Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 17
Quando chegaram perto o suficiente, tiveram, outra vez, a perturbadora visão da pessoa crucificada no topo da igreja. As aves carniceiras já haviam reduzido a pobre criatura a pouco mais de ossos e trapos rasgados, porém, de alguma maneira, seu corpo continuava preso à cruz.
Contudo, a pior cena foi outra: diversas pessoas mortas bem em frente da paróquia. As marcas de garras e mordidas revelavam com clareza os responsáveis pela carnificina. Civis desarmados e desprotegidos
O sangue, quase seco, marcava as grossas portas de madeira com manchas desesperadas de mãos que buscaram uma salvação que nunca veio.
— Acho que vou vomitar — disse Sophia, com uma das mãos cobrindo a boca.
Aren passou para a frente da jovem de cachos loiros, bloqueando sua visão, e respondeu: — Melhor cê segurar a comida na barriga um pouco mais, então olha pro outro lado.
— Como isso pode acontecer? — perguntou Anahí.
Lucas nem precisou contar para notar que havia bem mais mortos do que o capitão havia dito antes. “Trinta civis mortos? Coisa nenhuma! Deve ter mais de cinquenta corpos só ali.”
Arthur recordou-se do mapa, que havia visto na tenda de César, e concordou: — Não faz sentido… Aqui é o centro do acampamento e deve ser bem mais fácil de proteger do que as bordas.
Aren beijou uma fita colorida em seu pulso e depois disse: — Eles deixaram essas pessoas morrerem.
Após as palavras do homem, um calafrio percorreu o corpo dos outros membros do grupo. Enquanto pensavam sobre isso, as portas da igreja começaram a se abrir.
O ranger das dobradiças era tão alto quanto o barulho da porta arrastando os corpos em sua frente. Quando o espaço tornou-se suficiente para que alguém passasse, um grupo de homens vestindo batinas pretas saiu de dentro do prédio.
Eles olharam brevemente o estrago do lado de fora e em seguida começaram a remover os corpos da frente das portas, para que elas pudessem ser completamente abertas. Sem qualquer cuidado, se valendo inclusive de pontapés, removeram todas as vítimas que estavam no caminho da porta.
Quando terminaram de abrir a passagem, de dentro da igreja saiu um homem velho. Porém, diferente dos outros que vieram antes, ele vestia uma batina branca e usava um pequeno chapéu vermelho. Sua posição na igreja claramente era superior.
Uma pessoa, que estava arrumando a bagunça na sua tenda, exibiu uma expressão de irritação e falou: — Aquele maldito cardeal Pedro Tempesta. Se não fosse por ele… — Interrompeu sua fala quando sentiu os olhares dos crentes sobre ele.
Quando o cardeal saiu, um grupo com cerca de uma dúzia de pessoas seguiu atrás. Eles fizeram gestos de agradecimento, deixaram alguns pertences com os homens de preto e depois foram embora.
Desde que as portas foram abertas, o grupo de Lucas permaneceu parado, observando a situação e sem entender direito o que havia acontecido naquela igreja. Mais uma coisa bizarra para a lista deles.
Alguns membros da igreja voltaram para dentro, porém a maior parte, junto com o cardeal, seguiu para outro local. Em seu caminho, passaram ao lado do grupo que voltava para a tenda.
Quando o cardeal estava bem próximo do primogênito dos Guerra, Lucas olhou em sua direção e perguntou: — Aposto que ainda tinha bastante espaço lá dentro. Por que não deixaram aquelas pessoas entrarem?
O cardeal Tempesta olhou para o jovem e, com um sorriso no rosto, respondeu: — É apenas a justiça divina, meu jovem. Buscavam refúgio na casa de Deus, mas não doaram o nada à ele… Um dos piores pecados que alguém poderia cometer.
Com ambas as mãos formando um punho, Lucas gritou: — Essa é a mesma ideia que vocês seguiram quando mataram aquela pessoa? — Apontou para a cruz no topo da capela.
