Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 13
Diante da mira de uma arma, mais uma vez, Lucas pensava na dor da coronhada que recebeu há pouco tempo. Com as mãos levantadas, reclamava para si mesmo.
— Eu já tive mais sorte…
— Eu não sou injusto, mas carregar algo exclusivo de um oficial da marinha é crime. Comece a explicar como conseguiu!
Lucas olhou para trás por cima do ombro e encarou o sabre exposto no chão. Também buscou o irmão e notou que seus olhos emitiam um leve brilho vermelho.
Fez um gesto sutil com as mãos, para que Arthur se acalmasse, virou para o oficial e explicou: — Esse sabre era do meu pai. Ele era um oficial da marinha, porém morreu há alguns dias quando os mortos atacaram a casa dos nossos avós.
Sua voz acusava a tristeza que sentia ao proferir essas palavras. A lágrima que sutilmente escorreu pelo seu rosto apenas reforçava isso.
O militar, que antes apontava a arma para o rapaz, imediatamente abaixou o revólver e se desculpou: — Sinto muito por isso… E me perdoe pelo que fiz agora, mas eu preciso ser cuidadoso quando falo com as pessoas nesse acampamento.
Enquanto guardava a arma no coldre, o homem sentou-se em uma cadeira em frente a mesa e depois esfregou as têmporas. Esperou um instante, depois dirigiu-se novamente ao rapaz e perguntou: — E qual seria o nome do seu pai?
— Sérgio Ludwig Guerra, senhor.
O homem se levantou tão rápido quanto havia sentado. Surpreso e movendo a boca como se as palavras não quisessem sair. Completamente desolado, fez outra pergunta.
— Como ele morreu…?
Arthur andou até o lado do irmão e contou de forma resumida o que havia acontecido naquela noite.
— Entendo… — disse o homem, enquanto procurava uma caixa de fósforos para acender seu cigarro.
— Como você conheceu nosso pai? — perguntou Lucas.
O homem cessou suas buscas por um breve momento e depois olhou nos olhos do jovem. Com uma voz que transpassa um misto de tristeza e orgulho, o homem começou a falar.
— Trabalhamos juntos algumas vezes. Conquistava o respeito dos subordinados e dos superiores de uma maneira que eu nunca vi igual. Todos os fuzileiros queriam ter as habilidades dele e todos os oficiais almejavam comandar como ele…
Contudo, a voz do homem mudou e passou a soar como uma fúria ressentida.
—… Se ele estivesse no meu lugar nós poderíamos estar em outra situação.
Os irmãos Guerra se entreolharam com expressões de dúvida em seus rostos. Sabiam muito pouco sobre como o pai era no trabalho, porém, haviam coisas mais importantes no momento.
Enquanto o oficial voltava a procurar por fósforos, Lucas tossiu para chamar sua atenção.
Cof! Cof!
— O quê?
— Sobre o que mencionamos antes… — disse enquanto cutucava Arthur.
O irmão mais novo levantou a mão direita e moveu um pouco os dedos. Um pequeno brilho apareceu em seus olhos e em seguida o cigarro do homem acendeu.
O militar olhou para baixo e notou a fumaça que saia de sua boca. Completamente espantado, voltou sua atenção para o filho mais novo e o encarou em silêncio — sem saber o que dizer.
— Temos mais algumas coisas para contar — falou Lucas.
O grupo se revezou enquanto contava ao homem sobre o que havia acontecido com eles nos últimos dias. O marinheiro apenas ouviu tudo em silêncio. Se fosse algumas semanas atrás jamais teria acreditado, porém, muitas coisas aconteceram recentemente e ele mesmo foi testemunha de algumas delas.
A história sobre a madrugada no quilombo durante a sexta-feira 13 foi particularmente espantosa. Essas informações, apesar de incompletas, mudariam completamente a compreensão que as pessoas teriam desses eventos.
Monstros que pareciam sair do inferno e agora um livro misterioso com informações sobre elas. Isso por conta própria já permitiria uma reviravolta na situação, porém, além disso tudo, agora existem pessoas capazes de feitos indistinguíveis da magia.
O homem apagou seu cigarro no cinzeiro e depois se levantou da cadeira.
Com um tom sério como nas outras vezes, porém agora com um ar de respeito aos jovens, o homem falou: — As coisas aconteceram de forma inesperada, então acabei não me apresentando apropriadamente. Me desculpem por isso.
O homem coçou a garganta e falou: — Me chamo César Cândido. Sou Capitão-Tenente da marinha e o 1° auxiliar no Cruzador Rio Grande do Sul.
Em seguida aproximou-se do grupo e comprimentou a todos, um por um, com um aperto de mão.
— O senhor disse que estava alocado em um navio militar. Por que agora está nesse acampamento longe do litoral? E além disso, como os militares puderam deixar a situação chegar em um ponto em que as pessoas estão se suicidando? — perguntou Lucas, com um tom de fúria na voz.
Seu ódio era visível e muito maior do que nas vezes em que apontaram as armas em sua direção.
O militar, notando a irritação do grupo, soltou um suspiro e começou a explicar.
