Pacto com a Súcubo - Capítulo 31
— Se nos dão licença, temos muito a fazer! — disse Clara, com uma leve mesura aos outros demônios. — Portanto, precisamos nos apressar.
— É claro. — Abigor abriu um sorriso de orelha à orelha e respondeu a mesura com um gesto cortês, erguendo a taça de vinho. — Três semanas, Clarinha. Não darei mais tempo.
— Mostra pra esse metido, senhorita súcubo, o que o senhor humano é capaz de fazer! — disse Angélica.
Sem dizer mais nenhuma palavra, ela segurou Renato pelo pulso e o puxou, conduzindo-o através da porta. Andaram pelos corredores que pareciam ficar cada vez mais estreitos, mais baixos; e as paredes, mais úmidas e bolorentas a cada passo. Sussurros assombrados e assovios sutis lhes cutucavam a nuca e os ouvidos. Ouviram o som de uma goteira em algum lugar e, não importava o quanto se afastavam, o som parecia à mesma distância dos dois, como se os acompanhassem pelos corredores do castelo.
Desceram tantos lances de escadas que Renato perdeu a conta. Foram tantos degraus que, se estivessem subindo, poderiam tocar o sol, pensou ele.
Volta e meia, um guarda passava por eles, os olhava com desconfiança, mas logo seguia o próprio caminho.
Até que finalmente chegaram aos portões. O pátio era bastante agitado, com demônios de diversas formas e tamanhos andando para lá e para cá, ou voando, indo do pátio ao alto das muralhas, portando balestras, espadas e lanças. Farejavam em volta, curiosos, e olhavam para Renato, depois para Clara, e logo em seguida os ignoravam. Alguns ainda ficavam olhando de canto de olho por um tempo antes de desistir.
Cruzaram os portões e caminharam em direção à cidade. Embora com arquitetura bastante diferente, havia prédios se erguendo e casas, e ruas. Estátuas de monstros gigantescos e demônios com asas abertas, dentes à mostra e espada flamejante em mãos eram comuns.
— Bem-vindo a Pandemonium! Esta, Renato, é a capital do inferno!
Demônios iam e viam, como os habitantes de qualquer cidade da terra.
Renato não pôde evitar de admirar uma das estátuas.
— São lembranças da Grande Guerra do Submundo — disse Clara.
— Como aconteceu?
— Quando Lúcifer e os outros dissidentes foram expulsos do Paraíso, caíram aqui e se tornaram os primeiros demônios. O problema é que todo o submundo já era habitado por todo tipo de criatura. Desde deuses a monstros terríveis. Nossos ancestrais tiveram que lutar pra conquistar o direito a um pedaço de terra pra viver. Acredite, isso aqui era muito pior do que é hoje. O fogo que brotava do chão derretia até as pedras, o céu era como um mar de lava suspenso nas nuvens e o ar… era o pior. Nada mais do que veneno. Derretia os pulmões de quem respirasse por muito tempo. Não sei como aquelas coisas conseguiam viver aqui, mas para os caídos, acostumados à glória do Paraíso, era inconcebível. Depois de conquistar um bom pedaço de terra, que carinhosamente chamaram de Inferno, eles alteraram todo o ecossistema, toda a paisagem e o ambiente usando magias poderosas para deixar isso aqui mais aceitável.
Foi assim que aconteceu, Renato.
— Esse aí da estátua parece um demônio bem valente.
— E ele era mesmo. Vamos! Precisamos nos apressar.
Retomaram a caminhada.
— Onde estamos indo agora?
— Num tipo de… loja. Acho que dá pra chamar assim. Precisamos comprar um Mapa de Sortilégios. Ele vai dizer o local da grande Masmorra das Luzes. É a primeira coisa que Lúcifer construiu no Inferno: uma fortaleza para o conhecimento. Ele é o portador da luz, entende? Conhecimento é importante pra ele. Mas a masmorra é itinerante. Ela muda de lugar de tempos em tempos; então sem um Mapa de Sortilégios não tem como chegar lá.
Depois de pensar um pouco, Renato assentiu e suspirou logo em seguida.
— Às vezes eu acho que isso tudo não passa de uma longa viagem de LSD e que em algum momento eu vou acordar, todo babado e mijado, caído no chão de alguma boate de música eletrônica.
Clara riu.
— LSD é fraco. Vou te apresentar umas drogas sintéticas do Inferno mais tarde.
Caminharam até uma gigantesca pedra, que se erguia como uma montanha, e ficava bem no centro de uma grande praça. Na pedra, existia uma porta, que Clara abriu, revelando degraus que desciam numa caverna escura. Entraram.
No fundo da caverna, o interior se abriu, e dentro havia muitas prateleiras cheias de objetos estranhos, e um balcão, no qual um demônio com três chifres os olhava com um sorriso.