Os membros da igreja se enfiaram na frente do jovem enfurecido. Tempesta continuou com a mesma expressão cínica no rosto e voltou a falar.
— Um bom homem. Em busca de expiar os próprios pecados, se ofereceu de bom grado para homenagear nosso salvador. — O católico olhou para o grupo e fez uma expressão de nojo. — Se vocês quiserem buscar redenção, as portas da igreja sempre estarão abertas para mais homenagens.
Aren pensou em falar alguma coisa, mas foi impedido por Arthur. Em seguida o grupo do cardeal se retirou e seguiu em direção à estação de trem. Quando estavam longe do restante da multidão, Tempesta questionou um de seus asseclas.
— Padre Mateus, aqueles jovens são as pessoas que você estava investigando, certo? — Após terminar de falar, o cardeal fitou o subordinando, esperando a resposta.
O jovem homem, com um par de olhos azuis respondeu: — Sim, vossa Eminência. Desde que saíram da tenda de madrugada, eu os segui o máximo que consegui.
O padre começou a se recordar dos acontecimentos daquela noite. As chamas pareciam se comportar de uma forma incomum, como se obedecessem as vontades de alguém, mas isso deveria ser apenas uma ilusão causada pelo cansaço e estresse.
Após um tempo pensando nas palavras, o jovem respondeu: — Presenciei o começo de um conflito com alguns dos monstros, então me afastei para garantir minha segurança, mas não notei nenhum comportamento estranho até esse ponto.
Tempesta parou de andar, e junto com ele o restante do grupo, e depois apontou para o crucifixo que o jovem carregava ao redor do pescoço.
— Você sabe o que significa carregar isso? Sabe o que significa usar esta roupa?
O padre abaixou a cabeça e, de forma respeitosa, respondeu: — Significa que vivemos a serviço de Deus, vossa Eminência.
— Vai muito além disso. Estes símbolos são a representação do nosso vínculo! Vínculo este que nos protege de todo e qualquer mal.
O jovem engoliu em seco, pois a mensagem era clara. Ele deveria ter arriscado sua vida para obter mais informações.
— Entendido, senhor… mas, com todo o respeito, por que fizemos isso? Seguir um grupo de crianças que não fez nada.
O rosto do cardeal tornou-se sério, enquanto falava: — Neste acampamento estão todos os refugiados em vários quilômetros. As redondezas são de floresta densa e perigosa mesmo sem a presença de monstros, contudo, mesmo assim eles sobreviveram e chegaram aqui.
Quando mais o cardeal falava, mais confuso tudo se tornava. Então o padre insistiu: — Me desculpe, mas eu ainda não entendo. Você está dizendo que eles receberam ajuda divina?
— Nenhum deles carrega as marcas de Deus. E, para piorar, carregam símbolos pagãos e profanos. Não foi nosso Senhor que os guiou. Você é muito jovem, então falta experiência para ver as nuances, mas foi o próprio diabo que os trouxe até aqui.
Um calafrio percorreu o corpo do jovem padre. Ele tentou dizer alguma coisa, mas foi interrompido pelo cardeal.
— Seu trabalho de investigação terminou. Irei pedir para que uma pessoa mais apropriada cuide disso a partir de agora. Volte para a igreja e ajude com a bagunça.
Após assentir com a cabeça, Mateus ficou parado observando o cardeal entrar na estação e sumir quando as portas se fecharam.
Caminhando de volta para a igreja, o jovem padre refletiu: “até recentemente era tudo tão claro, mas, desde que tudo isso começou, não mais vejo a vontade de Deus nas ações da Igreja… Ou talvez eu apenas não tenha fé suficiente para enxergar.”
A visão das vítimas sendo amontoadas em uma carroça apenas reforçou as angústias do homem. “Poderíamos ter salvo eles… e mesmo assim não o fizemos”, pensou Mateus.
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O Sol já estava no seu ponto mais alto e a maioria das pessoas no acampamento fez uma pausa para almoçar. E Lucas e companhia não eram exceção.
