As Bestas de Brydenfall - Capítulo 4
Herion Van Harper atravessou uma ruela estreita e fétida da cidade portuária.
Protegia-se da chuva graças a um manto bege, cheio de rasgos e fedendo à urina. Este havia sido seu cobertor por quase um ano inteiro e o jovem não aguentava mais o aroma repulsivo que a vestimenta emanava.
O pirata tossia sem parar. Eram escarros secos, que arranhavam a garganta mais e mais.
Sabia que seu organismo havia sido castigado pela caçada em Narssal e com a viagem de volta. A falta de nutrientes fazia seu corpo tremer e os ossos pesarem. A barriga roncou alto, mas foi ignorada.
Passou por dois mendigos caídos no chão e começou a refletir sobre eles.
Estavam vivos ou mortos? Jaziam estirados no canto de um beco pútrido e encharcado. Não se moviam e nem pareciam respirar. Felizmente, não teve muito tempo para divagar sobre a cena.
Ele havia chegado ao destino.
Frente ao marujo desnutrido havia uma floricultura, escondida entre uma padaria nojenta e uma estalagem sombria. Quando passou pela porta da frente, a vendedora foi alertada, graças a um conjunto de sinos presos à porta.
Herion arregalou os olhos quando viu a vendedora. Os dois não puderam conter as lágrimas.
— Liene… eu… — Foi interrompido por uma investida.
A jovem de cabelos ruivos mal cuidados e pele queimada pelo Sol, o abraçou com mais força do que um soco de Larosse.
Toda a dor que lhe inundava se esvaiu, dando lugar à gratidão por estar vivo.
— Eu sabia que você ia voltar — ela sussurrou.
Em poucos instantes, a loja estava fechada.
Liene já não tinha mais tempo a perder. Queria mostrar ao amor de sua vida o que fizera enquanto ele estava fora. Os avanços de seu sonho e também os planos para o futuro, agora que todas as preparações deram frutos.
***
A jovem Elliene cresceu nos arredores da Costa Brydenfall e, como todos da periferia conhecida como Ninho das Moscas, ela vivia dos restos que eram arrastados até lá.
Alimentos apodrecidos, mercadorias roubadas e drogas pesadas.
Estes eram os suprimentos de sua vila e também os sustentos de qualquer um que crescesse pela região.
Sem saber como é o calor da mãe ou a proteção do pai, Liene tinha apenas a sua pequena irmã, Ivyna, para apoiar-se.
Não eram irmãs de sangue, mas quando Liene a encontrou embrulhada num pano encardido, abandonada no meio de uma ruela escura, decidiu que seria sua família, pois ambas eram iguais em sua miséria.
Quando completou sete anos, já estava cansada de sentir fome e decidiu trabalhar como mula de carga para traficantes da área. Não recebia muito, mas ganhava proteção e podia levar Ivyna para onde fosse.
Aos poucos, ambas descobriram como eram as engrenagens enferrujadas que moviam o mundo. Observaram o jeito como os nobres utilizavam os pobres como escada para alcançarem o topo e viverem no luxo.
Sabiam que estavam na base dessa pirâmide. Sem oportunidades, sem sossego, apenas a sorte de ainda estarem respirando.
Desde então, Liene fez o que pôde para livrar sua irmã do sofrimento. Mal suportava os momentos em que ambas choravam de madrugada, famintas demais para dormir. Ou quando finalmente conseguiam adormecer, mas eram despertadas por indigentes curiosos e invasivos.
Todos os dias, ela lutava para sair dessa vida.
Porém, por mais pesada que fosse sua carga, a jovem não conseguia alcançar o seu tão sonhado refúgio seguro.
Quando finalmente abandonou seu orgulho e aceitou um emprego humilhante, mas que lhe tiraria desse poço miserável, Ivyna adoeceu gravemente.
