Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 9
Junto com o fim da batalha, veio a luz do Sol. A claridade revelava a destruição causada pelo conflito.
O local que outrora estava cheio de vida e entusiasmo, ficou inerte. Grande parte das construções permaneceu, porém o mesmo não poderia ser dito das pessoas que ali viviam.
Morreram os que se recuperavam das feridas, morreram os que lutaram pelos outros e morreram os que fugiram pela própria vida.
Onde antes havia centenas de pessoas, sobraram apenas cinco de pé.
Um homem negro virava seu rosto, fugindo dos olhares, para que ninguém visse as lágrimas que escorriam.
Os irmãos Guerra trocaram olhares. Eles sabiam muito bem como era a sensação de perder tudo… Todos ali sabiam.
Lucas puxou as mangas da sua camisa e procurou por uma pá. Após encontrar o objeto, começou a cavar.
— O que cê tá fazendo? — perguntou Aren.
— Cavando.
Aren discretamente secou as lágrimas do rosto e, novamente, perguntou: — Vai cavar uma cova pra todo mundo aqui?
— Seria difícil mesmo com cinco pessoas cavando… é bem mais fácil empilhar todos e botar fogo. — Lucas parou de cavar por um momento, apontou para um dos mortos e depois falou: — Mas pelo menos a sua família a gente pode enterrar.
Aren olhou para o corpo que Lucas havia apontado. Era o seu sobrinho. Após um breve momento, ele se afastou, buscou outra pá e também começou a cavar.
— Ocês tavam lutando por horas e ainda tem energia pra cavar!? — disse Sophia, sem entender de onde os dois ainda tiravam disposição.
— Falando em energia… — Arthur pegou seu livro, sentou-se próximo aos dois que cavavam e, sem dizer mais nada, começou a ler.
— Deve ser bem interessante esse livro hein — resmungou Aren, dando a entender que esperava a ajuda dele.
Arthur continuou folheando as páginas e, sem tirar seus olhos do livro, respondeu: — Tão intrigante quanto a própria existência.
O homem fez uma expressão de confusão e, antes que pudesse falar mais alguma coisa, foi interrompido por Lucas.
— Nem esquenta a cabeça. Quando ele fica assim não tem jeito… só vai responder direito depois que terminar de ler — enquanto dava tapinhas nas costas de Aren.
— Sophia, vem me ajudar a mover as pessoas… — Anahí falava, enquanto arrastava a menina pela manga da blusa.
— Ah não… eu acho que vou vomitar!
─── ❖ ── ✦ ── ❖ ───
Após terem enterrado a família de Aren e deixado o restante dos mortos reunidos em um único lugar, fizeram uma pausa para descansar.
Os sobreviventes se lavaram com a água retirada de um poço, pegaram roupas limpas — que não seriam mais utilizadas pelos seus antigos donos — e procuraram algo para comer.
Sentados bem longe da pilha de cadáveres, os cinco comiam em silêncio.
— Lucas, você pegou os cristais que eu te pedi? — perguntou Arthur.
— Dentro daquela bolsa — Lucas apontou para uma mochila próxima deles, depois questionou: — Mas por que você quer isso?
Arthur se levantou e pegou algumas das pedras de dentro da bolsa.
— Esses cristais são o motivo pelo qual aquelas coisas nos atacam. Agora que todos terminaram de comer, vou fazer o que prometi antes — falou o jovem, enquanto se levantava e caminhava em direção à pilha de mortos.
Parado em frente às vítimas do ataque, o menino fechou os olhos e permaneceu em silêncio por um tempo.
Arthur, que segurava alguns cristais em sua mão esquerda, apontava o cabo da bengala para a montanha de corpos. Os olhos e as pedras em suas mãos emitiram uma luz vermelha como sangue.
Conforme as pedras se transformavam em fumaça, uma energia na mesma cor delas rodopiava em frente ao menino. Chamas surgiram em pleno ar e criaram uma bola de fogo.
As chamas deslocaram-se diretamente para onde Arthur apontava com a bengala. E então o fogo iniciou o funeral dos derrotados.
“Realmente é como eu pensei.”
Todos olharam espantados para a cena inexplicável. Era a segunda vez que Arthur fazia algo assim, mas ainda era algo fantástico e incompreensível para as outras pessoas.
O menino se virou para o restante do grupo e disse: — Agora eu vou explicar o que eu vi durante o tempo em que estava inconsciente — fez uma pausa — e… tudo que descobri lendo aquele livro.
— O livro não está mais em branco? — perguntou Lucas. — Eu vi contigo mais de uma vez, não tem nada escrito em nenhuma das páginas!
— Ele nunca esteve em branco. Nós que não conseguíamos enxergar o que estava escrito.
— Ocês tão falando daquele livro com as letrinhas brilhantes né?
