Guerra, o Legado no Sangue - Capitulo 12
Ao lado de uma ferrovia cercada por florestas, cinco pessoas caminhavam. O Sol, no topo do céu, queimava suas peles e piorava o cansaço causado pelo longo percurso.
— Falta muito pra chegar nesse trem? — perguntou Sophia. A menina secou o suor da testa e depois amarrou seus longos cachos dourados em um rabo de cavalo.
Um homem negro e alto respondeu com outra pergunta: — Não é melhor a gente parar e descansar? Já deve ser quase meio dia.
Contrariando os comentários anteriores, Lucas começou a aumentar o ritmo e ficou na frente do restante do grupo. Virou-se para olhar nos olhos de seus companheiros e começou a falar com certa empolgação na voz.
— Agora faltam poucos quilômetros até a cidade! Podemos comer depois de chegar.
— Já vi mulas menos teimosas — retrucou Aren.
Antes que Lucas pudesse responder a provocação, Anahí apontou para o horizonte e disse: — Vejo fumaça. Tem um acampamento na frente.
No mesmo instante que ouviu a indigena, olhou na direção em que a menina apontava e depois viu diversas tendas e pessoas aglomeradas próximas de uma estação de trem.
O prédio era similar ao local em que os irmãos Guerra encontraram Sophia e Anahí anteriormente, porém, mais conservado e um pouco maior. Possuía três andares de altura, quatro grandes relógios — um em cada lado do edifício — e uma locomotiva pronta para partir. Ao redor da construção, homens armados e vestindo uniformes militares protegiam o local.
O jovem lembrou de seu encontro anterior com os bandidos na floresta e parou por um breve momento. O suor escorreu pela sua testa, mas ele próprio não sabia se era pelo calor ou pelo desconforto causado pelas lembranças do dia anterior.
— A partir daqui acho melhor escondermos as armas. Não quero que pensem que somos bandidos — disse e em seguida começou a guardar as armas dentro das bolsas.
Manteve, contudo, o revólver — que era pequeno o suficiente para passar despercebido — preso na cintura e escondido por baixo da camisa.
As armas de fogo foram facilmente escondidas. Anahí manteve suas coisas, afinal não era incomum um índio carregar arcos e flechas; Aren enrolou uma coberta na lança em suas costas; Lucas fez o mesmo e guardou o sabre de seu pai entre os lençóis na bagagem.
Ficaram curiosos conforme se aproximavam do acampamento, pois notaram que uma multidão se reunia ao redor de um homem em cima de um palanque. Quando chegaram perto o suficiente para escutar, a preocupação tomou o lugar da curiosidade.
Um homem de batina, aparentemente um membro da igreja católica, gritava em uma fúria que certamente não combinava com a imagem de um membro do clero.
— Prometeram inúmeras coisas em nome de Deus! Prometeram dinheiro, prometeram bens materiais e prometeram sucesso, mas é tudo mentira!
Os cinco permaneceram próximos, mas em silêncio, atentos para o discurso do homem, enquanto a multidão fervorosa apoiava o discurso.
— O único interesse em Deus é te proteger da maldade e do diabo! Ele quer que nós passemos pelo teste e vençamos. Nossas posses não nos levarão aos céus e nada do que possuímos até hoje nos libertará da punição divina! — gritou o homem.
A figura carismática apontou para uma pequena igreja, no lado oposto ao da estação, e em seguida toda a multidão olhou naquela direção.
À primeira vista não havia nada de especial naquela pequena capela, porém, havia algo a mais na cruz da construção. Quando notou o que lhe causava estranheza, Lucas ficou completamente espantado e depois disse: — Pelo amor de Deus… crucificaram um homem no telhado da igreja.
Os cinco se espantaram com a cena, porém, Sophia visivelmente foi aquela que ficou mais incomodada.
— Ai meu Deus! Acho que vou vomitar — falou a menina, enquanto colocava as mãos sobre a boca.
— O apocalipse finalmente chegou! — gritou o sacerdote. — Um dia vocês irão morrer, pois a sepultura espera todos os mortais. Aceitem Jesus Cristo, voltem às origens e entreguem suas almas para o Senhor!
Aren se aproximou de Lucas e cochichou: — Acho melhor a gente sair daqui.
