Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 16
Na tenda do Capitão-Tenente César, onde atualmente operava a central de comando da Marinha, o grupo de Lucas aguardava. Com exceção de Anahí, que escolheu ficar de guarda do lado de fora, o restante resolveu aproveitar para descansar da forma que podiam.
Quando a luz começou a passar pelas frestas na tenda, o oficial retirou um relógio de bolso de dentro de seu casaco e conferiu o horário.
— Seis horas e onze minutos. — César falou e logo em seguida marcou mais um risco em seu calendário. — Dezesseis de Janeiro. Eu nunca fui fã de segundas-feiras… mas, se resolvermos esse caos sem mais problemas, já me dou por satisfeito.
Ao ouvir o chamado do capitão, Lucas abriu as pálpebras e olhou ao seu redor. A luz natural ainda era fraca, mas já era suficiente para iluminar um pouco mais o ambiente e marcar o começo de mais um dia.
O rapaz se espreguiçou e levantou da cadeira onde tinha dormido. A dor ao levantar lembrou-o da cama que precisou abandonar no meio da noite. “Não posso comemorar uma única noite”, reclamou consigo mesmo.
Caminhou até Arthur e Sophia, que estavam dividindo a única poltrona do local, e cutucou os dois. Quando eles abriram os olhos, Lucas teve a impressão de que suas íris emitiam um leve brilho, mas resolveu ignorar este detalhe e ir acordar Aren.
O antigo líder do quilombo estava sentado em um banco no outro canto da tenda, com os braços cruzados e o cabo de sua lança entre eles. Seu assento não tinha encosto, porém mesmo assim ele conseguiu se manter perfeitamente equilibrado enquanto dormia.
Se não tivesse visto Aren permanecer estático a noite inteira, Lucas teria certeza que os humanos não conseguiriam dormir desse jeito. O jovem lembrou de algumas histórias que Arthur contou, sobre monges guerreiros no oriente, e pensou que esse tipo de coisa talvez fosse normal para os artistas marciais.
Após se aproximar do companheiro, chamou: — Aren, já amanheceu.
O homem abriu os olhos e permaneceu parado do mesmo jeito que estava antes. Após suspirar profundamente, se levantou e cumprimentou quem o acordou.
— Vivos pra mais um dia de luta — disse enquanto se espreguiçava.
— É o que parece.
— Vou chamar a Anahí e buscar algo para comer. — Aren falou e em seguida foi para o lado de fora.
Com um cansaço perceptível na voz, Sophia reclamou: — Que sono… Dá pra dormir mais um pouco, não?
— Tem café — disse César, enquanto apontava para uma mesa ao lado de Lucas. — Ainda deve estar quente.
Lucas serviu uma xícara de café, alcançou à menina e explicou: — Se acontecer o mesmo que da última vez, precisamos aproveitar o tempo antes do próximo ataque. Não podemos contar com a sorte sempre.
Ao falar a última parte, Lucas encarou Arthur. O mais novo entendeu a mensagem de seu irmão — não mostre seus poderes — e em seguida assentiu com a cabeça.
Depois que Anahí e Aren voltaram, o grupo comeu a primeira refeição do dia. Quando terminaram, se despediram de César e decidiram voltar para a própria barraca.
No caminho, a destruição causada durante a noite ficou perfeitamente visível. Barracas com partes rasgadas, manchas de sangue e cápsulas de projéteis espalhadas no chão.
Enquanto os militares carregavam os feridos ou os corpos dos mortos para outros locais, a população começava a limpar a bagunça causada durante a noite.
Ao passar perto de uma tenda, o grupo notou uma placa pendurada na entrada; ela destacava que ali ficava alguém importante no acampamento. Contudo, ao olhar o local uma segunda vez, notaram rastros de sangue na terra em frente à entrada.
Quando se aproximaram mais, escutaram sons de rosnados e grunhidos animalescos; típicos dos vampiros. Aren fez o movimento para puxar sua lança das costas, porém foi impedido por Lucas.
— O espaço é muito apertado. Eu vou lá ver.
O rapaz tirou o revólver da cintura, conferiu as balas no tambor e depois engatilhou o cão da arma. Com a mão esquerda, desembainhou o sabre e o usou para mover o pano que cobria a entrada da tenda; apenas o suficiente para poder passar.
No interior da barraca, uma criatura devorava o que parecia ser o pedaço de um braço humano. Mesmo com a pouca luz, era possível ver a pele cinza e as enormes garras e dentes do pequeno monstro; com pouco mais de um metro e meio de tamanho.
Aproveitando a desatenção de seu oponente, o jovem devolveu o revólver à cintura e passou o sabre para a mão direita. Com calma e silêncio, aproximou-se, pouco a pouco, das costas da fera.
Quando estava perto o suficiente, em um movimento rápido com o sabre, Lucas cortou o lado direto do pescoço do monstro. A criatura cambaleou para o lado oposto ao ataque, com a cabeça pendendo do corpo e sangue verde jorrando pelo chão, e em seguida caiu morta.
Agora que não havia mais perigo, a entrada da tenda foi completamente aberta e a claridade invadiu o ambiente. O corpo do monstro se desfez em uma fumaça negra e desapareceu, deixando somente um pequeno cristal para trás.
