez anos ou cem anos, a magia seria usada de maneira igual para todos.
Foi uma forma da Ordem dos Magos criar um procedimento para que todos seguissem. Esse mesmo procedimento era o que impedia dos Magos e Aprendizes de Magos se tornarem Arche-Magos ou Grandes Magos.
A magia em cada pessoa era diferente e, além disso, a forma como se era entendido a magia também deveria ser levado em conta. Uma pessoa com dez anos de prática perderia para alguém com cem anos, porém, usando as mesmas magias, o embate poderia ser considerado empatado.
A tolice de criar um sistema único para auxiliar todos os Magos levava os próprios Magos a não aprenderem nada.
E a função de Orion, um Escolástico, era determinar as mudanças, recriar uma possibilidade e montá-la na prática.
— Acabou de ler as ‘Leis de Distribuição’, pai? — Orion não desgrudou o lápis do papel, fazendo outro desenho totalmente diferente. — Eu preciso ler depois.
— Está ali junto dos livros que Raimundo mandou pra você. Só pegar.
— Ele mandou livros? — Orion piscou várias vezes, olhando para trás. Oliver, do sofá, apenas transpassou a página do jornal para o lado. — Quando ele enviou?
— Faz dois dias, eu acho. Eu fiquei fora, acho que esqueci de falar pra você.
Cinco dias recriando os projetos que Raimundo tinha mandado e só agora soube que ele tinha enviado os livros que pediu. Orion se levantou da mesa e foi até a cesta com vários livros lacrados envoltos de um plástico transparente.
— Ele disse que foi um presente. Não tinha nada escrito na capa, então, achei que fossem sobre fantasia, já que gosta tanto.
— É, deve ser. — Orion pegou a cesta e andou na direção do quarto. Parou na mesa e pegou os papéis. — Vou descansar um pouco, pai. Depois eu faço aqueles exercícios que pediu.
— Tá bom.
Orion escondeu a ansiedade e só correu para seu quarto depois de sair pelo corredor. Fechou a porta girando a chave duas vezes e sentou-se na cama com todos os livros na mão. Pondo lado a lado, puxou o lacre do primeiro e virou a capa.
“Para um homem cujo potencial pode ser infinito. Um presente de Silena Vidian”.
— Esse é o ‘Enigma da Mana’. — Orion ficou chocado. Ele tinha feito uma lista para Raimundo dizendo que seriam os que mais queria ler no momento, mas nunca achou que ele realmente conseguiria e ainda mais de uma das famílias nobres da Caldeira.
O conteúdo desse livro datada de muito tempo antes do calendário mundial ser considerado AR, Apos a Revolução Maníaca. A quantidade desse livro no continente não chegavam a dez, e um deles estava ali, em sua posse.
Sem perder tempo, ele virou a página e começou a ler.
Se perdeu por quase dez horas. Lia sem parar.
Os Símbolos e Runas, antes de serem recriados por Oswald Agnolio, um dos Arcanos mais brilhantes da história, sempre foram um enigma para as civilizações. A base chamada Arcanus Modulus vinha de tempos remotos com grandes falhas em sua criação.
Os Magos não eram chamados de Magos, e a Igreja não era chamada de Igreja. O mundo era diferente, e apenas algumas centenas de pessoas detinham o núcleo arcano em seus corpos.
Oswald Agnolio escreveu o Enigma da Mana como um método de auxiliar ainda mais a geração futura com os símbolo e runas. Exemplo disso eram as magias que sempre foram divididas em graus e níveis diferentes.
‘Esfera de Fogo’, magia de segundo nível, conjurado por um Aprendiz não surtiria o mesmo efeito caso fosse feito por um Mago de Segundo Núcleo. A diferença não estava na magia, mas sim na quantidade de mana imposta.
E para Orion que decifrava a mana, entender o motivo da mana se comportar de maneira diferente em corpos se tornava essencial. E ele mesmo, sem um núcleo mágico, teria a chance de entender o porquê de ter nascido sem um.
Chegando na metade do livro, deu um pausa indo para a cozinha e pegando um copo de água.
