Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 8
— Sinto muito interromper a conversa de vocês, mas parece que temos um problema bem grande lá fora…
— Quão grande? — perguntou Anahí, enquanto posicionava uma das flechas na corda de seu arco.
— Não consigo ver direito nesse escuro, mas deve ter o tamanho de uns quatro bois… com mais quatro por cima.
— O quê?? E o que a gente faz então??
— Calma, Sophia, a gente vai dar um jeito. Né, Lucas?
Mesmo com sua fala comumente tranquila, o olhar de Anahí não escondia seu nervosismo.
Apesar de se conhecerem há pouco tempo, Lucas passava uma aura de liderança que acalmava os corações de quem o acompanhava. Contudo, nesse momento isso era um problema. A responsabilidade do que fazer diante da nova situação, agora repousava em seus ombros.
Deveriam fugir? Deixar seu irmão para trás seria impensável, mas também seria impossível carregar o Arthur enquanto fugiam das criaturas.
Ele deveria sair e ajudar os sobreviventes contra aquela coisa? Restaram somente quatro flechas com Anahí, poucas chances de que os três ficariam seguros e menos chances ainda de que ele sobreviveria lá fora.
“Sem chance de que seis tiros de revólver matem aquilo.” Lucas olhou para o revólver e depois para a criatura. “Mas eu com certeza vou acertar todos os disparos, eu te prometo… pai.”
O olhar conflitante e receoso sumiu de seu rosto — como se todas as dúvidas virassem certezas. Ele então segurou o cabo da espada. “Depois que acabarem as balas, só resta uma coisa a fazer, né?… vô.”
Anahí observou, espantada, a súbita transformação na expressão de Lucas.
Até mesmo Sophia, que estava desesperada até então, começou a se acalmar. Lucas estava apenas parado, olhando para ela, mas isso foi suficiente para que todo o desconforto e vontade de chorar fosse embora. Após ficar mais tranquila, Sophia disse: — Lucas… ocê tem um plano?
— Tipo isso. Ana, você fica aqui e cuida do Arthur e da Sophia. Se algum bicho daqueles entrar aqui, deixo contigo.
— O que você vai fazer? — perguntou a indígena.
O jovem engatilhou o revólver e, como se tivesse a maior certeza do mundo, disse: — A gente ficou tempo demais na defensiva. É hora de mudar a estratégia.
Saltando por uma das janelas, Lucas sumiu na escuridão da noite.
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Do lado de fora, Aren encarava a gigantesca criatura, pensando em como faria para alcançar a lança.
“Ficar aqui pensando só vai me fazer perder tempo.”
Rapidamente, ele correu para seu objetivo. Desviando das criaturas que saltavam em sua direção. Ele era bem mais rápido que os monstros menores, então mesmo cansado ele conseguia desviar com relativa facilidade.
Contudo, as coisas não saíram como esperado. Ao desviar das feras menores, ele demorou um pouco mais do que esperava.Quando finalmente estava próximo da lança, o monstro maior estava parado em sua frente. Parecia que a criatura sabia o que ele pretendia, parecia que tudo aquilo foi intencional.
Quando olhou ao redor, notou que, além do monstro em sua frente, diversas criaturas menores bloquearam sua rota de fuga.
Vendo o líder do quilombo rendido e sem escapatória. Os últimos sobreviventes desistiram do combate e correram para a floresta. Homens e mulheres. Adultos e crianças. Todos desistiram de lutar por suas casas, de lutar por suas vidas e… de lutar pelo seu líder.
Em meio ao barulho das criaturas, o colosso finalmente atacou. Um braço enorme, com garras afiadas nas pontas dos dedos, ficou a menos de um metro de acertar o líder do quilombo. Sem aliados e sem ter para onde correr, o homem apenas fechou os olhos.
“Que Ogum me proteja.” Esse seria o último pensamento de Aren.
Seria, porém, pouco antes que as garras da criatura acertassem o último guerreiro de pé, algo aconteceu.
Sons de disparo sobrepujaram o rosnado dos monstros. O clarão dos tiros revelou o rosto intrépido do jovem de cabelos castanhos que vinha a seu resgate. Lucas, com um revólver na mão direita e um sabre na mão esquerda, salvou sua vida.