— Ele mesmo. Quando você saiu para fazer suas “necessidades” eu abri o livro mais uma vez. Eu precisava saber o que tinha nele e o porquê de ser tão importante. Eu estava olhando as páginas em branco como nas outras vezes, mas dessa vez foi diferente. As páginas brilharam e se moveram sozinhas, depois senti minha consciência indo embora. Dentro da minha mente eu vi uma pessoa desconhecida, ela falava comigo em outra língua, mas eu sentia o significado das palavras…
Arthur agarrou com força o cabo de sua bengala, encarou o chão por alguns instantes, depois exibiu uma expressão estranha e voltou a falar.
— Espera aí, Sophia, você disse que o livro tinha letras brilhantes!? Você também consegue enxergar? — perguntou Arthur, sem entender como outra pessoa além dele já tinha essa capacidade.
— Sim, uai, seu irmão me mostrou o livro antes.
— Quando nós encontramos vocês, ela também estava desmaiada. Aparentemente ficou inconsciente depois que foi tentar te ajudar — explicou Lucas.
Arthur encarou os olhos verdes de Sophia e, após pensar um pouco, respondeu: — Ela deve ter recebido parte da energia que o livro me passou.
— Isso explica aquilo que aconteceu antes de ocê acordar.
— O que aconteceu antes?
— Aquelas coisas pularam em mim, então eu fechei os olhos. Quando olhei de novo, eles tavam parados e tinha fios saindo dos meus dedos.
Antes que alguém pudesse falar outra coisa, Lucas interrompeu: — Tá, e aí? O que ele te disse?
Após outro breve momento de silêncio, Arthur respondeu: — Ele disse… o sangue pode trazer a vitória.
— Mas o que isso aí significa? — indagou Aren.
— Primeiro eu senti uma energia esquentar meu corpo, depois de um tempo passei a enxergá-la também. Entretanto, até esse ponto eu não tinha compreendido direito. Somente quando li o livro que consegui entender como a energia funciona, o que aquela pessoa queria me dizer e o que está acontecendo no mundo.
O jovem caminhou, apoiando-se em sua bengala, até o local onde reuniram alguns dos suprimentos restantes e pegou o tal livro.
— Esse livro é basicamente um bestiário. Conta sobre diversas espécies de criaturas que eu só ouvi falar em ficções e outras que nunca tinha visto antes.
— E como você entendeu alguma coisa do mundo lendo um livro sobre animais? — perguntou Lucas.
— Apesar de não saber exatamente o que significa cada um dos símbolos, eu senti a intenção por trás das palavras. Se eu estiver certo, todas criaturas desse livro possuem essa energia misteriosa dentro delas.
Ao ouvir o final da frase, Lucas sentiu um calafrio em todo seu corpo. O rapaz apertou com força o cabo de seu sabre e perguntou: — E o que são essas coisas?
— Tudo que encontramos até agora foram apenas peões… ferramentas com um propósito muito simples.
Enquanto folheava as páginas do livro, Arthur se dirigiu a Sophia e perguntou: — Você disse que tinha visto as letras no livro, então também deve ser capaz de enxergar as gravuras. Reconhece essa imagem aqui? — O rapaz virou o livro e mostrou uma imagem que apenas Sophia conseguiu enxergar.
A menina encarou a figura e depois gaguejou: — S… são as co… coisas que nos atacaram aqui… e que atacaram a minha cidade.
Os outros três presentes se entreolharam, pois não conseguiram ver imagem nenhuma.
— Pelo o que entendi, apesar dessas coisas serem frágeis à luz do Sol — como vampiros — também conseguem acumular a energia das criaturas que comeram. As coisas que ficam para trás quando eles morrem deve ser a energia cristalizada.
Arthur pegou um dos cristais e mostrou para os outros, enquanto falava: — Isso é a energia dos seres vivos que eles devoraram.
Todos tremeram após ouvir isso. Esses pequenos cristais foram obtidos após inúmeras vidas serem ceifadas.
— Deixa eu ver se entendi. Essas coisas fazem esses cristais depois de pegar a energia dos corpos das pessoas. Se todas as pessoas têm essa energia, por que só você e a Sophia conseguiram usar? — perguntou Lucas.
— Não olhem pra mim, eu também nunca tinha feito esse trem antes!
Arthur olhou de relance para a enorme fogueira e falou: — Todos disseram a mesma coisa quando conversamos sobre isso, acredito que com o pessoal do quilombo tenha sido igual. Todos falaram sobre as luzes aparecerem antes das criaturas.
— Sim, a gente também viu luzes brilhando na floresta desde a primeira vez — concordou Aren.
— Na nossa cidade também vimos isso, mas foi diferente de vocês. Fomos atacados por um exército de cadáveres e uma coisa que conseguia controlar o fogo.
— Cê tá me dizendo que tem mais dessas coisas?
— Sim, mas esse não é o ponto. O que eu estou dizendo é que até agora só fomos atacados por coisas descartáveis. Com exceção da criatura que controlava o fogo, os vampiros e os cadáveres são facilmente substituíveis.
Lucas fez uma expressão pensativa e depois disse: — Primeiro mandam a infantaria, depois a cavalaria e as unidades de elite. Aqueles que são mais fáceis de substituir sempre morrem antes… o vô sempre falava isso quando começava a contar as histórias dele..