— Senhor Oliver, metade dos nossos Escolásticos estão sendo contratados pelas outras casas, e sabemos que seu filho tem uma média ótima para o Arcanismo. — A voz veio da sala, autoritária e bem rígida. — Gostaríamos de contratá-los como ajudantes.
— Faço serviços terceirizados, senhor Felipe.
Era raro Oliver falar com tanta formalidade. Orion se esgueirou para perto da porta e viu o homem sentado de frente para seu sofá. Seu terno era de linho preto, combinando bem com seus cabelos medianos presos atrás da cabeça. Até sua postura lembrava de um comerciante de alto nível.
Mas, os olhos dele, Orion conseguia sentir certo receio. Ele não queria estar ali, nem um pouco.
— Sei que metade das pessoas dessa ilha tem nojo de pessoas como eu e meu filho. Os Baker são parte de uma linhagem desonrosa, e dá pra ver que está aqui porque ninguém mais quer ajudar vocês. — Oliver tinha deixado um dos livros acima do colo, cruzando os braços. — Ainda que eu aceitasse, minha capacidade no Arcanismo é apenas Intermediária.
— Tenho certeza que poderíamos ajudar a melhorar. Temos muitos livros de Mecânica e Álgebra, até mesmo sobre Magias completas.
Magias completas não eram pouca coisa. Poucas famílias conseguiriam um livro com tanto poder. Eram considerados tesouros, e não estariam sendo usados como moeda de troca se não fosse alto tão importante.
— Mais fácil você tentar mostrar o que quer resolver e se conseguirmos, nos paga. É assim com todo mundo, até mesmo os Anciões são usados dessa forma. Tem algum rascunho desse projeto?
Orion entrou na porta com o copo na mão e o livro na outra. Dando as caras, seu pai o chamou para sentar-se ao seu lado.
— Esse é Felipe Vidian, filho e um dos herdeiros direto da família Vidian.
— Sou Orion Baker. — Orion fez uma menção com a cabeça. — Disse que precisava de ajuda com algum projeto, se meu pai não conseguir responder, nem precisa ir as outras famílias do nosso morro.
Oliver soltou um sorriso.
— Não sou o melhor, mas entendo bem, filho. Pare de tentar fazer nosso nome ficar melhor na frente dele.
— Na verdade, me foi dito para vir diretamente até o senhor — Felipe respondeu. — Por mais que eles não quisessem que conversássemos, disseram que você é melhor do que metade das pessoas da ilha, senhor Oliver.
— E quem disse isso?
— Cairo Rent.
Esse nome fez Oliver Baker estreitar os olhos.
— Cairo, conhecido como Matéria Prima, disse que sou melhor que metade das pessoas dessa ilha? — Nem ele acreditava nessas palavras. — Acho que ele se confundiu, então.
— Creio que não, senhor. — Felipe retirou um pergaminho da bolsa ao lado de si. Esticou na mesa, pondo dois pesos leves nas quatro pontas. — Esse projeto foi modelado em Mecânica Básica. Querem saber se conseguem achar uma solução, e ele disse que você teria a resposta.
— Mecânica Básica? — Oliver deu uma olhada por cima. Orion, no entanto, só de ver os dois círculos no meio conseguiu reconhecer aquele projeto. — Faz quanto tempo que estão trabalhando nisso?
— Dois anos, mas ninguém encontrou a solução.
— O quanto você conhece de Arcanismo Comum? — Orion perguntou-lhe.
— Intermediário em Arcanismo Comum e Básico em Evolução Arcana.
Orion balançou a cabeça várias vezes recuando para o sofá.
— Mesmo que meu pai te explique isso, você não conseguiria entender. Mecânica Arcana não tem nada a ver com Arcanismo Comum, é uma especialização. Mesmo que eu te explicasse o nível mais avançado, ainda seria complexo.
Felipe não gostou nada de suas palavras.
— Mesmo que eu não consiga entender, vocês poderiam responder.
— Não. — Os braços de Oliver cruzaram novamente. — É fora do que estou acostumado a estudar.
Orion foi o foco do homem.
— Consegue pelo menos modificar ou melhorar algo? — Uma pergunta simples e com significado imenso para Orion.
