As Bestas de Brydenfall - Capítulo 5
A lua já estava em seu ápice, enquanto a chuva torrencial abriu espaço a uma fraca garoa, trazendo um clima de calmaria à cidade caótica.
Fazia duas horas que Larosse alugara um quarto para dois na estalagem e começara a fumar, próximo à única janela. Observava as águas limparem o lixo do porto e erguerem o cheiro da podridão.
Dentro do quarto, a única iluminação era a que vinha das lamparinas, nas ruas encharcadas. Graças a ela, quem entrasse no quarto veria apenas a silhueta do capitão e a brasa de seu cigarro.
Ele se questionou sobre a saúde do rato, que já estava há horas enfurnado em uma caixa de chumbo, sem qualquer entrada de ar.
Uma batida forte amassou o metal, saciando a dúvida de Sullyvan. O rato não estava em perigo. E, se a cliente demorasse mais uma hora para chegar, talvez sua saúde é que entrasse em risco.
Uma figura misteriosa adentrou o quarto.
— Não se preocupe, ele não fica mais forte que isso. — A voz feminina assustou Larosse, que deixou seu cigarro cair da janela e aterrissar numa poça d’água.
Não havia notado a presença dela até o momento em que falou.
Ou a sua audição estava começando a falhar ou a compradora era tão perigosa quanto seus contatos lhe disseram.
— Está atrasada. — Encarou a cliente com um olhar raivoso.
Não conseguia ver seu rosto, graças às trevas. Caminhou até uma vela próxima e a acendeu.
Gostava da escuridão e se sentia protegido quando executava suas vendas nas sombras, mas na presença dessa figura enigmática não havia sensação de segurança, apenas receio e desconforto.
Sendo um homem duro e ranzinza, aprendeu cedo a controlar o jeito como suas emoções transpareciam, mas nesse momento sentia-se como uma criança mentindo para a mãe.
Sabia que era inútil esconder a inquietação.
— Eu espero que os meus espécimes não tenham lhe causado nenhum dano, senhor Larosse.
— Nada irreparável. — Entregou a caixa e a mulher abriu no mesmo instante, fazendo-o recuar e pôr a mão na bainha do sabre. — Você enlouqueceu?!
— Por favor, capitão… — Ela soltou uma risada baixa, enquanto acariciava o rato coberto de estigmas. A criatura estava mansa e até dócil frente aos dedos delicados que o tocavam. — Não precisa se preocupar comigo.
Larosse ofendeu-se com a zombaria. Alguém do seu calibre, que já perdido inúmeros subordinados e entes queridos, não tinha mais espaço para preocupação em sua alma.
Não se importava nem consigo mesmo.
Lembrando-se disso, acendeu um novo cigarro e tentou se acalmar.
— E a recompensa? — Seus olhos varreram o quarto de um lado ao outro, mas não encontrou nada. A mulher não trouxera qualquer bolsa consigo. — Minha parte do trato foi cumprida.
— Mas a satisfação de servir a Deus já não é o bastante?
Com um tapa pesado, Sullyvan derrubou a caixa de chumbo e seus olhos encheram-se de fúria.
Tossiu com raiva e avançou contra a cliente.
— Sua miserável! — Fechou suas mãos em torno do pescoço frágil da compradora, que continuou sorrindo. O pirata já estava farto de ser tratado como um idiota. — Depois do que você nos fez passar… Eu vou te mostrar o que é satisfação!
— Olha… se eu fosse você, tomaria muito cuidado com as próximas palavras. — A voz veio com uma calma angustiante para Larosse, que nunca havia falhado em intimidar. A força do pirata afrouxou no momento em que sentiu a ponta de uma adaga lhe tocar a carne. — Um pouco de bom-humor poderia ter salvado a sua vida, capitão.
Ele engoliu em seco, soltando o pescoço da cliente e caindo para trás. Tombou no pé de uma cama e passou a buscar a perfuração em seu peito.
A lâmina havia atravessado sua jaqueta e, com apenas um movimento, sua existência poderia ter sido encerrada.
Mas o golpe não havia lhe tirado sangue.
A mulher teve uma crise de risos. Dois olhos vermelhos brilharam em sua face, enfeitando o rosto que não possuía uma única imperfeição.
— Calma, eu só estava brincando. — Guardou a adaga na bainha e depois recolheu a caixa de chumbo. O rato permanecia obediente em seu interior, mesmo tendo a possibilidade de escapar pela tampa aberta. — Você fez um bom trabalho, senhor Sullyvan… Aqui está sua recompensa.
Retirou de seu jaleco um pequeno pacote de seda e jogou ao capitão.
