Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 11
Em uma pequena caverna natural, próxima da linha férrea, cinco pessoas se abrigavam da chuva. Uma delas resmungava em voz baixa, falando para si mesma: — Treze de janeiro de mil novecentos e onze… sexta-feira treze então…
— Arthur, o que você está escrevendo aí? — perguntou Lucas.
O jovem fez um gesto pedindo para esperar um pouco, terminou de escrever mais algumas frases e depois respondeu o irmão: — Transcrevendo o conteúdo do livro para um novo. — O rapaz virou o objeto e exibiu uma única página preenchida com algumas breves descrições e um desenho simples.
Lucas aproximou o rosto para ver melhor e, com um tom de deboche, respondeu: — Vampiros é? Entendi… mas espero que você não queira virar artista algum dia.
— Sei que ocês não conseguem ver o outro livro, mas tá bem parecido. Eu achei até mais bonitinho — disse Sophia, intervindo em defesa do jovem.
Lucas levantou uma das sobrancelhas e encarou a menina. Ela ficou levemente vermelha e desviou o olhar para o chão.
— Não tô conseguindo acender essa fogueira. A madeira tá muito molhada — reclamou Aren. O homem já estava com as palmas das mãos vermelhas por causa do atrito com a madeira.
Anahí, sentada próxima a entrada da caverna, calmamente montava uma flecha. A chuva molhava um pouco a mulher, mas a luz era necessária para ter precisão no trabalho. Quando o ambiente inteiro começou a escurecer e a impediu de continuar, a indígena olhou para o céu e anunciou: — Já vai ser noite.
Após escutar Anahí, Lucas olhou o homem que lutava para acender a fogueira, sem sucesso, e refletiu por alguns instantes. Caminhou até uma das bolsas e pegou uma lata de metal.
— Eu queria guardar para lugares onde não tem como acender uma fogueira, mas pode tentar usar o óleo da lamparina para ajudar — disse, enquanto oferecia o objeto em suas mãos para Aren.
Quando o homem ia pegar o objeto, uma mão tocou seu braço.
— Não precisa. Pode deixar que eu acendo — falou Arthur. O rapaz estava parado, apoiado em sua bengala, ao lado da fogueira. Ele apontou sua mão para a pilha de madeira molhada, depois seus olhos emitiram um leve brilho e em seguida pequenas chamas voaram em direção a fogueira, acendendo-a perfeitamente.
O quilombola olhou para as chamas e depois encarou as feridas em suas mãos. Em um suspiro, perguntou: — Então cê consegue fazer isso sem usar aquelas pedras?
Apoiando-se com as duas mãos em seu suporte, o jovem respondeu: — Não preciso de ajuda para algo simples assim — apontou para a própria bengala e depois continuou: — Esse cajado me ajuda a controlar melhor a energia, enquanto os cristais me dão mais dela, mas eu também tenho ela em mim… na verdade, agora todos temos.
Sophia, que escutava a conversa em silêncio até então, interrompeu: — Então todo mundo vai conseguir controlar essa magia que nem ocê?
Arthur coçou o queixo e refletiu por um instante. Quando olhou para os olhos brilhantes e cheios de interesse de Sophia, respondeu sem jeito: – Bom… eu ainda não tenho certeza. — Vendo que o encanto nos olhos da menina se perdia pouco a pouco, o rapaz completou: — Mas, já que você também fez algo parecido antes, talvez dê.
A jovem garota sorriu, se aproximou de Arthur e segurou suas mãos enquanto pedia: — Me ensina a fazer igual?
O rapaz, sem jeito e sem saber como responder, apenas concordou e sentou-se junto com a menina em um dos cantos da caverna.
Lucas fez uma careta para o irmão e anunciou: — Arthur e Sophia dormiram bastante, então ficam de vigia no primeiro turno. Vou me deitar logo, antes que vire uma daquelas criaturas por falta de sono. — Parou de falar, pegou dois cobertores, pôs um no chão da caverna e cobriu-se com o outro. Arrumou uma das mochilas como um travesseiro e terminou: — Boa noite.
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No dia seguinte, a fogueira possuía apenas algumas brasas, a chuva havia parado e o Sol já dava as caras no horizonte.
Enquanto comia um pedaço de carne seca, Lucas olhava para seu mapa. Olhando a rota percorrida até então e depois calculando a distância exibida nas legendas, ele deu uma previsão: — Se continuarmos andando no mesmo ritmo, chegamos amanhã.
— Nossa, eu só quero um banho. Tem terra até na minha b… cof cof… bota, na minha bota!
— Ahahaha, ei Arthur, tem alguma magia pra limpar as pessoas aí contigo? — perguntou Lucas.
O menino apenas deu de ombros.
— Tudo pronto aqui — gritou Aren, depois de recolher os últimos pertences do grupo.
Lucas colocou a mochila nas costas, ajeitou o sabre na cintura e depois olhou para o céu azul e sem nuvens.
— Hora de ir.