As seis balas acertaram o monstro que ia matar Aren. Um dos tiros acertou o olho a fera, que acabou perdendo toda a visão do lado direito, e os outros cinco inutilizaram seu braço.
Aproveitando a brecha que Lucas criou, Aren correu pelo ponto cego da criatura e alcançou a lança.
Com todas as suas forças, puxou a haste de metal e arrancou a arma do chão.
Adotando uma postura completamente diferente, o homem girou a lança sobre sua cabeça. O brilho do metal na luz da Lua e o barulho das correntes presas na arma distraíam os olhos e ouvidos das feras que olhavam para Aren.
Em um movimento semelhante ao utilizado durante seus golpes corporais, porém agora com o alcance aumentado pela lança em suas mãos, o homem cortou ao meio todos os monstros próximos.
Até mesmo Lucas ficou espantado com a habilidade e força do homem, mas não era o momento de se distrair. Seguindo o seu novo companheiro de combate, guardou o revólver e, com seu sabre, cortou as gargantas dos monstros que o rodeavam.
Em poucos segundos, a fera gigante foi gravemente ferida e dez monstros menores caíram mortos no chão.
— Pensei que cê já teria fugido a essa altura — disse Aren, ofegante, enquanto empalava uma das criaturas com a ponta de sua lança.
Após um golpe rápido, duas cabeças, com olhos negros e dentes pontiagudos, caíram rolando no chão. Lucas balançou o sabre para tirar o excesso de sangue verde e disse: — Eu cansei de fugir.
A criatura maior se balançava de um lado para o outro, como se estivesse em agonia após ter sido atingida por tantos disparos. Contudo, conforme matavam os monstros menores, ela parecia se restabelecer.
Quando o monstro finalmente parou de se contorcer, apontou sua cabeça na direção do prédio principal. Na verdade, todos os monstros fizeram o mesmo, como se algo os chamasse a atenção.
Porém, diferente das outras situações, todas as criaturas exibiam uma expressão de medo em suas faces. Um medo tão grande que até mesmo seus rostos diabólicos e retorcidos, com olhos negros e dentes pontiagudos, não conseguiam esconder.
De repente, a criatura maior emitiu o mesmo rugido de antes.
Como se fosse a ordem de um superior, todos os monstros menores correram em direção ao prédio principal. Em direção às meninas e Arthur.
Lucas começou a correr para onde as criaturas iam e gritou: — Puta merda, logo agora!? — Enquanto corria, olhou para Aren e pediu: — Segura esse daí por enquanto.
Vendo Lucas e os monstros se afastarem. Aren se voltou para a última fera restante. Seu braço direito parecia estar inutilizado depois de receber tantos disparos, mas contrariando a expectativa do homem, o monstro se levantou sobre as pernas traseiras.
Exibindo uma grande pedra avermelhada no peito, a criatura agora aparentava ter mais de cinco metros de altura.
— Cê é grande mas não é dois.
Como se tivesse entendido a provocação, o monstro moveu o braço esquerdo como uma foice, visando partir o homem ao meio em um único golpe.
No último instante, Aren deu um passo para trás e desviou do ataque. Em seguida foi para o ponto cego do monstro e com a ponta da lança cortou um pedaço da carne da criatura.
— E eu posso até ser menor, haha, mas não sou metade.
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Sophia segurava a porta, enquanto Anahí apontava seu arco para o corredor.
— Ele vai ficar bem, né? — perguntou Sophia.
— Espero que sim.
Buum! Buum!
A porta continuava sendo golpeada pelo lado de fora e Sophia já estava no seu limite.
— Ele falou pra eu não arreda o pé daqui, mas essa porta velha aguenta até ele voltar?
Créc!
De repente, uma rachadura apareceu na porta.
Créc! Créc!
Diversas rachaduras se espalharam pela porta e a madeira finalmente cedeu. A estrutura partiu ao meio e pedaços dela voaram por todo o cômodo.
Sophia foi arremessada e caiu de bruços no chão. As criaturas começaram a entrar, porém assim que o primeiro monstro chegou perto da menina, uma flecha atravessou seu olho e ele caiu morto no chão.
Desesperada e com os dois olhos fechados pelo medo, Sophia se virou para os monstros, esticou os dois braços e gritou: — Para aí!
Anahí preparou outra flecha, porém não disparou. A indígena ficou parada olhando uma cena inacreditável.