O grupo entrou e Arthur perguntou: — O que o vampiro queria aqui dentro?
O jovem limpou o sangue esverdeado da lâmina e guardou o sabre de volta na bainha. Depois juntou a pequena pedra e guardou em um dos bolsos de sua calça.
— Estava devorando o que sobrou de um azarado.
Com o ranger das dobradiças, a tampa de um baú foi aberta, revelando uma pálida menina usando pijama. Ela não devia ter mais de dez anos; estava com marcas de choro e uma expressão vazia no rosto. Contudo, a coisa mais peculiar em sua aparência eram os cabelos brancos e seus olhos de íris púrpuras.
Graças à luz que vinha da abertura na barraca, agora era possível enxergar melhor os objetos presentes no local. Ao ver um conjunto de roupas masculinas penduradas em uma cadeira, Lucas ajudou a garotinha a sair de dentro do baú e perguntou: — Cadê o seu pai?
A menina esfregou os olhos com as mãos e respondeu de forma tímida: — Eu… não sei.
“Ela deve ter se escondido ali quando ouviu o ataque”, pensou Lucas.
Sophia pegou o primeiro lençol que viu dentro da barraca e jogou por cima do membro decepado que estava no chão. Independente da situação, nenhuma criança deveria ver uma cena assim.
— Vai ficar tudo bem. A gente vai achar ele — disse a menina de cachos loiros, enquanto se aproximava da garotinha.
A garotinha assentiu com a cabeça, porém permaneceu com o mesmo olhar vazio no rosto. A expressão da criança incomodava Anahí, que perguntou: — O que fazer com ela?
— Vamo ficar com ela até encontrar a família! — disse Sophia.
— E se ele não estiver mais vivo? Talvez esse braço no chão seja o pai dela… — respondeu Aren.
— Ocê não pode falar essas coisas na frente dela! — reclamou enquanto cobria os ouvidos da menina. — Se o pai tiver morto, a gente encontra a mãe.
Buscando informações nos pertences da barraca, Arthur revelou: — Não encontrei nenhuma roupa de mulher — fez uma pausa — na verdade também não encontrei nenhuma roupa de criança.
Enquanto o grupo discutia o que fazer, um homem parou na entrada da tenda e perguntou: — O que está acontecendo aqui?
Ele devia estar por volta dos quarenta anos de idade e usava um elegante terno, que provavelmente era feito sob medida, pois sua baixa estatura era evidente. O homem tentou passar pelo grupo e entrar na barraca, porém foi impedido por Aren.
— Calma aí, amigão. — Aren falou de forma tranquila, mas seus quase dois metros de altura e a enorme lança nas costas paralisaram o indivíduo, que era bem menor que ele.
O homem se recompôs do susto e novamente reclamou: — O que vocês estão fazendo na minha tenda? E-eu vou chamar os militares!
Lucas olhou para a menina e depois encarou o sujeito. Não viu semelhança nenhuma entre os dois, mas, mesmo assim, perguntou: — Você é o pai dela?
O homem olhou para a garotinha e abriu a boca para falar alguma coisa, porém, antes que algum som pudesse sair, ela correu em sua direção e o abraçou.
— Papai! Finalmente você voltou!
O homem exibiu uma expressão estranha em seu rosto e ficou em silêncio por um instante. Logo em seguida, olhou para Lucas e falou: — Sim, ela é minha filha.
— Acho que é isso então. Tudo foi resolvido e agora podemos ir embora… — o jovem deu um sorriso ambíguo para o homem — Mas, na próxima vez, deixe a menina em um lugar seguro. — Atrás dele, o restante do grupo seguiu.
Enquanto se afastavam da barraca, Anahí comentou: — Aquela menina é estranha.
— Provavelmente a mãe dela era albina também. É uma condição hereditária — explicou Arthur.
Anahí balançou a cabeça em negação e completou: — Não é isso. Ela tem… um olhar diferente das outras pessoas. Um olhar estranho para uma criança ter.
— Não podemos fazer nada sobre isso — reclamou Lucas. — É como você mesma disse outro dia, Ana. Coisas estranhas são normais agora.
— Ocê viu o jeito que o pai dela falou? Tem algo de errado… — reclamou Sophia.
— Ela chamou ele de pai. E, de qualquer forma, não temos tempo pra pensar nisso agora. Precisamos ajudar a reforçar o entorno do acampamento e descobrir por onde os vampiros podem vir — respondeu Lucas.
— Tem bastante gente aqui e não tem espaço pra desviar. Se aparecer um grandão de novo… muita gente vai morrer — completou Aren.
A discussão continuou por mais algum tempo, mas Lucas foi firme e manteve o foco naquilo que considerava mais importante — defender o acampamento inteiro — então deixaram o assunto da menina de lado.
O caminho mais curto até a barraca deles estava obstruído. Por algum motivo o fluxo de pessoas ali estava muito grande, então precisaram pegar um desvio que passava pelo centro do acampamento; o local onde ficava a igreja.
Nenhum deles queria chegar perto daquele lugar onde viram uma pessoa crucificada e repleto de fanáticos enlouquecidos, porém, era a única opção nesse momento.
Quando ficaram próximos o suficiente da igreja, viram algo que os deixou espantados. Lucas parou de andar e disse: — Não acredito nisso.