O homem da igreja continuava discursando: — Esses demônios vieram diretamente do inferno por nossa culpa… Nós pecamos e agora precisamos nos redimir para sermos perdoados e aceitos no paraíso.
As pessoas em volta berravam, se ajoelhavam e choravam. Uma mistura de angústia e ignorância tomava conta da população reunida ali.
— Nada disso faz sentido… Por que alguém aceitaria se tornar um sacrifício humano? — perguntou Arthur.
Aren olhou seriamente para o jovem e disse: — Essas pessoas tão perdidas, carentes e sem esperança… E isso eu conheço bem. O primeiro que estender a mão vai ser seguido até o fim, mesmo que sejam levados até o inferno por causa disso.
Voltando sua atenção para as pessoas na multidão, Lucas notou que o homem crucificado não foi o único. Pessoas com coroas de espinhos, pregos nas mãos e marcas de chicote nas costas estavam espalhadas entre a comunidade.
— Como o governo deixou isso acontecer? O que aqueles militares estão fazendo na estação enquanto isso tudo acontece bem na frente deles? — perguntava o jovem, mas sem conseguir imaginar qualquer resposta para essas questões.
“Esse acampamento com certeza é de refugiados da capital. Essas pessoas estão completamente enlouquecidas, então só resta perguntar para os guardas na estação”, pensou Lucas.
O jovem se virou e começou a se afastar da multidão. Ninguém perguntou o que ele estava pensando, mas ninguém queria permanecer mais tempo perto desses fanáticos enlouquecidos, então apenas o seguiram em silêncio.
Em frente a entrada principal da estação, dois soldados observavam o grupo se aproximando. Um deles estendeu a mão e falou: — Parados aí. Essa é uma área sob comando militar. Civis não tem permissão para entrar!
O grupo parou em frente aos soldados e Lucas, com as mãos para cima, respondeu: — Nós temos informações úteis sobre o que está acontecendo.
O homem fardado olhou o grupo de cima a baixo, cuspiu no chão e depois, em tom de deboche, respondeu: — Três crianças, uma índia quase nua e um preto com tranças. Quer que eu acredite que esse grupinho sabe de alguma coisa útil?
— Mas essa indiazinha aí é bem bonitinha, né? Tá afim de dar uma volta comigo depois do meu serviço? — propôs o outro soldado, enquanto fazia um gesto obsceno e sem esconder suas más intenções.
Anahí deu um passo para trás e permaneceu em silêncio; Aren olhou enfurecido para os militares enquanto cerrava o punho.
Os guardas sentiram a agressividade do homem e imediatamente levantaram as armas.
— Você está pensando que tá olhando pra quem com essa cara, negão?
Lucas deu um passo à frente e ficou entre os soldados e o restante do grupo, tentando evitar uma situação de tensão.
— Relaxa parceiro. A gente só tá aqui pra ajudar.
— Vai ajudar quando sair da minha frente! — gritou o soldado que logo em seguida acertou o rosto do jovem com a coronha da arma.
O rapaz caiu no chão. Sangue escorria pela sua testa e a visão ficou turva por um breve momento.
— Já foi mais forte hein, Rodrigo!? Ele tá acordado ainda ahahaha.
— Não dá pra conversar com esses porcos fardados — disse Aren, enquanto ajudava Lucas a se levantar.
O soldado chamado Rodrigo subiu as mangas da farda, engatilhou sua arma e continuou suas ameaças apontando-a para o grupo.
— Que merda você chamou a gente? Vai morrer aqui mesmo!
— Vocês não podem atirar em alguém sem motivo! — gritou Sophia.
O outro militar riu da inocência da jovem, também engatilhou a arma e depois respondeu: — Estado de sítio, garota. Deviam ter pensado duas vezes antes de arranjar confusão com a gente.
Diante do cano de duas armas carregadas, o grupo ficou imóvel. O que fazer? Sacar suas armas contra o exército enquanto o governo está em estado de sítio seria o mesmo que uma declaração de guerra contra o país inteiro.
— Pode começar a rezar!
— O que vocês pensam que estão fazendo, soldados? Parem imediatamente! — disse um homem que saía de dentro da estação.
Ele vestia uma roupa semelhante aos dois soldados — certamente uma farda militar —, porém em um tom azul-escuro, com bem mais detalhes e algumas insígnias no peito. Além disso tudo ainda carregava um sabre na cintura.
