As Paredes do Céu Negro - Capítulo 1
Dez da manhã. Tempo ameno, o sol brilhando fracamente na ponta oeste da abóbada celeste. O terceiro dia de janeiro começava bem como nenhum outro.
Pelo menos, a aparência estava boa.
Enos reuniu coragem e discou o número no telefone.
Zummm! Zummm!
De repente, um “beep” curto soou do outro lado da linha.
— Enos, é você? — falou a voz do outro lado.
— Já perdeu os modos? Bom dia pra você também, Sr. Policial.
— HA! — riu a voz. — Desculpa, desculpa, eu acho que não me apresentei direito. Meu nome é Romeo, eu…
— Corta essa, palhaço.
Silêncio.
Então, duas risadas tomaram conta da ligação.
— Bom dia, Enos. Como vai a vida? Tudo em cima ou embaixo?
— Quer saber a verdade? Em cima!
— Opa, opa! Aconteceu algo bom? — perguntou Romeo, a curiosidade nas alturas.
Enos estava recostado na pia da cozinha. Ele segurava o cabo de uma vassoura surrada, tão velha quanto ele.
Sobre o ombro, um pano úmido balançava cada vez que ele tentava encontrar uma posição mais confortável para falar ao telefone. O cabelo também estava um pouco molhado e pingava gotas d’água no chão desinfetado.
Enos não pôde conter o sorriso ao falar:
— Três de janeiro. Hoje é o aniversário do Daniel, não se lembra?
— Oh.
Silêncio. Silêncio estarrecedor.
— Romeo?
— Ah! Sim, sim. Eu fui pro mundo da lua por um segundo, desculpa aí.
— Nada.
Mais silêncio. Depois de cinco segundos de constrangimento, Romeo perguntou:
— O aniversário do menino é hoje mesmo…?
— Sim — respondeu, certeiro. Ele já tinha lido a vergonha escondida em cada palavra do amigo.
— Eu… eu nem sei o que falar. Desculpa mesmo, Enos.
As palavras que saíram da boca de Enos nos instantes seguintes fluíram como água em um rio.
Na verdade, ele estava aliviado com o arrependimento do amigo. Conseguia sentir que era genuíno.
— Não tem problema, tá perdoado — disse, agindo como um calmante vivo nos nervos de Romeo. — É o trabalho, não é? Essa vida de policial com certeza não é fácil.
Romeo suspirou com desânimo.
— Não é nada fácil mesmo. Olha, a verdade é que nem eu tô na cidade agora.
— Hum? E onde você tá?
— Em Campinas. O efetivo mais próximo foi remanejado pra participar das operações que eles estão conduzindo aqui — explicou. — Pontos de tráfico em cada esquina, bairros infestados de criminosos, calibres pesados passando de mão em mão como brinquedos… A situação só piora. Ainda devo que dizer que ocultei muitas coisas, porque os detalhes são sigilosos.
Nasceu dentro de Enos uma grande preocupação. Ele perguntou:
— Por que eu sinto que isso é incrivelmente perigoso?
— Porque é. — Romeo soltou outro suspiro, agora de resignação. — Bom, eu que escolhi esse caminho, preciso arcar com os meus deveres. Só consigo pensar em como eles estão se sentindo com isso.
— É o que eu ia te perguntar mesmo: e eles, como lidaram com a notícia? Digo, a dona deve estar morrendo de preocupação, e eu nem imagino o que o Davi pensa do seu futuro. Jesus!
— Eu fiz o meu melhor pra tranquilizá-los — explicou, e mudou de assunto em seguida: — Enos, lembra de quando os dois ainda eram bebês, o Dani e o Davi?
— Éramos uns babões. Aliás, ainda somos.
Romeo riu baixinho, contente.
— Eu vou levar o Davi aí quando puder, então avisa o pequeno, beleza? — disse, e completou, a voz lamentosa: — E me desculpa, de coração; eu não tinha a intenção de te desapontar logo hoje.
— Não esquenta com isso. E não é a mim que você deve desculpas, se é assim que pensa.
— Vou manter isso em mente.
Então, do outro lado da linha, alguém chamou Romeo com voz grave.
O som bateu nos tímpanos de Enos e atravessou o cérebro como uma lança furiosa.
— Preciso ir, é o delegado me chamando. Pelo visto vou ter que sair de novo… — disse Romeo baixando o tom. — Eu prometo que ligo depois de acabar por lá. E diz pro pequeno que ele vai ganhar um montão de cartinhas, estamos entendidos?
— Alto e claro, Rambo.
— Ha! Até mais tarde, Enos. Se cuida.
— O dobro pra você. Pensa neles quando estiver lá.
— Vou pensar. — O delegado tornou a chamá-lo, visivelmente mais irritado. — E lá vamos nós…
Beep~
Enos riu consigo mesmo.