— Clara, a Herdeira de Lilith. Que saudade! Voltou pra fornalha?
— Voltei.
— E trouxe… hã, o que é isto? Tem um cheiro diferente. Tem cheiro de…
— É um demônio.
— Um demônio? Não parece um demônio. Venha cá, garoto. Deixe-me dar uma olhada em você.
Clara o deteve, não permitindo que se aproximasse.
— É um demônio de uma espécie nova. Foi descoberto há pouco tempo. Sabe como é. A magia tá estranha nesses últimos séculos, e isso tem causado alguns distúrbios na realidade. Novos tipos de demônios surgirem era questão de tempo.
— Fascinante! Eu poderia…
— Não. Angélica já o reclamou para ela.
O demônio estalou a língua.
— Droga. Entendo. Enfim, o que quer aqui, Herdeira de Lilith? Precisa de algo?
— Não me chame assim, por gentileza. Preciso de um Mapa de Sortilégios.
— Oh, claro! Um dos meus produtos mais requeridos.
O demônio ergueu uma mão, e fogo brilhou nela, e do fogo, um pergaminho se materializou; então o fogo se apagou e restou só o pergaminho. O demônio o abriu.
— Aqui está, Clara Lilithu. Custa 30 mil Moedas da Encruzilhada.
— 30 mil?! — Parecia que uma veia iria saltar na testa de Clara. — Mas isto é um absurdo! Era 12 mil até pouco tempo! Tá tentando me assaltar, é?!
O vendedor sorriu e seus olhos brilharam.
— Não custa esse valor há quase um século. A inflação chegou ao Inferno, infelizmente.
Clara suspirou.
— 30 mil Moedas da Encruzilhada, hein? Pois bem! Porém, vendedor de sortilégios, eu não tenho nenhum aparelho para acessar o Banco de Cima e de Baixo aqui comigo.
— Sem problemas. Temos um acesso móvel.
O vendedor fuçou embaixo do balcão e pegou um aparelho pequeno que Renato achou parecido com um tamagotchi, mas a tela ocupava praticamente um dos lados inteiros, e havia vários símbolos alquímicos entalhados, algumas runas e pontos riscados.
A súcubo pegou o aparelho e começou a deslizar os dedos pela tela, como se fosse um celular. Digitou alguns caracteres; depois pressionou a digital do polegar sobre a tela para que fosse lida; em seguida fez um corte no dedo com a unha e deixou que uma gota de sangue pingasse sobre aparelho.
O acesso foi liberado. Ela transferiu as moedas para o vendedor de sortilégios; depois digitou mais alguns caracteres e recitou algumas palavras mágicas para que a conta fosse desconectada do aparelho com segurança. A gota de sangue evaporou do aparelho na mesma hora.
O vendedor sorriu, fez uma reverência e pegou o aparelho de volta. Em seguida perguntou à Clara:
— Quer que eu o configure?
— Quero.
O vendedor pegou o pergaminho e esticou sobre o balcão.
— Onde?
— Inferno — respondeu Clara.
O vendedor desenhou no ar com os dedos, fazendo um círculo mágico surgir; o círculo mágico brilhou e desapareceu dentro do pergaminho, fazendo o desenho de um mapa aparecer. O desenho tinha algo como um efeito 3D, pois dava para ver relevos e depressões, e alguma coisa nele até parecia se mexer.
— E o que mais? — perguntou o vendedor.
—A Masmorra das Luzes.
Um ponto do mapa brilhou.
Clara fez uma careta de desgosto.
— Você, por acaso, teria uma Pena de Fênix?
— Não. Esses são ítens realmente raros.
— Oh, droga.
— O que foi? — perguntou Renato.
— É que… tá dentro da Floresta Perdida. E nós vamos ter que entrar a pé.
— Não parece bom.
— Não é mesmo.
O vendedor franziu o cenho.
— Sei que perdeu as asas, súcubo, mas essa nova espécie de demônio também não voa?
Ela lançou um olhar sombrio ao vendedor.
— Você gosta de perguntar coisas pessoais, não gosta?
— Oh, desculpe. Eu só estava preocupado com vocês. É que um demônio de baixo nível andando a pé pela Floresta Perdida, contando com a ajuda de nada mais do que um… humano — o vendedor riu — qual é mesmo a palavra? Ah, é… suicídio.
— Cale a boca, vendedor. Não vim atrás de conselhos e nem da sua preocupação. Que armas você tem aí?
O vendedor estufou o peito, soberbo.
— Tenho Espadas do Pecado.
Clara sorriu.
— Até que enfim uma boa notícia! Quero duas!
— É pra já!
O vendedor juntou as duas mãos. Símbolos brilharam em seus dedos; e então a mão se incendiou, explodindo em chamas.