O grupo seguiu seu caminho, andando ao lado da linha férrea, e não encontrou indícios das criaturas em seu trajeto.
Após algum tempo caminhando, ouviram um barulho no meio da mata. Instintivamente, todos pararam.
Lucas sacou e engatilhou o revólver; Aren puxou a lança das costas; Anahí preparou uma flecha na corda de seu arco.
Todos ficaram em silêncio por um momento, tentando escutar atentamente o ruído.
— Alguém me ajuda! — implorava uma voz feminina e notavelmente distante.
Assim que identificou o pedido de socorro, Lucas correu em direção à densa vegetação.
— Ei, vai com calma — pediu Aren sem sucesso, pois o jovem sumiu antes mesmo que pudesse terminar de ouvir a frase.
Quando deixou de ouvir o som do rapaz correndo, Anahí disse: — Melhor ir atrás. — E então adentrou a mata em busca dele.
— Ele sempre foi herói desse jeito? — perguntou Aren, enquanto seguia a indígena.
Sophia e Lucas prontamente seguiram os outros. Quando já estavam entre os galhos das árvores, o menino refletiu por um momento e então respondeu: — Só quando nosso mundo acabou.
Sem entender completamente o peso por trás dessas palavras, o trio seguiu logo atrás da indígena que procurava os rastros de Lucas.
Quando se aproximaram de uma clareira, avistaram Lucas ajoelhado no chão.
Contudo, ao redor dele havia diversas mulheres, em vestidos espalhafatosos, segurando facas e um homem de terno com uma espingarda na mão.
— Nada pessoal, meu jovem, são apenas negócios. Desde que tudo desmoronou, nós precisamos nos virar do jeito que dá. Não concorda? — falou o homem de terno e bigode, enquanto uma das mulheres roubava os pertences de Lucas.
— Tire as mãos do sabre do meu pai, sua puta!
A mulher fingiu uma expressão ofendida e retrucou: — Eu prefiro o termo meretriz, menininho. — Ela suavemente passou as mãos em suas coxas para provocá-lo e depois desatou o nó da bainha do sabre.
— Se tentar alguma coisa, vai ganhar um buraco novo na cara.
Enquanto observavam a cena tragicômica de trás dos arbustos, o quarteto cochichava o que fazer em seguida.
— O problema é o cara armado. Eu dou um tiro de espingarda nele e tá resolvido — propôs Aren.
— Depois do Arthur ter me ensinado ontem, eu acho que consigo cuidar disso sozinha — falou Sophia.
— Tem certeza? — perguntou Anahí.
Vendo seu irmão ser ameaçado bem na sua frente, o jovem apertou a bengala com força e depois fechou os olhos por um instante.
Após refletir sobre as possibilidades, Arthur respondeu: — Vamos deixar com ela.
Um pequeno sorriso de felicidade e vergonha apareceu no rosto da menina, porém rapidamente sumiu. O momento exigia foco e concentração. Qualquer movimento errado e alguém, principalmente Lucas, poderia morrer.
A jovem loira saiu de trás dos arbustos e se levantou.
Quando apontou os dedos em direção ao grupo de bandidos, esferas vermelhas surgiram e voaram em direção aos criminosos, deixando fios de luz em seu percurso.
Quando os ladrões notaram, já era tarde demais para escapar. Em poucos instantes todos ficaram presos nos fios de Sophia.
Enquanto a menina continha os criminosos, o restante do grupo se revelou. Aren e Anahí aproveitaram o momento e tiraram as armas dos bandidos.
Arthur caminhou até o irmão e estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar.
Após ficar de pé, Lucas coçou a cabeça e disse sem jeito: — Era uma armadilha.
— Percebi.
— Aquele canalha me deu uma coronhada por trás — falou e depois fez uma pausa, encarando o irmão, como se esperasse algo.
Arthur, sem entender, perguntou: — E então?
— Tem alguma magia pra dor de cabeça aí?
Os olhos de Arthur brilharam como se possuíssem pequenas chamas e depois o menino reclamou: — Isso foi perigoso. E se a Anahí não te encontrasse? O que você ia fazer?
— Calma, calma! Você vai botar fogo na floresta! — Vendo que havia deixado o irmão nervoso, Lucas virou-se para o homem que havia o acertado antes e gritou: — Ei você, seu cafetão sem vergonha, pode ir contando que história é essa de que tudo desmoronou.
Após ouvirem a pergunta, todos passaram a prestar atenção.
O homem de terno, em um misto de espanto — por se sentir amarrado, porém não enxergar corda alguma — e fúria, pois acabou no outro lado da situação, respondeu secamente: — Primeiro me diz que merda é essa que vocês fizeram comigo! Sabem quem eu sou? Sou Flávio Kurtus! Dono do maior império do sexo e das drogas no Rio de Janeiro!
Paft!
Antes que o bandido pudesse falar mais alguma besteira, Aren socou o seu rosto e gritou: — Responde de uma vez!
Atordoado, porém agora ciente da sua posição no momento, Flávio encarou o grupo e depois respondeu: — … Vocês não sabem de nada?