— “Rambo”? O que eu sou, um aluno do fundamental?
— Igualzinho, papai — comentou uma voz na distância.
Enos pulou de susto, virou-se de supetão e viu Daniel apoiado na bancada, devorando um saboroso pão com manteiga feito na air-fryer. O leite no copo dele estava fumegando de tão quente.
O coração dele quase parara, os químicos fizeram uma bagunça no cérebro. O atordoamento foi generalizado.
— Q-Quê?! Desde quando?! — perguntou, a pressão subindo em linha reta.
— Desde que você discou o número do tio Romeo, ué — esclareceu. — Ah, sim: eu perdoo ele por não ter vindo hoje, mas aceito as cartinhas. Avisa depois, tá?
— Francamente…
Sem aviso, Enos pulou na direção de Daniel e o envolveu em um abraço de urso, afagando sua cabeça com força. Completamente inescapável.
— Pestinha, pestinha, pestinha mil vezes!
— Ai! Pode me azucrinar, mas tira esse pano imundo do ombro e seca esse cabelo! Que nojo!
— Eita, vida! — Enos afrouxou o aperto e analisou as roupas de Daniel com olhos de águia. — Você se sujou? Justo hoje!! Se sujou, hein?
— Ainda não… E nossa, você tá mais meloso que o normal, papai.
Enos riu.
— E como eu deveria estar? Hoje é o seu aniversário, eu não posso fazer pouco caso — explicou. — Você vai entender quando for mais velho.
— Mais velho que você? Uou… — comentou, irônico.
— Haha! Você chega lá, acredita em mim — tornou a explicar, um sorrisinho brotando das beiradas dos lábios. — Só me espera, que eu vou tomar um banho. A gente sai em dez minutos.
— Isso aÍ! Finalmente vou torrar a sua grana com cartinhas!
E os dois riram juntos, como o pai e o filho que eram.
…
A caminho do shopping, Enos e Daniel foram obrigados a parar em um posto de gasolina. O carro implorava por uns litrinhos.
Eles decidiram visitar a loja de conveniência do posto antes de seguirem a viagem. Enos estacionara o carro em uma vaga próxima por alguns minutos, assim eles tiveram tempo de procurar com calma os doces de Daniel.
Ao sair da loja com o pai, Daniel segurava uma sacola abarrotada de toda sorte de doces: pirulitos, paçocas, jujubas e além, muito além.
— Nada de comer os doces antes de almoçar, hein? — advertiu Enos.
— Eu sei, eu sei…
— Sabe mesmo?
— Juro pelo meu pai manco de uma perna.
Enos arregalou os olhos na mesma hora.
— Não me mete nessas suas juras estranhas. Tá querendo que eu fique manco?
— De uma perna só. Que mal tem?
— Acontece que eu preciso das duas pernas pra fugir da sua mãe quando a gente ignora os cronogramas dela.
Daniel esguichou um pouco de ar da boca, segurando o riso entre as bochechas infladas.
— Senso de humor? Onde aprendeu?
— Com um palhacinho de um metro e meio! — e, andando, completou: — Você!
Eles estavam prestes a entrar no carro quando uma voz chamou:
— Ei! Ei! Vocês dois!
Meio desconfiados, se viraram para ver o rosto da figura. Nada muito nítido graças à distância.
Com um sorriso permanente, ou o que pensaram ser um sorriso, o homem sentava-se atrás de um pequeno e desgastado balcão de madeira, acampado na calçada mais próxima, apoiando os antebraços na superfície áspera e vazia. Acima dele, e entre duas tábuas de sustentação, uma placa trazia os dizeres:
“Conte-me uma experiência sobrenatural e eu lerei a sua sorte! (Estou escrevendo um blog, por favor, participe.)”
Enos apontou para si mesmo e perguntou, erguendo a voz:
— Nós?
— Isso, vocês mesmo! Venham aqui e me ajudem com a minha pesquisa, por favor!!
Enos já tinha a sua resposta na ponta da língua:
— Estamos sem tempo. Talvez na próxima, amigo. Até ma… Daniel? Ei!
— É de graça? — perguntou Daniel, na frente do estranho e a dez passos de distância de Enos.
— Totalmente! E aí, vai querer participar? Não é nada difícil.
Daniel fez que “sim” com a cabeça. Enos já estava ao seu lado, mas a essa altura não poderia fazer nada, apenas deixar fluir a curiosidade do filho.
Pelo menos, a proximidade o permitiu examinar detalhadamente a aparência do sujeito.
Longos cabelos ruivos tombavam sobre seus ombros. No rosto, sardas pintavam poucas regiões das bochechas. Pelos contornos de seu corpo pequeno, deduziu que estava entre os sessenta e cinco e setenta quilos. As olheiras não se faziam menos presentes que esses traços.