— Ai, meu Deus! Ocês tão falando que isso é só o começo!?
— Agora que cê falou isso… aquelas coisas não pareciam muito mais inteligentes que um animal normal, mas elas usaram vários truques pra nos confundir no meio das lutas — disse Aren, se recordando do momento que os monstros manipularam seus movimentos e o cercaram.
Anahí escutou toda a conversa até aqui em silêncio, porém nesse momento ela lembrou quando uma luz veio e depois um monte de monstros começou a sair de um buraco no meio do ar.
— Eu acredito no Arthur.
— Isso só reforça a minha ideia. A maioria das coisas que apareceram no nosso caminho não era tão inteligente, mas o comportamento mostra que tem alguma coisa controlando elas — falou Arthur.
— Você acertou as outras vezes, então vou acreditar que também está certo dessa vez. Agora temos mais um motivo para encontrar o exército, precisamos contar isso pra eles! — proferiu Lucas. O jovem caminhou até o local onde estavam seus pertences e pôs uma mochila nas costas, depois voltou a falar: — Agora que já terminamos tudo, hora de seguir adiante.
Durante o ataque noturno, as criaturas não pouparam nem os cavalos. As armas e alguns outros objetos permaneceram intactos, mas os animais foram devorados por completo. Então, a partir deste ponto, teriam que carregar tudo por conta própria.
Ao ver Lucas arrumando preparando tudo, Sophia perguntou: — Não é melhor descansar antes de ir? Ocê não parou desde ontem.
— Aqui não é seguro, então é melhor irmos para outro lugar — respondeu Lucas, que, após um longo suspiro, voltou a falar: — Mas, se eu parar de me mexer, provavelmente vou cair duro por causa do cansaço. Quero sair daqui antes que isso aconteça.
— Eu dormi por bastante tempo, durante a noite pego o primeiro turno e você descansa até de manhã — disse Arthur, visivelmente preocupado com a saúde do irmão.
Anahí e Sophia, quando moveram os corpos, aproveitaram para reunir as armas e munições que encontraram. Como não tinham mais os cavalos, seria ruim levar tudo, então pegaram somente aquilo que estava em melhores condições.
— Aqui, Lucas — disse Anahí, enquanto oferecia uma bolsa com pólvora e balas.
Depois que o rapaz pegou o saco, olhou para a indígena e falou: — Deve dar para uns trinta tiros de revólver e mais alguns com as outras armas, muito obrigado, Ana. Além dessa munição também estamos com o meu revólver, duas espingardas, a carabina do meu pai e duas garruchas.
— Tudo pronto aqui, Lucas — gritou Arthur, que esperava junto de Sophia, próximo da saída do quilombo.
— Então é isso, hora de ir.
Aren estava sentado em um banco, com uma mochila ao seu lado, encarando a cruz de madeira acima de onde seu sobrinho foi enterrado. O homem apenas observava, em silêncio, o grupo indo embora.
Notando que a pessoa com dreads continuava parada, Anahí parou, virou-se em sua direção e perguntou: — Não vai vir junto?
Com uma expressão confusa, e um sorriso desconfiado no rosto, o homem respondeu: — Vocês se viraram muito bem sozinhos. Não precisam de mim.
— Vai desistir de viver?
— Não sei… não tenho mais motivo para continuar.
Anahí pôs os cabelos atrás das orelhas, sorriu e, de forma tranquila, falou:— Hora de procurar um novo motivo. — Se virou e seguiu atrás do restante do grupo.
Aren ficou olhando a mulher ir embora, com o restante do grupo, e depois encarou a fumaça negra que emanava da enorme fogueira.
— Acho que não tenho mais que ficar aqui… Nos encontramos na próxima vida, pessoal — falou o homem, se levantando e pondo a mochila em suas costas.
No meio do caminho, olhou para a lança que usou durante o combate. Eça havia servido muito bem, quase como se fosse feita para ele, então prendeu a arma nas costas e seguiu em frente.
“O Quilombo da Esperança caiu… mas a esperança continua de pé”, pensou ele.
Quando se alcançou do grupo, perguntou: — Posso me juntar a vocês?
Lucas olhou para trás, com uma expressão mista de confusão e sono, e depois respondeu: — Claro… na verdade, eu pensei que você já estava aí.
O homem riu da resposta. Não era possível identificar se ele era indiferente ou… se o considerou um companheiro desde o início.
— Vamos pra onde?
— Pro mesmo lugar que te disse ontem — Lucas fez uma pausa e, sorrindo, voltou a falar: — Vamos encontrar as forças armadas… Estamos indo para o Rio de Janeiro!
─── ❖ ── ✦ ── ❖ ─── Fim do primeiro arco ─── ❖ ── ✦ ── ❖ ───
Lista de sobreviventes:
Lucas Leonor Guerra
Arthur Leonor Guerra
Anahí Bocaiúva
Sophia Ferreira Lima
Aren Bomani