Diversos monstros estavam parados em posições esquisitas, como se tivessem congelado no ar. Até mesmo aquelas que não estavam no chão, paralisadas no meio dos saltos, permaneceram paradas.
— Sophia… o que é isso?
Após ouvir Anahí falando, e reparar que continuava viva, Sophia calmamente abriu os olhos e se deparou com diversas criaturas, com as bocas abertas, a centímetros dela. No total, haviam 10 monstros paralisados ao redor da porta.
— Ai meu Deus! Eu acho que vou desmaiar — gritou a menina loira.
— Não! Se fizer isso… acho que elas voltam ao normal.
— Ai meu Deus. O que eu fiz pra merecer isso!?
Antes que as meninas pudessem falar mais alguma coisa, aquele rugido ecoou novamente.
Em seguida elas ouviram o barulho de garras arranhando o chão. Dez monstros corriam freneticamente, pelo corredor, em direção a elas.
Rapidamente, Anahí atirou uma flecha e derrubou um dos monstros.
“ Só sobraram duas flechas e tem mais uns nove ali.”
Mais uma flecha e mais uma morte.
Com a última flecha, Anahí acertou o monstro que estava liderando a investida. Duas outras criaturas tropeçaram no corpo e se enrolaram no chão. Porém elas em breve iriam levantar, e mesmo que ficassem permanentemente no chão ainda haviam outras cinco correndo.
Repentinamente, uma figura entra pela janela em um único salto e derruba os cinco monstros de uma só vez. Utilizando a mesma tática da criatura que havia o derrubado antes, ele esperou até o momento certo e usou todo o peso de seu corpo.
Ainda no chão, em meio ao sangue dos mortos e os corpos das feras, Lucas cravou a espada nos corpos de dois dos monstros presos nele. Se levantou e cortou as gargantas de mais dois que levantaram junto com ele.
Levantou o sabre e mirou diretamente no crânio do último de pé.
Contudo, o resultado não foi como o esperado. A lâmina do sabre não cortou a carne do monstro, porém, devido ao impacto do golpe e o sangue em toda a arma, o sabre escorregou de sua mão
Nesse instante ele lembrou, “foi a mesma coisa que aconteceu com o meu pai.”
Após cortar tantos inimigos, os repetidos impactos, junto do sangue e da gordura dos corpos, tirou todo o fio do da lâmina.
Ele havia perdido a sua arma, porém ainda restava um inimigo em sua frente. Com as duas mãos, agarrou o crânio da fera e cravou os polegares em seus olhos. Ela revidou cravando as garras nas mãos de Lucas.
Sangue verde e vermelho escorreu até o chão, porém a vantagem de força era do jovem. Lucas sentiu seus dedos atravessando o cérebro do monstro, era uma sensação repulsiva, porém era necessário para sobreviver.
A criatura caiu morta, porém antes que o rapaz pudesse parar para respirar, Anahí gritou: — Cuidado, Lucas, tem mais dois!
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, duas criaturas o derrubaram no chão.
Como se essa situação não fosse suficientemente ruim, do outro lado, Sophia também gritou: — E… essas coisas tão se mexendo de novo!
Sophia estava ficando cansada, e conforme seu cansaço aumentava, as criaturas lentamente começavam a se mover.
Em cada mão, Lucas segurava o pescoço de um dos monstros. Eles arranhavam seus braços e mordiam o ar, a dor era incômoda, porém ele havia visto os dez monstros parados do outro lado e sabia que se eles começassem a se mover não teriam escapatória
— Ana, mata aquelas coisas ali atrás e depois me ajuda!
Anahí correu para perto de Sophia e retirou uma faca de osso de suas roupas. Cravou a arma nos olhos desprotegidos dos monstros e começou a matá-los um por um. A indígena tentava fazer isso o mais depressa possível, pois sabia que todos morreriam se algum lado não conseguisse mais segurar as criaturas.
A situação não estava nada boa. Pior ainda para Arthur, que acordou no meio de tudo aquilo.
O jovem manco tentou se levantar da rede, porém caiu de bruços no chão. Ao levantar o rosto, viu seu irmão debaixo de dois monstros, com os braços repletos de cortes e o rosto a poucos centímetros de ser arrancado pelos dentes das feras.
