As Bestas de Brydenfall - Capítulo 3
Protegida da chuva em seu posto de comando, Brynevere Brydenfall examinava os documentos do Sonly Morne pela segunda vez no dia.
Havia algo de errado com aquele navio, ela sabia. Só precisava encontrar uma maldita pista para poder revistar o galeão legalmente.
Toda essa fixação no caso começara no momento em que Sullyvan mencionou a misteriosa região da qual vieram. Havia algo de enigmático naquelas palavras quase desconhecidas.
— Narssal… — repetiu em voz alta, procurando informações nos poucos arquivos entregues por Larosse.
Nenhuma pista foi encontrada, mesmo que a palavra lhe parecesse familiar. Ela começou a morder os dedos, controlando a ansiedade.
Brynevere sabia que não existia um único lugar catalogado do Além-Mar que ela desconhecesse.
Então, se a ilha não estava em sua invejável memória, não havia jeito de ser real.
Antes que pudesse continuar o raciocínio, foi interrompida por um de seus subordinados.
— Capitã… — O marinheiro Jensen entrou na sala escura, reparando nas velas desgastadas que já pingavam cera ao chão e também na desordem acima da mesa de carvalho, com montes de mapas, relatórios e diários. — Sinto muito, mas não descobrimos nada sobre a embarcação Sonly Morne ou qualquer relato de uma ilha “Narssal”.
Brynevere suspirou aliviada. Ela não estava errada e sua memória não havia lhe traído.
A ilha não existia!
Era o que a capitã pensava, até que um jovem loiro invadiu a sala, gargalhando alto, de forma provocativa. Parecia um pouco mais velho do que a capitã e vestia um uniforme azul da marinha.
— Desculpa aí, irmãzinha, mas eu não posso deixar de me intrometer. — Grey Brydenfall apoiou-se na parede mais próxima, cruzando os braços e encarando sua irmã com um olhar de desdém. — É impressão minha ou você movimentou a maioria das suas tropas a uma pesquisa sobre a tal ilha de Narssal?
O silêncio dominou a sala.
Quanto mais incomodada Brynevere parecia, maior era o sorriso na face de Grey. Os irmãos trocaram olhares de desprezo, enquanto o subordinado sentia-se em meio ao fogo cruzado.
— Você consegue ser mais burra que um narval encalhado!
— Almirante Brydenfall… — O marinheiro estava tenso frente à aparição repentina de uma figura renomada.
Surpreendeu-se ainda mais ao ver o jovem prodígio agir de forma tão provocativa, como se fosse apenas um irmão mais velho querendo humilhar a caçula.
Abaixou em reverência ao superior, mesmo se sentindo enojado.
Sem dizer uma palavra, Brynevere se ergueu e caminhou até a porta. Fitou o subordinado, que suava frio.
— Dispensado!
Jensen saiu o mais rápido possível, mas ainda pôde ouvir um pouco da gritaria.
A capitã socou a parede ao lado de Grey, confrontando-o.
— Como você ousa…
— Irresponsável! — A palavra cortou a capitã como uma navalha atingindo as cordas vocais. – Se gaba tanto da sua memória, mas nem parou para pensar em algo tão básico e ridículo. Você foi enganada! E desperdiçou um dia inteiro dos empregados numa investigação inútil! Meus parabéns.
Grey caminhou até uma estante próxima e retirou um livro empoeirado. Limpou a sujeira e sentiu o cheiro das páginas, sendo tomado por ondas intensas de nostalgia.
— “Os Monstros no Arquipélago do Desespero” — leu em voz alta o título da obra. — Você nunca gostou dos livros de geografia ou dos ensaios estratégicos que nós éramos obrigados a ler, mas essa aqui foi uma das poucas histórias que, tanto eu quanto você, acabamos lendo sem sermos obrigados.
— Aonde você quer chegar?! — Brynevere sentou-se novamente, organizando o caos em sua mesa. Não aguentaria nem mais um minuto ouvindo seu irmão e sentia-se obrigada a ocupar a mente com algo, para não acabar avançando contra ele. — Por que você não vai direto ao ponto?!
Grey soltou o pesado livro contra o chão, interrompendo a organização da irmã. Durante um breve momento de silêncio, não perceberam que marinheiros alheios se esgueiravam por trás da porta para espiar a discussão.
— Narssal é uma das nove ilhas no Arquipélago do Desespero. — Com as mãos nos bolsos do sobretudo, o almirante chutou a porta e se retirou, deixando uma última afronta. – Ou seja, você perdeu a maior parte do seu dia seguindo uma história de pescador. Essa é a capitã que o Porto de Carvalho merece!
As risadas vindas do corredor quase a fizeram sair da sala e atacar seu irmão na frente de toda a tropa, mas preferiu respirar fundo.
Lamentava não poder mais fazer isso agora que eram adultos.
Ele ainda não entendia muito sobre amadurecer, mas ela fora obrigada pela Família Real. Com um longo suspiro, Brynevere voltou-se aos planejamentos.
Durante aquela noite chuvosa, todos os marujos do Sonly Morne seriam despertados pelo tilintar de armaduras invadindo o deque e revistando cada parte do navio.
Não havia mais salvação.