Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 27
Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1911
Aren Bomani caminhava pela Avenida Central da capital. A mão no bolso da calça garantia que não perderia o importante objeto que carregava. Respirou fundo, sentindo o cheiro do sal misturando-se ao esterco dos cavalos que puxavam as carruagens. Desagradável.
A multidão transitava com pressa pela calçada, como se estivessem atrasadas para um compromisso. A verdade, ele sabia, era outra: estavam com medo.
A Avenida Central era uma vista atípica na capital, inspirada nos bulevares franceses — mais uma política para aproximar a imagem do Brasil à Europa. Era larga, bem pavimentada, arborizada, com muitos prédios recém-construídos e imponentes em todo o comprimento. Com uma extensão de quase dois quilômetros, iniciava na Praça Mauá… E isso era um problema.
Na praça havia um porto, ou seja, a avenida estava diretamente conectada com o mar. Além dos vampiros e dos mortos que se moviam no interior, alguma outra coisa também veio dos oceanos, atacando as pessoas perto do litoral.
A polícia se fazia presente a cada esquina da avenida, mas, dessa vez, Aren não se incomodou com o aparecimento daqueles que viviam buscando problemas com pessoas como ele.
Com grandes carabinas belgas do tipo Comblain em mãos, os funcionários públicos estavam preocupados demais com a possibilidade de algum daqueles monstros aparecerem repentinamente, não havia espaço em suas mentes para se importar com ele.
Seguiu pela avenida, procurando uma loja específica nas proximidades da Praça. Estava tendo dificuldades em encontrar a rua certa. Já estivera ali anos antes, mas a paisagem mudou drasticamente depois que demoliram mais de 600 edificações para abrir a avenida.
Conhecia alguns dos antigos habitantes, praticavam capoeira com ele, expulsos de casa de um dia para o outro. Tudo em nome do progresso. Soube por terceiros que eles foram para algum morro na periferia da cidade, mas nunca chegou a confirmar.
A aparência da via era fenomenal, tinha que admitir, mas ao mesmo tempo causava nele uma sensação de opressão.
Em cima de um banquinho de madeira, um garoto jovem gritava à plenos pulmões: — Últimas cópias do Jornal do Brasil número 25! Só duzentos réis!
— Isso é um roubo! — reclamou um homem de terno que passava por ali. — O preço está o dobro da semana passada.
O garoto olhou para ele, mas não retrucou. Apenas continuou gritando que eram as últimas cópias. Vencido, o homem pagou pelo jornal superfaturado e leu ali mesmo.
Aren tinha curiosidade para saber de mais notícias, mas isso poderia esperar. A prioridade era vender aquilo. Reconheceu uma das ruas e virou à esquerda, se afastando dos olhares da avenida.
Em uma fachada estreita, onde só apareciam uma porta que conduzia a uma escadaria, encontrou o local que procurava. Subiu os degraus com calma e abriu outra porta, que tocou um sino, acessando uma grande sala com várias estantes e balcões lotadas dos mais diversos artefatos.
Um velho grisalho atrás de uma bancada cumprimentou: — Bom dia. — Seu olhar analisava Aren da cabeça aos pés, julgando qual seria seu tipo de cliente.
— Dia — respondeu, se aproximando vagarosamente do dono da loja.
— Quer comprar ou quer vender?
— Vender. — Aren deu um sorriso. — É coisa boa. — Puxou a mão para fora do bolso da calça e colocou um objeto envolto em um tecido em cima da mesa.
O vendedor não parecia muito interessado… Até que Aren abriu o embrulho e exibiu o conteúdo. Uma gema vermelha do tamanho de um punho.
O lojista deu um sobressalto e puxou uma pequena lente do bolso. — Posso pegar para avaliar?
— Fica à vontade.
O idoso pegou o objeto e começou a avaliar todos os ângulos da pedra. Depois de ponderar por um tempo, colocou o objeto novamente na mesa.
— Posso te oferecer setenta mil réis — falou contorcendo os lábios. — E já estou quase sem margem de lucro aqui.
Aren olhou para o lado, analisando as joias em um balcão de vidro. Viu um colar de rubis e olhou seu valor, setenta e cinco mil réis.
— Tá querendo dizer que aquelas pedrinhas ali valem quatro vezes mais do que essa? — Deboche e descrença estavam estampados no rosto do homem negro.