Para os irmãos Guerra ficou bem claro que essa pessoa, assim como seu pai, era um oficial da marinha.
Os membros do exército mostraram extremo desgosto em obedecer.
— Isso não tem haver com você! — respondeu Rodrigo.
— Você é da marinha — disse o outro soldado, enquanto apontava para o brasão de armas do exército em sua camisa —, então não precisamos seguir suas ordens.
O homem exibiu uma expressão extremamente séria e, com um tom de autoridade, continuou: — Podemos ser de ramos diferentes, mas eu ainda sou um oficial graduado e vocês são meros soldados. Sabe muito bem o que acontece com quem desrespeita a hierarquia militar!
Os soldados se entreolharam e engoliram em seco, pois sabiam muito bem sobre as punições de desrespeitar alguém em uma posição superior — ainda mais na situação atual. Os dois abaixaram as armas e logo em seguida recuaram.
O oficial voltou sua atenção para o grupo e encarou o jovem ferido. Olhou para os dois meninos mais jovens e, por algum motivo que ele mesmo desconhecia, lembrou dos seus tempos de aspirante na academia.
Sentindo-se compelido a ajudar o grupo, ofereceu: — Acabei de sair de uma reunião entre oficiais, mas ainda tenho algum tempo até meu próximo compromisso. Vou te levar até um lugar pra lavar o rosto.
O homem fez um gesto com as mãos e depois seguiu para uma barraca próxima ao prédio onde estavam.
“Um oficial? Essa é exatamente a pessoa que eu queria encontrar”, pensou Lucas.
O grupo seguiu atrás do homem, mas não sem antes dar uma boa encarada em direção aos soldados que haviam os ameaçado há pouco.
Com expressões de fúria, porém com medo o suficiente para não contrariar um oficial, os dois militares ficaram parados em silêncio.
A situação foi resolvida de forma, relativamente, pacífica. Contudo, ninguém havia notado que a verdadeira ameaça no grupo era justamente o membro mais novo. Arthur observou a situação inteira com os olhos brilhando e estava preparado para incendiar os dois agressores.
O oficial se envolveu com a intenção de ajudar os jovens, porém, os maiores privilegiados foram justamente os dois soldados — que certamente morreriam caso o menino decidisse usar seus poderes para encerrar o conflito.
— A ignorância realmente é uma benção para alguns — disse Arthur em voz baixa.
Ao entrar na tenda do oficial, puderam ver: mapas com marcações, cartas, relatórios militares e diversas outros documentos sigilosos.
O homem apontou para uma bacia com água e disse: — Pode se limpar ali.
Lucas limpou o sangue do rosto e agradeceu: — Muito obrigado por toda a ajuda, senhor. — Fez uma breve pausa, com uma expressão de angústia e ansiedade, e depois continuou: — Mas eu gostaria que você me ouvisse por um momento.
O homem fez uma expressão de desgosto e depois respondeu: — Olha. Eu não posso ficar ajudando todo mundo que me pede.
— Não queremos pedir nada. Apenas queremos contar as coisas que descobrimos sobre os invasores — disse Arthur, intervindo no assunto e mostrando uma pequena pedra vermelha na palma de sua mão.
O marinheiro olhou a pedra, que emitia um pequeno brilho, e, com um tom de curiosidade, falou: — Sentem-se e digam que vocês tem para me contar.
O grupo deixou as suas bagagens no chão e sentou em algumas cadeiras espalhadas ao redor de uma mesa com um grande mapa, provavelmente do litoral do Rio de Janeiro, cheio de marcações e miniaturas de embarcações.
Contudo, enquanto Lucas deixava a bolsa no chão, o sabre de seu pai caiu de dentro dos lençóis.
O militar rapidamente notou o que aquilo era. Levantou rapidamente, parecendo uma pessoa completamente diferente daquela que os ajudou antes, e em seguida sacou e apontou seu revólver para o jovem.
— Primeiro me explique como você tem o sabre de um oficial da marinha! E é bom sua explicação ser convincente.
O jovem levantou as duas mãos e pensou: “Pelo amor de Deus!? Já é a terceira vez que apontam uma arma pra mim em dois dias. Espero que não seja a terceira vez que eu levo uma coronhada…”