— Em situações normais eu não diria isso, mas vocês me contaram tantas coisas… Então acho que serei obrigado.
César removeu alguns objetos de cima da mesa, depois trocou algumas coisas de lugar e apontou para uma ilha no mapa.
— Alguns dias atrás, antes dessas coisas aparecerem, diversos navios da marinha foram praticar exercícios de rotina, porém, nunca mais voltaram. Acreditamos que estejam em algum lugar próximo da Ilha Rasa.
— Por que ocês acham isso se não tem como ver tão longe no mar? — perguntou Sophia.
O capitão pegou uma miniatura de em formato de torre e colocou sob o mapa, depois voltou a falar.
— Existe um farol nessa ilha e os últimos funcionários que voltaram de lá disseram que viram fumaça no horizonte.
— Então eles afundaram? — perguntou Arthur.
— Existe a possibilidade, mas acho muito difícil… Entre os navios enviados, estavam o São Paulo e o Minas Gerais.
Praticamente todos do grupo ficaram sem entender o motivo pelo qual isso faria diferença. Contudo, Lucas conhecia aqueles nomes e sabia o que representavam.
— Encouraçados são feitos justamente para não afundarem fácil.
O capitão-tenente ficou espantado que um civil entendia isso, mas em seguida lembrou quem era o pai desse rapaz e decidiu continuar a explicação.
— Exatamente, porém, não são quaisquer encouraçados… Eles são os navios mais caros, com a melhor blindagem e com o maior poder de fogo fora da Europa.
Com uma expressão de dúvida, e sem entender a correlação disso com a pergunta feita antes, Lucas questionou: — Certo, mas e aí?
— Monstros saem das florestas, mas também vem do mar e ouvi que também existem criaturas que voam. A situação está um caos e o maior trunfo da marinha não pode ser usado. O presidente decretou que todas as pessoas que viviam próximas da praia deveriam ser trazidas até aqui.
O oficial olhou para fora da tenda e cerrou os punhos.
— Aquele homem que está causando tudo isso é o cardeal Pedro Tempesta. O exército precisa de recursos… — fez uma pausa para se acalmar, pois estava quase socando a mesa, e continuou: — Então ele tem carta branca para fazer qualquer coisa enquanto entregar o que o governo pede.
— O QUE??
Após gritar, Lucas se levantou e bateu na mesa — balançando alguns objetos e derrubando outros.
— Vocês não deviam proteger essas pessoas? Tem um lunático crucificando gente enquanto vocês ainda aproveitam para roubar todo mundo??
— Eu disse. Não dá pra confiar neles — disse Aren.
Apenas César notou, sem entender o que era, porém os olhos do rapaz emitiam um leve brilho — como se chamas dançassem no interior de suas pupilas.
Respondendo ao ímpeto do jovem, o homem apenas o encarou em silêncio. Essas eram as ordens, porém a culpa ainda o consumia. O marinheiro não tinha como defender algo que ele mesmo não concordava.
Irritado com a falta de uma resposta, Lucas provocou: — Não vai falar nada, senhor?
Após um longo suspiro, o oficial pegou um papel com alguma coisa escrita e respondeu: — Uma vez me disseram que “quando não se pode fazer tudo o que se deve, deve-se fazer tudo o que se pode!”
O oficial jogou o papel na mesa e apontou. Era uma folha praticamente em branco, com exceção do título “Lista de Voluntários”.
— O que é isso?
— A maneira de recuperar os encouraçados, consertar o equilíbrio de poder entre a marinha e o exército… — olhou para alguns pertences ensanguentados em uma caixa debaixo da mesa — … e salvar as vidas de algumas pessoas nesse acampamento.
Quando compreendeu a ideia do plano, Lucas se acalmou. Seus olhos voltaram ao normal e ele sentou-se novamente na cadeira.
Um pequeno sorriso apareceu no rosto do homem que estava sério até então.
O plano era simples. Precisavam de pessoas para operar as embarcações, então poderiam levar e treinar parte dos refugiados. Seria a melhor forma de ajudar as pessoas sem desobedecer as ordens.
— Qual o plano? — perguntou Arthur.
O homem procurou um fósforo e, após encontrá-lo, acendeu outro cigarro.
— Vamos levar algumas pessoas até os navios que ainda estão sob nosso controle e depois procuramos os encouraçados e demais navios que sumiram. Certamente existem monstros na água, então dessa vez iremos com os fuzileiros e com os armamentos carregados. Só tem um detalhe que ainda precisamos resolver.
— Vocês precisam passar pelos monstros na cidade sem gastar muitos recursos enquanto levam as coisas pros navios.
— Bingo! Você realmente tem o sangue do Sérgio.
O final dessa frase causou em Lucas um misto de orgulho e saudade.
O homem tragou seu cigarro e depois voltou a falar.
— Com a altura do navio a maioria das coisas na água não deve causar problemas, mas essas coisas que atacam na terra podem dar trabalho. Não temos tantos fuzileiros e o exército negou fornecer apoio.
