As Bestas de Brydenfall - Capítulo 6
A cidade ruía entre gritos e uivos.
Os humanos eram o banquete da noite.
Um dos aperitivos corria na estrada de terra, em plena madrugada. A cada passo suas pernas ameaçavam ceder. A armadura azul começou a pesar mais do que seu corpo conseguia suportar.
Os cabelos loiros jaziam ensopados de suor e sangue, quando parou em um beco, encontrando mais pessoas.
Nada mais do que cadáveres carcomidos.
As bestas uivaram ao subir nos telhados, fazendo Grey Brydenfall chorar como um bebê.
Continuou sua fuga desesperada pelo porto em ruínas, perseguido por dezenas de cidadãos que já não tinham mais consciência própria.
Façam com que ele sofra.
O acossado cruzou um beco estreito, torcendo para que os monstros fossem grandes demais para entrar. Tentou recuperar o fôlego e se acalmar, quando percebeu que não havia mais ninguém em seu encalço.
Treinado a vida inteira para situações de estresse máximo, o almirante Brydenfall não estava nem um pouco preparado para o fim do mundo.
Todos os seus esforços foram inúteis. Não nasceu para lutar com seres que escalavam telhados em apenas um salto, possuindo dentes tão grandes quanto espadas.
Gotas de saliva fétida pingaram nas ombreiras lustradas de Grey, como um presságio do que estava por vir.
As bestas o observavam por cima. Havia dezenas dos monstros incompreensíveis. O maior deles começou a descer por um cano de escoamento, enquanto o almirante recuava para trás, tentando controlar o pânico novamente.
Tropeçou nas próprias pernas, de forma patética.
O mais forte entre o bando de infectados pousou contra o chão molhado do beco, exalando o cheiro pestilencial da morte. Tinha a face derretida como cera e braços que se calcificaram feito garras de louva-deus.
Pareceu soltar uma risada dolorosa quando viu sua presa cair de uma escadaria, completamente desnorteada e fraca.
Chegou a hora. Purifiquem o pecador!
Grey Brydenfall era um fracasso.
Sua armadura chocou-se contra cada degrau, com o impacto ressoando pelo corpo como socos no estômago. Cada metro ultrapassado era mais um dano patético em sua vestimenta perfeita.
O peso do traje já havia sido responsável pela fratura de algumas costelas logo nos primeiros impactos, mas em breve também impediria o homem de se levantar para morrer lutando.
Tombou o último degrau. O mundo já não possuía mais cor ou som. Sua consciência estava se esvaindo, enquanto a abominação salivante se aproximava.
A perseguição chegara ao fim.
***
Ainda montados em seus cavalos, os soldados da capital estavam perplexos com a visão do porto, ao amanhecer.
Não havia uma única alma viva.
Sentiam como se tivessem fracassado na missão, sem nem ter chances de começá-la dignamente.
O comandante Griggs era o responsável por todos. Mesmo sendo quase um idoso, seus dois metros de altura e músculos sobressalentes venciam qualquer confronto.
Era um brutamonte que não se deixava intimidar por uma primeira impressão macabra.
Uma de suas mãos involuntariamente tocou o cabo da sua arma, uma maça de guerra repleta de espinhos. Pressentia que inimigos estavam por perto. Aproximou-se de Arthur Blake, seu subcomandante, afastando-o do pelotão.
O jovem começou um planejamento:
— Precisamos nos dividir se quisermos terminar antes do anoitecer.
Arthur tinha cabelos bagunçados e uma barba ruiva mal feita. Possuía diversas cicatrizes pelo corpo e estava armado com duas espadas longas, sem qualquer escudo.
Griggs refletiu rapidamente sobre a estratégia:
— Eu concordo! — Segurou o ombro de Blake. — E quero que se lembre da última missão, por um momento.
— O que quer dizer com isso?
— Quero que se contenha nesta busca. — Fitou Arthur no fundo dos olhos, para garantir que ouviria a ordem. — Se o problema for, de fato, pessoas infectadas com uma doença, então pode haver uma cura. Trate de matar apenas quando for estritamente necessário.
— Era só o que me faltava! Não vem me dar sermão agora, por favor. Toda vez a mesma coisa… Vamos logo para essa estratégia e eu prometo que não mato ninguém.
Griggs suspirou, sem esconder a tensão.
Sabia que a visão da cidade mais populosa do mundo, completamente vazia, só significava uma catástrofe de proporções inimagináveis.
Sendo assim, não havia mais tempo a perder.
O comandante separou os pelotões. Partiria com outros cinco subordinados para vasculhar cada beco, estrada e doca do Porto de Carvalho. Tratariam de achar, no mínimo, corpos para elucidar um pouco mais do mistério.
Arthur partiria com quatro soldados e um cardeal da Santa Casa, que o grupo encontrou viajando sozinho e desavisadamente em direção à cidade fantasma. O objetivo da segunda equipe seria o de explorar os arredores da região e procurar qualquer assentamento com sobreviventes.
Ao anoitecer, caso o pelotão de Griggs não tivesse retornado ao ponto de encontro, o subcomandante e seus encarregados deveriam voltar à estrada principal e montar um acampamento, enviando também um soldado à capital, para voltar com reforços.
Sem mais delongas, investiram em suas buscas.
O grande comandante viajou a trotes largos, ultrapassando a entrada da cidade e sendo recebido por um odor podre que se escondia nas sombras, escorrendo pelas ruas imundas.
Mesmo cobertos por seus elmos, os soldados não eram poupados do fedor, sendo acometidos por uma náusea crescente. Abaixo deles, no chão lamacento, diversos ratos caminhavam junto a vermes e baratas.
Griggs pensou em como levantar a moral de seu grupo.
— Lembrem-se, soldados: não importa se são monstros, deuses ou demônios que assolam esse lugar. Nós fomos escolhidos para essa missão pelo rei em pessoa! Não há salvação através da perda, estão me ouvindo? Temos que sair daqui vitoriosos, sem deixar nenhum inocente às traças!
Em meio ao clima frio e tenebroso, todos sentiram o calor das palavras ensaiadas. Sabiam que estavam seguros ao lado do lendário comandante, conhecido como o Cavaleiro da Paz.
Não demoraram para encontrar vísceras e marcas de luta pelo terreno.
O ar era podridão.
Junto à água da chuva passada, misturava-se também o sangue da última noite. Dedos, braços, dentes, olhos e outros membros decepados compunham um cenário que ficava pior a cada área explorada.
Mesmo diante de tantas partes de corpos humanos, os soldados não encontraram um único cadáver inteiro.
Naquele dia, o Sol parecia mais vermelho que o habitual, como se refletisse a cor que a cidade estava para ganhar.