As Paredes do Céu Negro - Prólogo
1
Um suspiro no vazio.
No meio da escuridão massiva e infinita figurava um homem alto e forte, com os cinco dedos da mão enraizados no cabo de uma espada curta. Ele não tremia.
A lâmina da espada, não muito tempo atrás, havia tomado um banho de sangue. As gotas ainda caíam das duas faces, batendo em um chão invisível, e a escuridão, como em todas as direções, reinava lá embaixo. Seu domínio sobre o espaço era tão grande quanto as dúvidas dentro daquele pequeno homem de costas para mais e mais breu.
As roupas rasgadas mal e mal tampavam o abdômen coberto de ferimentos. Para piorar, o sangue pingava de várias partes do rosto, encharcando a máscara médica sobre a boca.
Drip! Drip! Drip!
Ele tomou a decisão de caminhar em linha reta. Os passos não conseguiam fazer-se ouvir mais do que os batimentos e as pulsações do seu corpo; o silêncio, ocupando o vazio infindável, preenchia os ouvidos do homem com os sons das suas próprias funções vitais.
Mas ele suportou a tortura e andou, andou e andou. Por via das dúvidas, andou mais um pouco.
E conforme andava, o olhar ia baixando para o chão. A face do arrependimento — mas pelo quê?
Pouco a pouco, a escuridão transformava-se em luz e as trevas líquidas do chão contorciam-se feito um amontoado de minhocas. O preto se tornava branco, branco e mais branco.
Tão branco que o cegou por um instante. Quando abriu os olhos, ele estava em um lugar totalmente diferente.
— A escuridão… virou isto. — Ele deu um sorriso decepcionado, forçado. — De novo. Devo continuar andando ou nunca vou sair daqui.
Era majestoso. De repente, o estrangeiro foi parar em um palácio dourado de proporções desmesuradas. As paredes, banhadas a ouro e detalhadas em cada centímetro; os arcos, magníficos e da cor da riqueza; e o chão, explodindo com cores intensas, coberto de mosaicos pintados por um talento como Leonardo da Vinci.
Mas o homem não deu importância ao palácio à sua volta. Retomou a caminhada, em busca da sua saída daquela prisão radiante mas solitária.
Uma grande porta apareceu na sua frente em pouco tempo. Ele abriu-a com alguma dificuldade e atravessou, acessando um corredor no mesmo estilo que o restante do palácio.
Duas falanges de portas se estendiam de ambos os lados do corredor. Analisou cada uma delas e não deu-se por satisfeito.
— Ela ainda não apareceu…
Levou dois minutos para bater o olho em uma porta especial. Desviou a rota e rumou na direção dela sem pestanejar.
De perto, notava-se ainda melhor o brilhantismo daquela obra de arte. Não havia igual no mundo.
E um pouco mais acima, gravado na superfície da porta, havia um número específico.
“1775”.
— Como sempre, fora de ordem — comentou. Então, o ar pesou à sua volta e o semblante do homem transmutou-se na perfeita representação da tristeza. — Por quê…? Por que estou aqui?
— Por minha causa — respondeu uma voz sem direção. Era a voz de uma criança que falava.
O homem deu um pulo de susto. Só foi se recuperar dois segundos depois, quando virou a cabeça para encarar espantado o fantasma ao seu lado.
A figura translúcida de uma criança ocupava o lado esquerdo do homem. Não respirava, não sorria e, vez ou outra, oscilava entre a existência e a inexistência, sofrendo com a ameaça da eliminação iminente.
— Eu não entendo. Nada me impede de não cruzar esta porta, e honestamente… você já está morto. Não sei por que eu estava tão empenhado em chegar aqui quando podia, você sabe, parar e descansar para sempre.
Crack!
O pescoço da criança-fantasma estalou. O olhar frio do homem se manteve.
— Você não podia. Nunca pôde — repreendeu a criança, apesar de o semblante permanecer inalterado. — Já se esqueceu do seu dever, papai?
O homem tremeu ao ouvir a última palavra.
— Não, não, não… eu não posso te ouvir, você é um fantasma e está morto.
— E quem te mandou parar diante da morte? Diga-me, quem te deu permissão para descansar por causa de algo tão insignificante? Papai, isso me faz pensar que a mamãe não foi tão injusta quando te abandonou. Estou errado?
— Eu me recuso a ouvir sermão de uma criança! Olha só pro que eu virei: um assassino sem compaixão, um maníaco ensopado de sangue vinte e quatro horas por dia! E tudo isso por sua causa, seu moleque mal-agradecido! Eu… eu… — e, quase parando, ele finalizou: — eu não sei por que ainda finjo que sinto alguma coisa. Se estamos falando em morte, temos dois mortos aqui.
Não dava para ler nada naquele semblante que se transformou.
Na verdade, ele não passava de um morto sem túmulo.
— Socorro, filho.
— Você não tem tempo para isso. Acorde, Enos… acorde, Enos… acorde, Enos… — repetia.
— Eu já entendi.
Ele abriu a porta que desembocava direto na sua infelicidade.
2
— Enos, acorda! — berrou uma voz feminina na cara de Enos. — Acorda, acorda, acorda! — e o chacoalhava de um lado para o outro.
A mão de Enos segurou a da mulher de cabelos azuis, poderosa.
— Eu já entendi.
— Finalmente! O que é que você tava fazendo aqui há tanto tempo, Enos?
— Eu? Eu só estava…
Aos pés de Enos e da mulher, dezenas de silhuetas brilhantes preenchiam o chão em pilhas e pilhas de corpos. Aquelas criaturas estavam mortas, com certeza. Perto da avenida de cadáveres repousava um homem de armadura negra com um corte profundo na garganta, os olhos sem cor e o cheiro pútrido já começando a se espalhar.
Os rasgos em seus corpos denunciavam o autor do genocídio.
— …tirando o lixo. Vamos andando? — Ele seguiu o seu caminho pelo corredor da faculdade, pisoteando os cadáveres das dezenas de mortos.
— Enos, o que houve com você? — perguntou a mulher, aflita. A situação do corpo daquele homem causava-lhe uma profunda ânsia.
— Por favor, só começa a andar — pediu Enos. — Eu tô muito, muito cansado.
Silêncio.
— Tá certo.
Os dois caminharam juntos, lado a lado. Enos continuava com os olhos de peixe morto pregados na cara.