Enquanto os integrantes do grupo comiam e conversavam em sua tenda, um marinheiro de pele escura apareceu na entrada. O homem carregava uma caixa de papelão em uma das mãos e um grande papel enrolado na outra.
O militar ofereceu os itens e disse: — Aqui está o que vocês pediram para o capitão-tenente.
Lucas recebeu a caixa e Arthur pegou o papel enrolado. Ambos agradeceram e se despediram do marinheiro, que foi embora em seguida.
Anahí, que não estava na tenda durante a noite, não sabia que eles haviam pedido algo, então perguntou: — O que é isso?
Lucas deixou a caixa ao lado de seu prato na mesa, um pouco rude do ponto de vista de Sophia, e depois buscou algo enrolado em um pano perto de sua cama. Conforme desenrolava o tecido do objeto, falou: — Eu pedi algo que vai fazer toda a diferença.
Quando descobriu completamente o objeto, revelou o rifle de seu pai, o Winchester Model 1907, quase não haviam modelos dele no Brasil, então não tinha conseguido encontrar munição para ele até o momento.
Felizmente, César era um oficial e podia requisitar qualquer tipo de munição que estivesse no depósito militar do acampamento.
Abrindo a caixa, retirou um clipe e depois começou a inserir os projéteis dentro.
— E como você conseguiu isso daí? Os militares não têm fama de distribuírem coisas assim de graça — perguntou Aren.
Após inserir dez projéteis no carregador, Lucas introduziu a peça na parte de baixo da carabina e conferiu se estava bem preso. Depois respondeu ao companheiro.
— Não foi muito difícil. Parece que tem algumas caixas dessa munição no depósito, mas só eu tenho essa carabina — fez uma pausa e exibiu um sorriso pretensioso — Além disso, eu vou usar melhor que os subordinados dele.
Lucas conferiu a trava de segurança e guardou a arma debaixo da cama. Depois começou a remover algumas coisas da mesa para abrir espaço. Quando o centro ficou livre, Arthur começou a desenrolar o papel por cima dela.
— Ele pediu balas e eu pedi um mapa. Precisamos de detalhes dos arredores para ter uma defesa eficiente — falou Arthur.
Ao terminar de abrir o papel, colocou objetos nas extremidades para mantê-lo fixo. O objeto amarelado e com alguns furos de traças já exibia os sinais da sua idade avançada. Um olhar mais atento ao canto do mapa confirmava as suspeitas de se tratar de algo velho.
Arthur leu em voz alta o que estava escrito: — Arredores do Ryo de Janeyro, capital dos Estados do Brazil — fez uma pausa para reclamar da grafia das palavras e continuou: — Esse mapa já tem mais de cem anos. Eles roubaram isso dos arquivos de uma biblioteca?
Sophia se aproximou para olhar os detalhes no papel e perguntou: — Não tem nenhuma construção mais nova, nem a ferrovia tá aí. Ocê acha que vai servir mesmo assim?
— Ele é muito velho, mas a geografia dos arredores desse acampamento está aqui, então vai ser suficiente. Só precisamos cuidar para não esquecer as construções que faltam aqui.
Arthur encarou o mapa por um momento e voltou a falar: — No acampamento existem quatro pontos de acesso maiores. Um em cada direção. Além deles existem mais algumas passagens menores, por onde é possível passar um pequeno número de pessoas.
Anahí terminou de comer antes do restante, então aproveitou o tempo extra para trançar uma corda. Ela enrolou os fios entre os dedos, criando um emaranhado similar às teias de uma aranha.
Enquanto exibia a arte, que na verdade era só uma brincadeira infantil, a indígena se pronunciou: — Bloquear o caminho entre as árvores é fácil. Só amarrar cordas entre elas e colocar outras coisas por cima…
O grupo conversou por um bom tempo e Arthur anotou tudo que poderiam fazer. Antes que a tarde acabasse, o primeiro plano de defesa do acampamento foi concluído.
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Rifle Winchester Model 1907