Passos Arcanos - Capítulo 62
[…] No escuro, sentiu as criaturas avançarem.
— Viesk: Fração de Ahimed.
Os tiros vieram em cor avermelhada, tão pequeno quanto grãos de areia. Velozes ao ponto de criarem uma cauda temporária no ar. Esguichos doloridos, Polly ouvia ainda tapando os olhos com o livro.
E entendeu que não era ela quem sofria. Quando tentou ver por cima do livreto, os mosquitos que se aproximavam eram perfurados por incontáveis riscos vermelhos, sambando de uma ponta a outra, matando incansavelmente os que restavam.
Era unilateral. Sem tempo de reação, sugar a mana era impossível.
O último que restou no ar foi perfurado pela soma dos riscos, todos ao mesmo tempo.
O silêncio deu a Polly tempo pra respirar aliviada.
— Eles foram cruéis com você — o rapaz disse chegando mais perto. E ele carregava uma pessoa nos braços, uma mulher, desmaiada. — Te deixar pra morrer aqui seria muito ruim pra sua carreira de Maga.
— Maga? — se perguntou, assustada. — Não. Eu não sou…
— Esse livro é de Raios Exóticos, não é? — O garoto inclinou-se para a capa do livro, curioso. — Parece ser o resumido, mas não faz mal. É uma boa leitura.
Diferente e simples, não aparentava ser alguém ruim. Polly buscou Rago e Linus novamente. Já tinham ido embora. Realmente a deixaram pra morrer.
— Sabe algum lugar onde eu posso deixar essa moça aqui? — ele perguntou erguendo os braços. — Ela parece doente.
— Lugar, tem o Vilarejo Quebrado. Fica dois quilômetros pra cá — apontou para o oeste. — Eu vim de lá.
— Perfeito. Vou carregar ela até lá e depois voltar.
Polly concordou e o viu ir embora. Deu um passo em sua direção, e tendeu a segui-lo.
Os dois continuaram a caminhada por vinte minutos em silêncio. A aura que emanava do rapaz era bem simples, e sua mana não era refinada, sendo bem abaixo do que um aprendiz teria normalmente.
Sentia que algo estava bem errado. A magia que tinha sido usada para furar os mosquitos foi de alto nível, muito acima do que Linus ou ela mesmo conjurava. A precisão dele também devia ser levada em consideração.
Fios cortariam um corpo ao Meio. Os feixes usados perfuravam, então eram sólidos. Desconfiava que esse rapaz ocultava sua mana para parecer simples, quando na verdade era um monstro treinado.
— Eh, perdão — ela se apressou para ficar ao lado dele. — Posso saber o seu nome?
— Sou Orion, é um prazer.
— Sou Polly Okana.
Orion teve dificuldades de cumprimentá-la com a mão por segurar a outra pessoa, mas o fez.
— O que houve com ela?
— Também não sei. Encontrei ela caída no chão no Meio da floresta. Ai eu peguei e vim andando pra ver se achava alguém. Por sorte, te encontrei.
— Não nas melhores circunstâncias — afirmou ela.
— Sim. Mas, veja pelo lado positivo. Agora não precisa mais andar com aqueles palermas. — O sorriso dele foi calorento. — Estar sozinho é melhor do que estar em má companhia.
Eles caminharam até a estrada de terra que dava para o Vilarejo Quebrado. De ‘Quebrado’, o lugar não tinha nada. As muralhas de dois metros de madeira e um portão protegido por alguns guardiões altos e fortes, com placas de metal fortificadas.
Assim que passaram pelo portão, a barreira estranha que os rondava diminuiu drasticamente. Orion abriu e fechou a mão, estranhando.
— Agora eu acho que entendi.
— Entendeu o que?
— Não é nada demais. Nas áreas neutras da Amplidão, essa barreira não afeta a gente. Minha dúvida era só essa.
Polly deu uma risada ao passarem por algumas pessoas e barracas montadas.
— É a sua primeira vez aqui, né? — E viu ele concordar sério. — Essa camada serve como cadastro. O Quadro Arcano que mede nossos pontos sempre marca a gente. Quando entramos numa área neutra, ela some pra você poder gastar as esferas.
— As Peças Governamentais — Orion compreendia melhor agora. — Seria bom se…
— Mika. — Alguém soltou um berro no Meio da rua.
Três pessoas vieram correndo na direção deles. Orion parou e viu outra pessoa agarrar e tentar puxar quem tinha nos braços. Antes de conseguirem, ele recuou.
— Opa, opa. Ela está machucada.
A mulher chorava, não devia ter mais de 25 anos, mas a olheira nos olhos era tão fundo que lembrava Orion da Princesa Insônia. Fazia esforço até pra se mexer, arrastando as pernas nos passos.
Quanto tempo faz que ela não dorme?
— Senhor, por favor, ela é minha irmã.
Os outros dois que chegaram também tinham semblantes exaustos. Eram Cavaleiros, pelo que se podia ver pelas armas e couraças de javali que usavam. Orion ainda não tinha se convencido.
— O que aconteceu pra estarem procurando por ela?
— Foi uma gosma do Nevoeiro — um deles disse. Os outros o chamaram de Mikeson. Era mais alto e barbudo. — Ficamos preso lá. Uma raiz pegou o pé de Mika e arrastou ela. A gente tentou puxar ela. E uma gosma pegou o rosto dela.
— Ela parou de ser puxada, mas Mika começou atacar a gente.
Nicoll, a outra jovem exausta, segurava a mão da irmã com choramingo e soluços quebrados.