Mesmo assim, o vendedor não se intimidou. — Pedras refinadas por um profissional valem bem mais do que uma gema bruta. Metade dela vai pro lixo assim que fica pronta, então essa aqui nem é tão grande assim.
— Me ofereceram bem mais noutra loja de penhor — falou, pegando a pedra e embrulhando no tecido novamente. — Acho que vou ter que voltar lá…
O lojista revirou os olhos. Ambos sabiam que o outro estava mentindo, mas não poderiam trocar acusações sobre isso.
— Façamos assim então, camarada. — O penhorista apontou para uma estante do lado da entrada. — Aqueles objetos ali estão parados há um tempo, não consigo vender. Te dou setenta mil, mais qualquer coisa com valor até trinta mil réis ali nas prateleiras. Pode escolher.
Os dedos do lutador de capoeira tamborilaram sobre o balcão. Quarenta mil é bem menos do que eu tava pensando, mas se tiver alguma coisa boa ali pode ser que o acordo valha a pena…”
— Vou dar uma olhada então. Se tiver algo que eu queira, a gente fecha.
O vendedor concordou com a cabeça, enquanto Aren andava até a tal prateleira. O tipo e o valor dos itens variava bastante. Alguns talheres de prata, anéis, colares, ferramentas e uma máquina de escrever.
O objeto mais valioso ali era a máquina, com um valor muito superior aos trinta mil combinados. A opção mais vantajosa era um trio de talheres de prata, custando vinte e nove mil réis.
“Uma colher, um garfo e uma faca… Só coisa inútil.” Não parecia bom, mas ainda buscava a compensação mais vantajosa, então ficou ali pensando no que fazer.
O sino tocou e a porta se abriu outra vez, um homem havia entrado. Estava bem vestido, tinha cabelo encaracolado, um par de óculos redondos e carregava uma maleta. Sem exitar, andou em direção ao balconista da loja.
— Boa tarde, Silva. Vim ver se alguma gema bruta interessante apareceu recentemente.
O lojista cumprimentou o cliente recorrente com um aceno de cabeça. Em seguida puxou uma tábua com pedras brutas, opacas e assimétricas. Entretanto, para aquele homem, isso não era um problema.
O homem de cabelos encaracolados se inclinou diante delas e comentou: — Duas esmeraldas, uma ametista, uma água-marinha e um topázio-imperial.
Sequer pegou os instrumentos para identificar com precisão o valor que cada uma daquelas gemas poderia alcançar no futuro.
— Esse topázio é interessante, mas… — os olhos do cliente desviaram para o embrulho logo ao lado. — Por que não me mostra a última gema?
Suor começou a escorrer da testa do vendedor, que tentou desviar o assunto. — Isso é outra coisa… As pedras que apareceram são essas. — Pegou o topázio e colocou diante dos olhos do cliente. — Esse aqui eu consegui pagar um pouco menos, então podemos até acertar um valor mais baixo.
— Hmmm… um valor reduzido seria bem interessante. Talvez até consiga agregar a um colar que já comecei a produzir.
Mais tranquilo depois de desviar o foco do especialista, pensou que tudo estava resolvido. Venderia esse topázio, depois fecharia o acordo sobre o rubi e ficaria podre de rico. O plano era perfeito.
Pelo menos, seria perfeito, se Aren não tivesse prestado atenção na conversa.
Deixando aqueles itens sem serventia de lado, se aproximou do homem recém-chegado. — Cê parece ter bons olhos para pedras preciosas.
O homem ajustou os óculos e encarou Aren de cima a baixo. Claramente não era o tipo de gente que se envolveria, mas, por educação, respondeu mesmo assim. — Eu trabalho com a lapidação de gemas e confecção de joias. É apenas parte do trabalho.
Nesse instante, o lojista encarou com fúria o lutador de capoeira. Seus olhos diziam “fique em silêncio ou vou te expulsar da loja”. Mas um olhar zangado não era suficiente para assustar alguém como ele.
Pegou o embrulho de volta e abriu diante do sujeito. — Cê sabe que tipo de pedra é essa?
Quando a pedra foi revelada, os olhos do homem se arregalaram tanto que mal cabiam mais nos óculos. Ele deu um passo instintivo para trás, parecia ameaçado pela aparência daquilo.
Após a reação do homem, Aren soube que tinha a vantagem na negociação.
— O que você pensa que está fazendo!? — gritou o lojista. — Temos um trato, você vai vender ela para mim!