Vendo que a situação era mais complicada do que imaginava, Lucas apenas podia coçar a cabeça e pensar.
— Eu posso não saber ler — Aren falou e apontou para a folha — mas sei que não tem nome nenhum aqui.
O homem encarou a brasa do cigarro por um instante e depois respondeu com certo desânimo.
— As pessoas estão com muito medo… e eu não as culpo.
“Ele não pode fazer nada a respeito dos fanáticos porque precisa obedecer a hierarquia militar”, pensou Lucas.
Após um tempo refletindo, o irmão mais velho se levantou e perguntou: — Os voluntários vão integrar permanentemente as forças armadas?
— Não é um alistamento. Apenas uma prestação de serviço por parte dos civis.
— Então eles não vão ficar inseridos na hierarquia e nem responderão ao código militar.
— Exatamente — respondeu César, sem entender aonde o rapaz queria chegar.
O jovem pegou uma caneta e assinou seu nome na folha.
— O que é isso, Lucas? — perguntou seu irmão — O plano não era só avisar as forças armadas?
O rapaz caminhou até o irmão e botou a mão em seu ombro.
— Desculpa, Arthur. Não pensei que as coisas estariam assim.
O filho mais novo caminhou até a mesa, também assinou o nome e depois disse: — A família Guerra fica junta até o fim
— Arthur, ocê… também vai participar disso? — perguntou Sophia, como se estivesse triste.
O menino apenas assentiu com a cabeça.
— Então eu também vou! — gritou e logo em seguida escreveu o próprio nome abaixo da assinatura de Arhur.
Aren e Anahí se entreolharam. Sabiam muito da natureza e do trabalho braçal, porém não tinham estudo formal.
— A gente não tem assinatura, mas cê pode colocar nossos nomes também — gritou Aren.
César ficou espantado com o grupo que acabou de chegar e já estava se prontificando a auxiliar na missão.
Contudo, Lucas estava ainda mais espantado. Havia assinado, pois se sentiu obrigado a ajudar, mas o combinado com o restante do grupo era apenas de chegar até a capital.
— Pessoal, vocês não precisam ir comigo. Eu quero ir por conta própria.
— Vamos mesmo assim — disse Anahí.
— Eu nem estaria aqui hoje se não fossem vocês — completou Aren.
Sophia estava vermelha como um pimentão e não conseguia pronunciar nenhuma palavra, porém estava visível em sua expressão que ela achava o mesmo que eles.
— Muito bem. Já que vocês agora são voluntários eu posso oferecer algumas camas e…
Sophia correu até o homem e, quase chorando, o interrompeu: — Eu quero um banho…. pufavô!
— Bem… tem uma barraca vazia naquela direção. Só precisam colocar essa placa na frente — disse César enquanto oferecia uma pequena placa de madeira com uma cordinha para Sophia.
A menina pegou sua bolsa e correu para fora da barraca.
— Ahahaha, ela é uma figura mesmo — disse o homem com dreads.
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Alocados em uma tenda próxima dos militares, o grupo descansava em beliches militares. A maioria deles não se lembrava quantos dias faziam desde a última vez em que tiveram um lugar decente para dormir.
— Finalmente eu me livrei daquela sujeira. Tava quase tendo um treco — falou Sophia.
A menina estava deitada na cama de baixo e quase toda coberta, porém seu sorriso de satisfação era visível mesmo na fraca luz de uma lamparina.
Por outro lado, na parte de cima do mesmo beliche, a indigena se mexia de um lado para o outro. Dormir no chão parecia mais agradável para ela do que deitar em uma cama militar.
A menina saltou de sua cama e falou para o restante do grupo: — Vou perguntar se o capitão tem uma rede.
Anahí pegou seu arco e saiu da tenda.
Algum tempo se passou. Arthur e Sophia já estavam dormindo, enquanto roncavam, na parte de baixo dos beliches.
— Não acha que ela tá demorando demais? — perguntou Aren, enquanto olhava para o teto da barraca.
— Tem razão… Já deve ter passado quase meia hora. Eu vou procurar ela por ela.
Lucas se preparou para começar a descer pela escada do beliche, porém, antes que pudesse descer, Aren impediu ele.
— Pode deixar comigo. Eu procuro ela.
Assim que terminou a frase, o homem já estava de pé e com as botas calçadas. Logo em seguida também saiu da barraca.
Alguns instantes se passaram e não havia sinal de nenhum dos dois. Enquanto o primogênito dos Guerra refletia se devia sair atrás deles, um som alcançou seus ouvidos.
Estava distante, porém era evidente que se tratavam de gritos. Assim que entendeu isso, o jovem saltou do beliche e pegou seu revólver.
Repentinamente, alguém correu para dentro da barraca. Um homem, vestido todo de branco, estava ofegante e parecia bem nervoso.
Com o barulho, Sophia e Arthur acordaram.
Quando olharam a figura na entrada da barraca, reconheceram que se tratava de um marinheiro.
O homem recuperou o fôlego e, de forma direta, falou: — O capitão mandou chamar vocês! Os demônios tão atacando o acampamento!
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Capitão-Tenente César Cândido