Pacto com a Súcubo - Capítulo 30
— Eu gostaria de conversar a sós com Clara Lilithu — disse Renato.
— É claro. Por que não? — Concordou Baalat. — Ali depois daquela porta tem uma sala. Podem conversar ali. Estaremos esperando.
Os dois saíram. Era uma sala parecida com a anterior, mas estava realmente vazia.
— Renato, precisamos conv…
— Clara! Antes me diz: existe forma de se comunicar com a terra? Jéssica e Mical estão lá. Eu preciso avisar elas! Preciso avisar pra elas fugirem para o mais longe possível! Eu preciso! Tem alguma forma?!
— Não tem. É impossível.
— Então eu tenho que voltar! Me ajuda a voltar! Eu preciso avisar elas!
— Foi o Abigor que te trouxe?
— Foi.
— Como?
— Num cemitério. Eu fiquei dentro de um caixão e…
— Filho da puta.
— O que foi?
— Ele escolheu essa forma. Essa é a forma antiga. Existem outros modos de trazer um humano, mas ele escolheu essa! Filho da puta! Dessa forma, um objeto acaba sendo relacionado ao feitiço, e sem esse objeto é impossível para você voltar. Funciona como uma chave ou uma passagem de volta.
— E que objeto é esse?
— Pode ser qualquer coisa. Pode ser uma pedra, uma folha, a camisa dele, uma faca. Literalmente qualquer coisa. Só ele sabe que objeto é esse e sem isso você não pode voltar.
— Então, se ele quer que eu lute, ele não vai me dar esse objeto se eu não lutar e eu fico preso aqui para sempre? Filho da puta.
— Filho da puta — concordou Clara.
— Mas e você? Você consegue voltar e avisar elas, não consegue?
— Não dá.
— Por quê?
— O abigor. Filho da puta!
— O que que tem?
— Quando você estava inconsciente no Recuperador Iônico, e eu estava enfraquecida, o Abigor foi até nós e fez uma coisa. Foi um feitiço. Segundo ele, era algo romântico. Eu tentei protestar, tentei impedi-lo, mas estava muito fraca. Não consegui.
— Que feitiço foi esse?
— Eu só vou poder sair do inferno depois que você puder. Ele nos ligou. Se você estiver preso aqui, eu também fico.
— Então…
— Então não tem jeito de avisar elas. Nem eu e nem você pode. E se a cidade virar cinzas, elas viram junto.
— Ele planejou isso desde o início, não foi?
— Provavelmente.
Renato se virou e foi em direção à porta.
— O que vai fazer? — perguntou Clara.
— Vou falar com Abigor.
— Não adianta.
— Eu preciso tentar!
Ele chamou Abigor, que se aproximou. O demônio tinha uma irritante cara de paisagem e Renato se perguntou o quão agradável seria enchê-la de porrada.
— Abigor, por favor, eu preciso do objeto para voltar pra terra. Eu juro que retorno ao inferno, mas eu preciso subir!
Abigor riu.
— Ah, Renato, até você, com seu cérebrozinho de primata entende que eu não vou dar, não entende?
— Mas é que… por favor! Eu preciso…
— É por causa daquelas duas pirralhas irritantes, não é? — Abigor suspirou. — Tanta coisa bonita naquela cidade e você preocupado com elas. A Chapada também vai ser pega na explosão, sabia? Já viu as cachoeiras que tem lá? E você se preocupando com duas primatinhas tão religiosas que fedem. Elas devem ser mesmo muito gostosas.
Ele riu de novo.
Renato suprimiu a raiva.
— Por favor — abaixou o olhar lacrimejado. Eram lágrimas, não de tristeza, mas de raiva.
— Hum… deixa eu pensar… será que sim? Será que não? — Ele tinha um olhar zombeteiro; o que incitava cada nervo de Renato para socá-lo até a morte.
O garoto respirou fundo.
— Por favor, caralho! Elas… elas estão lá!
— Mas é claro que não. Fodam-se elas! Por mim, elas podem queimar até a morte! Todos naquela cidade podem queimar até os ossos! Se quiser salvá-las, primata, vença as lutas.
Abigor riu alto, como se achasse aquilo tudo realmente divertido; e se virou, ainda rindo, e foi sentar-se à mesa.
— “Por favor!” — tentava conter a risada — Ele pediu por favor! — gargalhava. Pôs os pés sobre a mesa e tirou um celular do bolso, no qual abriu um jogo para passar o tempo.
— Eu vou matar ele! — disse Renato, para Clara.
— E eu vou ajudar; mas não agora. Agora é ele quem dá as cartas, então tente se controlar.
— Eu tô me controlando. Me controlando até demais!
— Canalize essa raiva para vencer as lutas, Renato. Se você não vencer, elas vão morrer! Não só elas, mas todo mundo naquela cidade! E pior: minha linda casa será destruída!
— E pior? — Renato riu amargamente — Por que demônios são tão egoístas?
— Hum?
— Você tá preocupada com sua casa, não tá? Não tá nem aí se Jéssica e Mical morrerem! Meus amigos da escola! O Hiro! A Tâmara! A Alícia! Estão todos lá também! E você preocupada com sua linda casa! Demônios! Por que vocês são assim tão egoístas?