Quando ele o abriu, encontrou uma joia escarlate que reluzia parcamente à luz da vela, iluminando o rosto do velho pirata com um brilho rubro.
Lissandra sorriu.
— É uma joia sanguínea. É só vender na joalheria da cidade e conseguir, no mínimo, duas mil peças de ouro.
Com essa fortuna, poderia comprar cerca de 10 galeões, idênticos ao Sonly Morne. Finalmente, ele e sua tripulação estavam devidamente pagos pelo serviço que durara e custara tanto.
Não controlou o sorriso que veio à tona, exibindo seus dentes amarelos e apodrecidos.
A cliente já estava na porta, quando parou e se virou.
— Quase ia me esquecendo… — Arremessou ao capitão uma garrafa de um líquido esverdeado. — Esse é o antídoto. Tome uma dose e se divirta curtindo uma nova vida.
— Antídoto?!
— Não sabia? — Ela também sorriu, revelando todo o seu caráter diabólico. — Os ratos no seu navio… não os do porão, mas os que você chama de marujos… eles vão matar todos nessa cidade.
Suas palavras fizeram o coração de Larosse palpitar intensamente.
Pensou na sua tripulação e no estado em que os deixou. Todos estavam igualmente fracos, necrosados e enfermos.
Doentes.
Ele os condenou… Mas ainda não estava condenado.
— Vai querer me agradecer depois — a mulher previu.
O pirata abriu a garrafa e bebeu todo o conteúdo, o mais rápido que pôde.
Quase engasgou-se com o sabor intenso da bebida. Era como se estivesse bebendo sangue coagulado. Quando se deu conta, a compradora já havia desaparecido.
Não conseguira nem mesmo gravar seu maldito rosto.
***
A doutora Lissandra permanecia sorrindo, sem esconder seu lado psicótico. Cruzou o corredor e passou despercebida por uma equipe de guardas da marinha, todos liderados por Brynevere.
Enquanto a capitã em pessoa estava decidida a subjugar Larosse, a maior parte de seus homens partia rumo ao Sonly Morne, onde começariam a inspeção de segurança.
***
Afastado da cidade, Herion degustava uma tigela de caldo verde. Sentia-se grato por poder descansar longe daquele inferno repleto de marinheiros e poluição.
“Primeiro mundo uma ova!” pensou, nutrindo seu ódio pela cidade portuária mais famosa do reino.
Liene tentou saborear a sopa, mas o gosto estava amargo, assim como as lembranças que vinham à tona:
— Depois que você foi embora… As coisas pioraram bastante por aqui, sabia? O marechal Brydenfall começou uma guerra contra Wymeia. Disse que os wymeicos atacaram nossas fronteiras.
Herion engasgou-se com a sopa, acometido pela surpresa.
— Merda… Não sabia disso…
— Eu pensei que não.
— Esse tipo de coisa não é muito falado entre os piratas. Nós temos nossas próprias guerras para nos preocupar.
— “Nós”? — Liene fechou a cara, perfurando o amado com seu olhar de decepção. — Tá falando sério, Herion?!
— Desculpa, amorzinho… Eu quis dizer eles. — Segurou a mão de sua alma gêmea e a fitou nos olhos claros. — Amanhã vou pegar o que Larosse me deve e acabar com tudo isso. Não vou mais ser uma parte daquela gente.
Sentiu algumas lágrimas lhe aquecerem a face.
Não estava tão emocionado assim e nem com sono, então estranhou essa reação inesperada de seu corpo. Tentou relevar e sorrir, aproveitando o momento.
Assustou-se ao ver a expressão apavorada de Liene.
Parecia estar vendo um fantasma no lugar do amado. O caldo verde foi se tornando vermelho conforme as lágrimas caíam.
— Amor… Seus olhos… Sangue — balbuciou, sem entender o que estava acontecendo.
O rapaz limpou a face desengonçadamente e começou a tossir.
Sentiu seu torso arder e coçar, enquanto a tosse desgastava sua garganta e lhe fazia expelir um muco coberto de pus e pedaços do pulmão.
Havia algo muito errado acontecendo em seu interior e, aos poucos, o exterior também começava a mudar.
Suas veias enegreceram e os olhos brilharam como os de um demônio.
Seus dentes caíam enquanto sua mandíbula era forçada para frente. Soltou um grunhido de dor, pressentindo que a metamorfose chegava ao fim. Presas afiadas começaram a nascer.
Herion salivou perante a fome enlouquecedora. Sentia-se mais lobo que homem.