Quando o fogo apagou, nas mãos do vendedor havia uma substância enegrecida, semelhante a piche, porém era como se não tivesse peso, e flutuava no ar. Tinha o tamanho de uma bola de boliche e cheirava a cadáver em decomposição.
— Por que fede tanto? — perguntou Renato, com uma careta.
— Isso aqui é a matéria prima dos pecados humanos — disse o vendedor. — É a materialização de toda a culpa da humanidade. Pra nós, demônios, não tem aroma melhor. É como o cheiro de comida quentinha.
— Pois pra mim tem cheiro de merda! — disse Clara, tapando as narinas.
— Passou tempo demais lá em cima, Clara. Se desacostumou com os cheiros do Inferno.
— Hum… — Clara ainda tinha a careta —, e o que a gente faz agora? Põe a mão aí, se eu não estiver enganada, não é isso?
— Exatamente. A Substância vai reconhecer todos os pecados gravados em sua alma e se tornar uma espada personalizada. Tente pensar nos piores pecados que já cometeu. Quanto piores, melhor! Deixa a espada mais forte.
— Se eu fosse pensar em todos, levaria uma eternidade.
— Eu posso ir primeiro? — Renato se aproximou, olhando, com curiosidade, para a substância.
— Pode sim — respondeu Clara. — Entendeu como funciona?
— Acho que entendi.
Ele meteu a mão na coisa enegrecida. Afundou os dedos. Sentiu a temperatura daquilo: era como gelo. E a textura era de algo gosmento, como maionese ou creme de cabelo. O fedor quase o fez vomitar.
Fechou os olhos. “Pecados! Pecados!” forçou o cérebro. “Meus piores pecados! Quais são?”
Se lembrou da voz preocupada de sua mãe. “Fique aqui! Escondido bem aqui! Não saia pra nada! Não importa o que escutar, não saia! E não faça barulho, meu filho!” dizia ela, com os olhos vermelhos, derramando lágrimas e soluçando. “A mamãe te ama! Se lembre sempre disso! Nunca! Nunca se esqueça do quanto eu te amo! E do quanto seu pai te ama também!”
Ela fechou a porta do armário e o deixou sozinho no escuro.
A curiosidade foi grande. Não resistiu e abriu a portinha do armário um pouco; e pela pequena fresta, viu os homens arrombarem a porta da casa e entrarem. Viu seu pai, um homem valente, grande, usando um taco de beisebol, ou talvez fosse apenas um pedaço de pau comum, para tentar defender sua casa. Viu ele levando vários tiros e caindo; e antes de morrer, olhou para o armarinho, e seus olhos, antes de se fecharem, encontraram os de Renato. O rapaz se lembrava do exato segundo em que o pai morreu. Foi naquela hora em que os olhos dele se apagaram.
Viu os homens vasculharem a casa, olhando em todo o canto, procurando alguma coisa. Se aproximaram do armarinho. Iam abrí-lo. Foi quando sua mãe saiu de seu próprio esconderijo, segurando uma faca. Apontava e balançava a faca ameaçadoramente, e gritava que os mataria se chegassem perto. Ela berrou palavras de ódio! Disse que os cortaria em pedaços! Disse que rasgaria as bolas deles e os faria comer!
Os homens apenas riram. Perguntaram sobre alguma coisa que a cabeça de Renato era jovem demais para entender. A mãe os respondeu e disse que agora que já sabiam, podiam ir embora. Os homens não foram. Tinha mais uma coisa que queriam fazer.
Renato tinha apenas cinco anos, mas se lembrava em detalhes de tudo o que aconteceu.
Quando abriu os olhos, estava todo encharcado de lágrimas, e um amargor arranhava sua garganta.
— Esse foi o meu maior pecado — disse. — Eu os assisti morrer sem fazer nada. Eu podia ter feito alguma coisa. Podia ter corrido até a cozinha e pegado uma faca… eu podia… podia ter corrido até à rua pra pedir ajuda! Qualquer coisa… eu podia…
— Renato… — Clara pôs a mão em seu ombro. — Nunca vi tanta dor em um ser humano…
— Não é só dor que tem aí, Súcubo — disse o vendedor.
— Essa espada? Nunca vi uma com essa aparência. O que pode…?
— Ódio — respondeu o vendedor. — Essa é uma Espada do Pecado forjada no puro ódio.
***
*Palavras do autor:
Esse capítulo deveria ter saído ontem. Para aqueles me acompanham, minhas desculpas pelo atraso. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não se repita. O motivo do atraso: meu provedor de internet resolveu me sacanear. Mas enfim, tudo resolvido, capítulo postado, espero que tenham curtido a leitura. Muita coisa ainda está para acontecer nessa história.