— Acontece que eu não saí de casa hoje para ser passado pra trás. — Aren colocou a gema diante do nariz do especialista e continuou a conversa: — Essa belezinha está a venda e pode ser toda sua.
— O…onde você encontrou isso? — Mesmo sendo um especialista, jamais havia visto uma gema bruta daquele tamanho. Além disso, nunca havia visto uma gema bruta com aquele brilho. Um brilho que parecia vir de dentro da pedra, invés da convencional refração da luz exterior.
Acuado, o dono da loja de penhores se intrometeu: — Tudo bem, tudo bem! Eu ofereço 50 mil, basta me passar a pedra agora mesmo!
— Cinquenta? — Não, não. Eu ofereço duzentos mil em espécie, agora mesmo!
Uma mão bateu com força no balcão, em seguida um grito de protesto: — Que merda é essa, Kalowitz?! Meu estabelecimento não é uma casa de leilão. Eu que faço os negócios aqui!
— Me desculpa, Silva. Amigos e negócios são coisas distintas. Eu quero essa gema!
O dono da loja ficou enfurecido e saiu em disparada para os fundos da loja. “Se aquele mão de vaca quer tanto essa pedra, então ela deve ser ainda mais valiosa do que pensei”. Um barulho metálico foi ouvido, e em seguida o homem estava de volta, carregando vários maços de notas.
— Aqui tem exatamente 760 mil réis, contei hoje de manhã. É a minha oferta final!
Aren se esforçou para não deixar a surpresa transparecer. O lojista aumentou em dez vezes a oferta original. Isso por si só já era incrível, mas o especializa chamado Kalowitz ainda poderia propor algo.
Suor frio escorria da fronte dos três homens, o montante envolvido era grande demais e qualquer erro seria muito caro.
— Eu vim aqui procurando adquirir pequenas pedras para aumentar meu estoque. Só queria uma garantia para evitar imprevistos… Mas aí aparece esse tesouro bem na minha frente, implorando para que eu o compre.
O homem chamado Kalowitz apoiou sua maleta sobre o balcão e a abriu. Para a surpresa dos outros dois, a maleta estava abarrotada com documentos, notas estrangeiras e pedras preciosas.
— Kalowitz! Se você continuar com isso, nunca mais vai pisar o pé na minha loja!!
Ignorando o aviso, pousou a mão sobre um envelope aparentemente sem valor e tirou de lá uma nota, o rosto do falecido ex-presidente Afonso Pena estampado ao lado do valor: Um Conto de Réis.
— Sinto muito por fazer isso, Silva… Entretanto, eu já pretendia deixar esse país. Já combinei a venda da oficina, da casa e demiti todos os empregados. Depois de amanhã pegarei um navio para Portugal, tenho um primo lá. Não sei de onde vieram esses monstros, mas não vou ficar aqui para ser comida deles!
O capoeirista quase não conseguiu fingir mais. Sempre viveu na miséria, sobrevivendo um dia de cada vez. Fez de tudo um pouco: plantava no quilombo, vendia produtos manufaturados nas ruas da capital, fazia bicos ocasionais de segurança e até mesmo participava de lutas por dinheiro.
Mas, nesse instante, bem diante dele, havia mais dinheiro do que nunca havia visto. Seria o suficiente para que uma comunidade inteira passasse um ano sem dificuldades.
Diante o silêncio do capoeirista, Kalowitz falou nervosamente: — Senhor, normalmente eu ofereceria mais, mas diante da situação atual não é possível oferecer mais do que isso…
Aren apenas sorriu.
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Em seu caminho de volta, Aren já não tinha mais a pedra no bolso. No lugar disso, um punhado de notas em um envelope.
Após fechar o negócio com o tal especialista, seguiu para um banco próximo e trocou em notas menores. Seria problemático usar uma nota de valor tão alta.
— Aposto que o pessoal vai ficar surpreso com isso.
Além disso, não foi o único responsável por abater o monstro aquele dia. Foi um dos maiores responsáveis, sim, mas não teria vencido se estivesse sozinho.
Dividiria igualmente com Sophia e Anahí… quer dizer, quase igualmente. “Mereço uma pequena taxa por ter concluído o negócio.”
— Trezentos para cada, quatrocentos para mim… Sim, não tem do que reclamar.
Passou novamente pelo mesmo menino vendendo jornal. Iria apenas ignorá-lo, até que lembrou de Arthur. Comprou uma edição para ele, talvez o animasse um pouco, imaginou.