A tigela de sopa foi ao chão e Liene tentou se desvencilhar da mão de seu amado, que ainda a segurava. Lutou com todas as energias, mas era inútil frente à força sobre-humana.
O aperto começou a quebrar seu pulso.
Gritou o mais alto que pôde, mas ninguém a ouviu. Outros gritos suprimiam os seus.
***
O Porto de Carvalho já havia sido tomado e o caos se instaurara em grande parte da cidade. Aldeões desesperados corriam nas ruas, sendo perseguidos por aberrações recém-formadas.
Brynevere cruzou um corredor e adentrou o quarto do capitão. Sacou sua rapieira, confrontando o pirata que fumava na janela.
— Sullyvan Larosse, o senhor terá que nos acompanhar.
Bufou ao ser ignorada. O suspeito permanecia quieto, tragando seu tabaco.
Ela tentou tirar reações com uma ameaça:
— Em nome da marinha de Brydenfall, eu vou…
Um grito gutural a calou.
O capitão foi ao chão, vomitando sangue enquanto suas costas estalavam e seus ossos calcificavam-se numa nova forma. Os dedos se estenderam e viraram garras.
Os dentes rangeram, crescendo ao tamanho de adagas.
Seus olhos arderam na mais intensa fúria quando a pele morena foi sendo tomada por uma infecção grotesca. A carne começou a descascar, criando escamações por toda a sua extensão.
O couro endureceu numa carapaça e Sullyvan se transformou em um ser horrendo, que mais parecia um imenso crustáceo.
Após recuar vários passos e certificar-se de que não estava sonhando, Brynevere apontou sua lâmina contra a aberração e gritou:
— Soldados! Ataquem!!!
Os três marinheiros avançaram com suas espadas afiadas e escudos resistentes.
Não era o suficiente.
Os escudos quebraram no primeiro golpe absorvido, enquanto as lâminas se chocavam contra a couraça, sem conseguir perfurá-la.
O marinheiro Jensen soltou um grito agudo no momento em que o capitão investiu contra ele. Seu lamento foi interrompido quando dentes afiados lhe arrancaram o ombro, durante um abraço mortal.
A carapaça alaranjada e espinhenta banhou-se com os primeiros litros de sangue, quando o aberrante confrontou outros dois soldados. Derrubou-os e depois escavou suas entranhas, separando pele e músculo, até sentir os ossos.
Os urros de dor e agonia ressoavam por toda a estalagem, fazendo os hóspedes fugirem amedrontados, apenas para descobrir que o lado de fora era mais perigoso.
Brynevere rugiu com ódio, chocando a ponta de sua rapieira contra o escudo natural do alvo.
Após uma dúzia de golpes, seu pulso ardia e não havia qualquer ferimento no pirata monstruoso.
Sua rapieira ficou cega e inútil.
Todos os subordinados estavam mortos.
E a figura que antes se apresentara como Sullyvan Larosse agora se erguia com seu tamanho descomunal, demonstrando à capitã sua própria insignificância e fragilidade.
Ela ameaçou gritar, mas o infectado foi mais rápido.
Ele tentou segurá-la pelo pescoço, mas por não controlar a própria força, acabou rasgando a jugular da mulher.
Brynevere foi ao chão, tentando desesperadamente sorver algum ar. Suas veias começaram a se dilatar. Os olhos pareciam prestes a explodir. Enquanto a nobre se contorcia, sua pele foi escurecendo.
O monstro aproveitou cada segundo do assassinato. Seus olhos brilharam num vermelho intenso, quando viu a capitã soltar um último grunhido antes de morrer.
Com uma pontada inesperada de dor, a besta foi ao chão, sentindo os dedos em um dos braços arderem insuportavelmente. Suas garras fundiram-se, formando uma pinça crustácea.
Parecia que a misteriosa doutora tinha razão.
Sullyvan já sentia vontade de agradecê-la pelo antídoto, que lhe deixara mais único e mortífero que qualquer outra besta no Porto de Carvalho.
A chegada da meia-idade e as inúmeras viagens marítimas o tornaram lento, até o ponto em que seu orgulho foi vencido por uma simples cliente e sua adaga.
Porém, naquele momento, sentia-se pleno de novo. Estava determinado a aproveitar cada instante daquele que seria conhecido como o dia mais sombrio da humanidade.
O início do Cataclisma.
***
Quando o grupo de resgate enviado pela capital havia chegado ao destino, não sobrou ninguém à vista.
Por todas as ruas, becos e estradas, nenhum sinal das multidões que faziam do Porto de Carvalho o lugar mais populoso do mundo.
O fim estava para começar.