— Sabemos bastante. Fale da situação na capital — disse Lucas.
Gulp. O homem engoliu em seco e depois respondeu: — Depois que essas coisas apareceram, há alguns dias, toda a cidade virou um caos. Aberrações nas praias e nas ruas atacando pessoas. O governo decretou estado de sítio e muitas pessoas saíram das casas para ficar perto das forças armadas.
— E como eles estão lidando com tudo?
— Bem! — O homem mostrou um sorriso amarelo e depois continuou: — Bem mal!
Quando as meretrizes silenciosamente concordaram com seu patrão, o quarteto ficou apreensivo.
— O que exatamente aconteceu?
— E você ainda diz que sabe bastante?
— Acho que vai precisar de outro — disse Aren, enquanto levantava a mão.
— Calma aí grandão! Eu tô colaborando aqui! O prefeito e o governador sumiram quando tudo começou… E como vocês devem saber, o presidente também é marechal. O exército agora manda em tudo!
— Isso é verdade mesmo? — perguntou Lucas.
— Juro pela minha vida.
Sentindo os olhares de dúvida de seus companheiros, Lucas falou em alto e bom tom: — Se quem manda é o exército, então fica mais fácil pra gente. Agora, a questão importante: o que faremos com eles?
— Ainda bem que ocê perguntou. Eu já tô ficando cansada.
As prostitutas começaram a se debater e tentar se soltar dos fios que não viam, preocupadas com a resposta do restante do grupo.
— Já pegamos todas as armas — exclamou Anahí, mostrando uma bolsa em suas mãos.
— Cê sabe que eles vão vir atrás da gente depois, né?
O homem de terno rapidamente intrometeu-se na conversa: — Por favor, nós nos arrependemos muito. Só fizemos isso por necessidade! Já pegaram minha espingarda e as facas das madames. Eu juro pela honra da minha mãe que não faremos nada!
Lucas encarou o olhar suplicante das pessoas amarradas e depois pensou por alguns instantes.
— A espingarda fica com a gente. As facas a gente vai deixar no chão, mas… se tentarem alguma coisa eu não vou dar outra chance.
— Muito obrigado, excelentíssimo rapaz. Eu me lembrarei disso.
Vendo que tudo estava resolvido e ninguém se machucou seriamente, Sophia desfez a prisão de fios.
— Ainda bem. Já tava me dando uma canseira.
As pessoas, antes amarradas, sentiram que finalmente podiam se mover, mas ainda não entendiam o que havia acontecido.
Lucas largou o saco com as facas e começou a ir embora com o restante do grupo.
Quando todos deram as costas, o homem de terno abaixou-se e pegou algo que estava preso em sua canela, depois levantou de novo e gritou: — Garoto, esqueci de mencionar uma coisa!
Ao se virarem, viram Flávio apontando uma arma em sua direção.
— Minha mãe era uma puta! — falou e logo em seguida efetuou um disparo com sua garrucha.
— Lucas, abaixa! — gritou Aren, enquanto empurrava o amigo para longe. A bala passou entre os dois, mas, graças aos seus reflexos, ninguém foi atingido.
Vendo que o tiro não acertou ninguém e temendo que os prendessem de novo, o criminoso pegou uma das facas e correu em direção ao grupo.
Contudo, antes que pudesse chegar próximo o suficiente para esfaquear alguém, recebeu três tiros de revólver em seu peito.
Mesmo do chão, o rapaz conseguiu acertar todos os disparos.
O homem de terno caiu e o seu sangue escorreu pela terra.
As prostitutas fugiram pela mata e o deixaram para morrer sozinho.
— Você tá bem, Lucas? — perguntou Arthur.
O rapaz se levantou, limpou a terra das suas roupas e respondeu ao irmão: — Sim, graças ao Aren. — Fez um gesto para o homem que lhe salvou e depois continuou: — Obrigado.
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Já era noite. Os eventos que ocorreram durante o dia serviram de aprendizado para os integrantes do grupo. Para uns mais do que para os outros.
Ao redor da fogueira, enquanto todos dormiam, Lucas passava a mão no próprio rosto. Esfregava o rosto com tanta força que parecia querer arrancar a pele fora.
— Hora de trocar — falou Anahí.
Lucas levantou o rosto, espantado. Sequer notou que ela havia levantado, ou que alguém estava perto dele. Ficar de vigia sem prestar atenção custaria caro para o grupo inteiro se algo aparecesse no meio da noite. E ele sabia disso.
— Certo, eu só vou caminhar um pouco e já volto.
— Tem certeza que está tudo bem?
O jovem forçou um sorriso e respondeu: — Estou bem. Só preciso ir ao banheiro.
Com as duas mãos na boca, o rapaz se afastou do acampamento, até que a luz da fogueira se tornasse um leve brilho entre as folhas.
Blergh!
Após vomitar, olhou para as próprias mãos tremendo e pensou: “É que nem o vô disse aquela vez… É bem diferente ter que atirar em outra pessoa…”