Com dificuldades e inaudível para todos os outros, Arthur disse: — Por favor, Deus… ajuda o meu irmão… não deixa ele morrer aqui.
Arthur engatinhou até a parede e agarrou sua bengala. Ele ainda estava tonto, então nem reparou que estava segurando o objeto pelo lado errado.
— Por favor, solta ele.
O menino tentou se levantar, porém falhou miseravelmente
— Por favor, solta ele.
Estendeu a bengala, tentando alcançar o irmão, porém estava longe demais para fazer qualquer coisa.
— Por favor, solta ele… por favor, solta ele… solta ele… solta ele… solta ele… solta ele… — Repetia desesperadamente. De repente, seus olhos começaram a brilhar e uma brisa quente percorreu todo o prédio.
Dos corpos dos monstros e do sangue no chão, uma fumaça emanou. Convergindo em um mesmo ponto. Diante da bengala de Arthur, a fumaça começou a girar e brilhar. A temperatura na sala rapidamente aumentou e chamas começaram a surgir em sua frente.
— Solta ele!
Ssssssss! Whoosh!
Um redemoinho de fogo varreu tudo em seu caminho e transformou os monstros em fumaça. As chamas percorreram todo o corredor e abriram um buraco no outro lado do prédio.
Anahí conseguiu matar o último monstro perto de Sophia a tempo de ver essa cena fantástica. Nenhum dos presentes conseguiu compreender o que aconteceu.
— Ai meu Deus! Me fala que agora terminou… eu não aguento mais. — disse Sophia, chorando copiosamente.
Anahí largou a faca e foi de joelhos ao chão, completamente exausta, e perguntou: — Arthur… o que foi isso?
— E… eu… eu não sei bem como explicar… — disse Arthur, enquanto se levantava e olhava para as marcas das chamas nas paredes. “Tudo aquilo foi real.”
— Ahahahah. Você tinha razão Ana. Acontecer coisas estranhas agora é normal! — Lucas parecia um completo louco, rindo deitado no chão, coberto de sangue verde e vermelho, repleto de feridas, com fuligem no rosto e em meio aos cadáveres.
“Que noite mais esquisita, e o mais estranho é que nem foi a coisa mais esquisita que aconteceu nos últimos dias.” Pensou Lucas.
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Aren estava segurando o monstro da melhor maneira que podia, porém em cada ataque da fera ele era obrigado a dar um passo para trás. Eventualmente ele foi empurrado até o prédio principal.
Repentinamente, um calafrio percorreu seu corpo interiro e ele se jogou para trás.
A criatura acompanhou o movimento e tentou abocanhar o homem, porém, pouco antes de alcançá-lo, uma enorme tempestade de fogo atravessou a parede e a acertou.
O corpo da criatura ficou repleto de queimaduras terríveis, porém o que mais chamou a atenção de Aren foi que o grande cristal vermelho no peito do monstro estava repleto de rachaduras.
Sem pensar duas vezes, ele cravou a lança no peito do monstro. O cristal se partiu e virou uma fumaça vermelha que preencheu toda a área ao redor.
O monstro se contorceu em agonia e depois também virou fumaça.
— É… essa foi por pouco. Saravá Ogum!
Lucas, Arthur, Anahí e Sophia saíram de dentro do prédio e encontraram Aren.
O homem olhou espantado e perguntou: — Foram vocês que fizeram isso? — apontando para o buraco aberto pelas chamas.
— Isso daí foi o meu irmão mais novo, ele costuma acordar de mau humor! Ahahahah.
Aren não sabia se deveria rir ou levar a sério. Então resolveu ficar em silêncio.
— Por hoje acabou — disse Anahí, apontando para o horizonte.
O Sol já estava se revelando e a luz da manhã começou a iluminar o campo de batalha. Uma cena desagradável, com corpos mutilados de monstros, humanos e animais espalhados por todo lugar.
— Ter que enterrar os mortos nunca é agradável, mas é muito pior quando não sobra ninguém vivo — disse Arthur.
Lucas olhou para o irmão e completou: — Sobrevivemos mais um dia… a propósito, Arthur, como você fez aquilo?
O menino olhou para o livro em sua mão e fez uma expressão pensativa, depois respondeu: — Acho que vou demorar um pouco para explicar.