— Aonde a encontrou, rapaz? — o mais velho tinha um cabelo grisalho e barba cerrada. O único que tinha ferro protegendo o corpo, mais experiente. — Tem duas semanas que pedimos um rastreador pra ver se ajudava a gente. Ele voltou sem nenhuma pista.
Mika foi passada para os braços de Mikeson. Orion se espreguiçou bem antes de responder.
— Ela tentou me atacar também. Esse tipo de criatura que precisa do corpo de alguém é um hospedeiro. Usei uma magia de ilusão na mente dela, e forcei a gosma escura a sair. — Puxou a esfera cinzenta da sacola com um chamado e mostrou a eles. — Foi um processo lento, mas fiz questão de deixar a mente dela intacta.
Mikeson e Gunegre, o mais velho, pegaram a esfera e deram uma olhada, confirmando ser o que tinha lhe atacado antes.
— E como conseguiu diferenciar que não era um daqueles mortos-vivos? — foi Polly quem perguntou, bem mais curiosa. — Eles costumam zanzar por ali.
Os outros três, intrigados pela observação, indagaram Orion silenciosamente.
— Pela Mana. — Orion achou até engraçado. — Pessoas normais possuem um tipo de mana diferente de bestas ou hospedeiros. Eu só precisei disso pra saber que essa moça precisava de ajuda, e não de uma paulada na cabeça.
Na verdade, a linha de raciocínio de Mika ainda lutava para sobreviver. Orion pôde analisar no meio dos ataques. Não tinha sido feitos para matar. Fuja daqui, agora. Era como lia os golpes dela.
Se a matasse a sangue frio, nunca esqueceria disso.
E a resposta dada aos três valeu a pena. Polly também acreditou, mesmo um pouco duvidosa.
— Ela só está cansada. Quando tirei essa gosma, a mana dela cessou por completo.
Gunebre mandou Mikeson e Nicoll levarem Mika para a casa que alugaram. Ele ficou, apertando a mão de Orion, agradecendo.
— Outras pessoa a matariam, meu jovem. Você viu além do comum. Eu não tenho como te pagar porque aquele caçador dos demônios levou todas as nossas esferas. Me perdoe.
— Ter alguém doente é custoso, eu sei. — Ele pegou um pequeno saquinho preto da cinta, por baixo do casaco. — Tem cem esferas. É pra comida e remédio. Não negue — disse antes do velho abrir a boca. — Se negar, não vou te perdoar mesmo.
Com mãos receosas, o velho aceitou, agarrando a boca do saco com vontade.
— Nunca vou esquecer o que fez pela gente, rapaz. Nunca.
— Nem eu. Melhoras para Mika.
O velho se foi e Polly ficou. Viu Orion ir para a saída do Vilarejo Quebrado, e o seguiu.
— Vai voltar pro Nevoeiro?
— Não, eu vou pegar mosquitos. Eles dão muitos pontos.
Aquele rapaz nem pensava em falar sobre o que ia fazer. E por alguma razão, achava que ele não falharia. Orion, então, perguntou:
— Seus colegas sabem que você está bem por causa do grupo, não é? Eu acho que seria melhor você tentar a sorte sozinha.
— Minhas magia são fracas pra matar qualquer besta. Não dá. Já tentei e não consegui. — Ser chamada de Maga era indigno pra Polly que nem mesmo conjurava raios básicos pelas runas. — Eles só me chamaram pro grupo porque eu já tinha vindo aqui e conhecia os lugares.
— Devia ser mais confiante. Existem pessoas que nem mesmo podem conjurar.
Ela não acreditou nas palavras dele. Todo mundo podia se estudasse. A mana era uma requisito em todos os seres vivos. Até mesmo no inorgânico.
— Eu não quero mais estar com eles. — Apertou em um ícone no Quadro Arcano e escolheu a opção de sair do grupo formado. — Eles que se enfiem no meio do mato sozinhos.
Orion riu da atitude dela. Uma garota tão jovem e tão ingênua. Se fosse fácil daquela forma se desvincilhar dos outros, o mundo seria um lugar muito mais simples. Acordos e tratados seriam feitos aos montes e rancor não existiria.
E os seres humanos eram as criaturas mais complexas da face da terra.
— Posso te dar uma sugestão?
Eles pararam debaixo do portão do vilarejo.
— Claro.
— Comerciantes de informações ganham muito. Esse lugar é a zona mais perto da entrada. Todo mundo vem aqui. Faça dinheiro e viva bem.
Ela já tinha pensado nessa ideia antes. Antes de partir para fora da Amplidão, seu amigo tinha dado a mesma sugestão. Venderia informações dos lugares bons para fazer esferas e pontos, e receberia por isso.
Tentou se aventurar com pessoas desconhecidas e quase foi morta.
A ideia continuava sendo melhor do que ser largada no Meio do nada e comida por mosquitos.
— Farei isso. Obrigado, Orion.
— De nada.
Antes de partir, Polly o chamou.
— Como está o seu nome no placar?
Ele riu.
— Por que quer saber?
— Pra ver se está indo bem. — Ficando bem vermelha, passou os cabelos para atrás da orelha e continuou: — Você também me salvou.
— Está como ‘Baker’. Não conte pra ninguém.
Ela assentiu, assistindo-o partir. Depois de não conseguir mais sentir a presença calma dele, abriu o placar de pontos.
— Orion Baker — repetiu o nome, procurando pelos últimos. E foi subindo a lista, mais e mais, até o topo. Quando encontrou, abriu a boca chocada. — Mil e duzentos pontos. Segundo lugar. O teste começou em um dia, como ele fez tudo isso?