Claro que conseguiria. Na semana passada, ele tinha dado a resposta a Raimundo. Até mesmo comentou sobre diversas possibilidades de melhora em casa de aceitação de outras bases. Se quisesse, reconstruir um projeto desse duas vezes mais eficiente era possível.
Se faria? Negativo.
— A única coisa que posso dizer é que os canais de mana que ligam são estreitos demais, e por isso a quantidade que chega as bordas dos círculos, alimentandos as runas, são fracas.
Oliver deu uma olhada de novo e assentiu.
— Isso é certo. Pra conseguir usar toda a capacidade dela, precisaria ser no mínimo um Arche Mago. Se não for, nem precisa fazer força. E esses símbolos nas laterais, são feitos de Sucção e Atribuição, certo? Se tentar alterar…
— Não, pai. Os Símbolos são as únicas coisas que conseguiram acertar nesse projeto.
Felipe encarou Orion mais atento. O rapaz parecia entender melhor de Mecânica Arcana do que o pai, e viu claramente a posição dos símbolos. Para se ver através de um esboço, era necessário uma visão aguçada e precisa.
— Acha que os símbolos não vão machucar quem usar?
— Nunca disse isso. Falei que suas posições estão corretas, não que são os melhores símbolos. — Orion usou um lápis para marcar a ponta esquerda do papel. — Alterar a primeira camada defensiva vai quebrar o projeto inteiro, e como uma magia dessas parece ter quatro a cinco camadas, a melhor coisa é mexer nas partes mais profundas, onde o choque é menor. — Encarou o rapaz. — Consegue entender?
— Claro, prossiga.
Orion escreveu uma série de números e depois alguns símbolos, com notas rasas e pequenas sobre quais deveriam ser trocados e os efeitos que gerariam. Era comum que um Escolástico soubesse desse ponto, mas dependendo do ponto de vista de quem o via, era completamente fora do normal.
Pessoas como Oliver eram a maioria nas Caldeiras de Ilhotas, reconhecidas por dotarem de uma inteligência capaz de decifrar a mana e a magia. E pessoas como Orion, Felipe só tinha visto algumas em sua família, e todos eram velhos e arrogantes.
Depois de Orion explicar a base de uma runa com posições invertidas, para auxiliar na concentração da mana, encarou o visitante.
— É assim que você consegue melhorar um projeto baseado em camadas.
— Só usando runas de posição. — Maravilhado, Felipe nem sabia como agradecer. — Orion Baker, certo? Por que ainda não se escreveu na Conjunção de Escolástico da Caldeira? Com essa habilidade, conseguiria um ótimo patrocínio.
— Gosto de estudar sozinho. — Ele se levantou, pegando seu livro de capa preta e o copo vazio. — Agora vou dormir.
Felipe se levantou, esticando a mão.
— Agradeço pela aula de Mecânica Básica e Runas. Tenho certeza que vão gostar das melhorias.
Orion olhou para a mão de Felipe e negou com a cabeça.
— Sua família não precisa agradecer a nossa. — Caminhou para a cozinha. — É nossa obrigação ajudar de qualquer forma.
Orion lavou o copo e guardou, seguindo para seu quarto. Dentro, marcou a página que tinha acabado de ler e deitou para dormir. Antes de apagar, viu o projeto da Mecânica Básica em sua cabeça como se estivesse desenhado no teto e deu um sorriso.
— Eles não vão entender nada quando as runas falharem no meio da criação.
Por mais modesto que Felipe Vidian fosse, aquele pedido suplicante não era nada além de uma farsa. Todos conheciam bem como os Baker eram tratados pelas outras famílias das Caldeiras, e se rebaixar ao nível de um deles era a pior das humilhações.
Orion não apertaria a mão de um homem que quando tinha a chance menosprezava o seu nome. Seu próprio pai já tinha passado por situações piores, onde foi xingado e quase agredido por Escolásticos que perderam em duelos de Arcanismo.
Dias que até mesmo Orion pensou ter sido amaldiçoado e que acordava pedindo aos deuses que fosse diferente dali pra frente. E nunca era.
A pior das maldições, nas Caldeiras, era ter o sobrenome Baker atrelado a si.
E Orion mudaria isso a qualquer custo.