Liene nunca se esqueceria da última vez em que beijou as bochechas pálidas e segurou os bracinhos fracos, esqueléticos. O momento em que sua pequena irmã apertou sua mão com toda a força que tinha e então soltou… para sempre.
Depois deste evento traumático, a jovem desistiu de viver e passou apenas a existir.
Sobrevivia aos dias, sempre jogada na mesma ruela escura em que encontrara Ivyna, anos antes. Sua única companhia eram ratos, moscas e outros seres rastejantes.
E como se a tristeza absoluta e a sensação de fracasso não fossem o bastante, um guarda da marinha decidiu se aproveitar da situação:
— Que cheiro é esse?! Tá achando bonito sujar as ruas desse jeito, sua ratazana imunda?! — Sacou sua rapieira.
Planejava ensinar uma lição a Liene e saciar seus desejos obscenos sem correr qualquer risco, pois ele mesmo era a lei. Porém, os planos doentios acabaram destruídos por uma lamparina arremessada contra a nuca do corrupto.
Um garoto sujo correu na direção da jovem.
— Corre!!! — berrou, segurando-a com força por um dos braços e praticamente a carregando, enquanto o adulto recompunha os sentidos.
O menino, de alguma forma, ao ver a cena mais do que revoltante, conseguira reunir uma força descomunal, sendo o suficiente para arrancar a lamparina de um poste e destruir sua armação de metal contra o marinheiro imprestável.
Herion sentia-se um completo vencedor por isso.
Era como se tivesse realizado um sonho, mas no fundo ainda culpava-se por não ter terminado o serviço e acabado com o homem no beco. Sabia que ele voltaria a cometer atrocidades, agora muito mais atento para não ser pego.
Seu ódio pelo exército era tanto que mal conseguia suportar.
Seus pais haviam sido mortos pela marinha, assim como seu irmão mais velho. Estava no seu sangue a rebeldia contra o sistema e ele não aceitaria que um dos assassinos de sua família tentasse humilhar mais alguém.
Foi por isso que o jovem a salvou, conquistando seu coração e a ajudando na luta para vencer seus traumas, sustentar os fardos e reconquistar o amor pela vida.
Juntos, eles passaram por muitos momentos de luta.
E tudo culminara num imenso jardim, lotado de orquídeas, rosas, vinhedos e outras riquezas naturais que Liene cultivou ao longo dos anos.
O cheiro doce era tão agradável que ambos podiam ficar ali deitados na grama por anos, mesmo em meio a tanta chuva.
Felizmente, no próximo verão já poderiam colher os frutos, investir num espaço maior e começar uma vida honesta, sem qualquer humilhação ou crime.
Um sonho estava prestes a se tornar realidade na cidade que vivia de destruí-los. O casal sentia-o mais palpável do que nunca.
Herion tossiu, antes de dizer:
— Isso é… lindo.
— O que acha de entrar e tomar alguma coisa? — A jovem lentamente passeou sua mão pelo corpo do amado, tentando fazê-lo parar de tremer.
— Acho que você leu minha mente.
Eles entraram no humilde casebre de barro, que possuía um telhado verde, recoberto de flores e plantas rasteiras.
Um habitat em perfeita harmonia com a natureza.
Dentro da casa, protegidos dos ventos congelantes e aquecidos pela lareira improvisada, o casal admirava um ao outro, observando o quanto mudaram desde a última vez em que se viram.
Liene tornou-se uma mulher forte e vigorosa, enquanto Herion permanecia frágil e mal cuidado, mas ainda valente e sincero.
Fez questão de manter os atributos que ela tanto amava.
A comida finalmente ficou pronta. Saborearam o caldo esverdeado de couve com carne de lobo, decidindo como expandir a fazenda e onde vender os produtos.
Herion contou os sufocos da última incursão e como convenceu o capitão Larosse a lhe transformar no primeiro-imediato.
Cortou todas as partes da história que dariam pesadelos à amada. Tentou esquecer o fato de que havia deslumbrado a perturbadora face de Deus.