— Deus nos fez assim. Não há como mudar a própria natureza. Porém, Renato, uma ação de gentileza vinda de alguém egoísta, por ser mais rara, tem mais valor. Eu me importo com elas porque você se importa e vou te ajudar a passar por isso. Não vamos deixar que aconteça.
— Ele explodiria tudo mesmo, né?
— Explodiria.
— Clara.
— Sim?
— Me ajuda. Me ajuda a passar por isso e depois matar esse desgraçado.
— Com prazer.
— Oh? O que vocês estão falando tão despreocupadamente? — Era Angélica, que surgiu tão de repente que foi como se materializasse no ar. Estava com um olhar desconfiado.
— Estão planejando algo estranho?
— Estranho? Não, senhorita Angélica. Estamos apenas pensando na estratégia que tomaremos — respondeu Clara.
— Pff — a garotinha demônio deu de ombros. — Então tratem de criar uma estratégia incrível, porque seria vergonhoso se o senhor humano, o bichinho que eu mesma escolhi, perdesse para criaturas tão pequenas como simples monstros!
— Pode deixar.
— E se ganhar, o senhor humano terá direito a todos os melhores doces do inferno! Duvido que já tenha provado doces tão bons na terra! E tem também os pães da misericórdia! E o mel produzido pelas abelhas da Floresta Perdida! Doces do inferno são os melhores!
Angélica riu, orgulhosa.
Renato se lembrou dos brigadeiros da professora Dilze. “Duvido que sejam melhores que os dela” pensou.
— Mas se perder — continuou Angélica — vou ficar com tanta raiva, mas com tanta raiva que conduzirei meu exército infernal para a terra e iniciarei o apocalipse! E se os anjos tentarem me atrapalhar, destruirei o céu só pra mostrar que ninguém frustra a grande Angélica Lúcifer, a filha número dois do inferno!
Ela estufou o peito e empinou o nariz, cheia de si, e riu de um jeito sinistro.
— Não se preocupe — Clara sussurrou no ouvido de Renato. — Se ela tentar algo assim, Baalat põe ela de castigo. — Pensou por alguns segundos — Bom, a menos que Baalat esteja entediada. Aí é capaz de até ajudar. Pensando bem, Renato, melhor levar essa ameaça a sério!
“É verdade o que dizem?” Essas foram as palavras que chegaram à cabeça de Renato. “É verdade?”
O rapaz se assustou. Ouviu a voz, porém tinha certeza de que ela não tinha passado por seus ouvidos. Chegava direto ao cérebro.
“É telepatia” disse a voz.
E então seus olhos encontraram os olhos brilhantes da demi-humana.
“Não olhe pra cá! Eles vão perceber!”
Renato desviou o olhar.
“Responda. É verdade que derrotou Satanakia numa luta?”
“Como posso responder?” pensou, e se surpreendeu porque a demi-humana o ouviu.
“Exatamente assim. Estamos em conexão telepática. O que você pensar, eu escuto; e o que eu pensar, você escuta. Por favor, me responda.”
“Sim. Derrotei ele.”
“Como?”
“Como disse que faria. Deitando aquele miserável no soco.”
“Mas sua espécie não é conhecida por ser uma das mais fracas da criação? Não olhe para cá, já disse! Ou eles vão perceber!”
Angélica se aproximou de Renato, e o olhou como se suspeitasse de algo.
“Talvez, garota-gato, minha espécie não seja tão fraca quanto vocês pensam”
“D-de que você me chamou?!”
“Os seus hematomas, como conseguiu? Alguém te machucou?”
A demi-humana pareceu constrangida. Olhou para o outro lado e se remexeu, como se não estivesse confortável.
“Desculpe por perguntar. Não é da minha conta.”
“Eu sou uma escrava. Donos de escravos têm o direito de… de fazer com seus escravos o que bem quiserem. Não tenho o direito de reclamar.”
“Me parece uma regra criada por um arrombado!”
— Oh, que interessante! — disse Angélica, olhando de Renato para a demi-humana. — O que será que os bichinhos estão tramando?
“Droga! Ela percebeu!” A demi-humana desfez a conexão mental e se virou para o outro lado, tentando disfarçar.
Angélica riu.
— Que fofinha! A senhorita das orelhinhas é tão fofinha! Droga, eu devia ter pegado ela pra mim antes do Belfegor pôr as patas nela!
Angélica olhou para Renato, que engoliu em seco.
— E você, senhor humano, o que estava fazendo? — Ela olhou para Belfegor — Hum, será que eu conto para o dono dela? O que eu deveria fazer?
— Por favor. Ele iria machucá-la.
— Iria, né? — Angélica começou a rir. — Aquele Belfegor não tem a menor noção de como tratar um bichinho. É um bárbaro. Ah, que se dane! Não vou contar nada pra ele. Afinal, os bichinhos devem ter o direito de socializar e se entenderem, né? Não podem viver daquele jeito, sempre de coleira, não podendo nem sair pra passear ou brincar com outros bichinhos. É horrível.
Renato suspirou.
— Demônios são tão estranhos.
Clara se ajeitou.
— Vamos indo, Renato. Temos pouco tempo e precisamos nos preparar para o que está por vir. Não espere moleza. O treinamento vai ser pesado.