No entanto, sua característica mais marcante era aquela tatuagem no pescoço. Uma serpente vermelho-sangue, daquelas constritoras com “bestialidade” escrita na testa, enroscando-se nele como se o estivesse enforcando.
Enos não conseguia esperar algo bom de alguém assim.
O homem estranho pediu a Daniel que se sentasse no banquinho reservado aos voluntários. Daí, preferiu encorajá-lo a falar em vez de somente esperar:
— Certo, certo… Eu estou colecionando histórias sobrenaturais para o meu blog e cada relato é muitíssimo importante. Tudo que precisa me contar é uma história sobrenatural que você vivenciou ou que chegou aos seus ouvidos de alguma forma.
— Acho que peguei a ideia. Hum… ei, tio, qual é a da cobra?
— Isto? — ele relanceou o olhar para a tatuagem. — Nada de mais. Gente jovem faz tatuagem de tudo; até você vai fazer uma ou duas quando for mais velho.
Os olhos vidrados no desconhecido, Enos balançou a cabeça em negativa.
— …oooou não. Deixa quieto. Tatuagem é pra perdedores! — corrigiu-se. — Não vamos fugir muito do assunto. Já tem algo em mente? Qualquer história, qualquer coisa mesmo.
— Mais ou menos. Só uma última pergunta: por que você tá fazendo isto na frente de um posto de gasolina?
— Santa curiosidade, hein? É pela conveniência.
— A loja?
— Não, não, a conveniência em si! É muito prático pescar alguns voluntários em um lugar tão movimentado — aprofundou-se, esclarecendo a ideia.
— E ninguém veio te expulsar?
— Eu não estou dentro do posto, apenas nas proximidades. Tudo certo por aqui! — disse. — Continuando…
— Claro, desculpa! Deixa eu ver… — pensando um bocado, Daniel chegou à conclusão de que poderia contar algo interessante. Prosseguiu: — Já sei! Tem uma história bizarra (e um pouco engraçada) envolvendo um amigo meu.
— Pode contar, eu sou todo ouvidos.
— Tá, tá, começa assim…
E Daniel perdeu-se a narrar uma história um tanto assustadora sobre um demônio, quatro garotos e armas de choque. Na verdade, a única parte engraçada era o final, pois descobria-se que o “demônio” era apenas o dono da propriedade pregando-lhes uma peça.
O homem anotou tudo. Cada detalhe. Ao final, pediu o nome de Daniel e registrou-o também.
— Pode me dar a sua mão? Não sou homem de quebrar acordos, sabe como é — o lance do marketing negativo não faz meus olhos brilharem tanto assim.
Daniel atendeu ao pedido do homem e estendeu-a. Ele a agarrou espalmada e começou a leitura.
Depois de profunda análise — talvez para esconder a farsa, talvez por inexperiência —, o homem anunciou:
— Você é um “filho da luz”, se me permite dizer. Muita gente te aprecia, e eu garanto que terá sorte sem igual na vida. Bom… uma pedrinha aqui e ali, mas quem não tem? Te garanto um futuro brilhante, menininho.
— Uou… E tudo isso com uma mão…
— A prática faz o profissional, não é? Haha!
Enos, outra vez, fora convidado a compartilhar suas experiências sobrenaturais, e outra vez se recusou. Satisfeitos, se despediram e entraram no carro.
Ele não pôde conter o espanto e comentou, mais ou menos cinco minutos depois:
— Fala sério. Quem é que escolheria um moletom pra esse horário do dia? O calor fritou os neurônios dele? Fora aquela tatuagem sem sentido…
— Você tá sendo muito duro com ele, papai. E a tatuagem era bem legal — defendeu Daniel. — Por que toda essa implicância? Não posso acreditar que um adulto está perdendo a linha dessa forma na frente de um filhinho tão fofo quanto eu.
Enos olhou em desaprovação para Daniel. O menino entendeu o recado na mesma hora e desfez o semblante debochado.
— Eu… eu só não quero que você se inspire nas pessoas erradas, não me entenda mal. Mas…
— O que foi?
— Você me surpreendeu lá fora, isso eu admito.
— Positivamente? — perguntou Daniel, curioso.
— Não se faz de sonso. Você só enrolou aquele esquisitão, não foi?
— Ficou tão na cara assim? Bom, eu só queria fazer o dia de alguém melhor…
— Francamente! Um demônio sanguinário atacando em Vinhedo? Eu não sabia que tava criando o novo Naldo.
— Eu tentei o meu melhor! Hihihi — alegrou-se o menino. — Aliás, quem é Naldo?
Enos preferiu se calar.
Três minutos se passaram. Enquanto tentava dar partida no carro, Enos recebeu uma pergunta inesperada:
— Papai, por que você estava tremendo agora há pouco?
Silêncio. O sangue dele gelou, quase que parando de correr. Ficou pálido feito um lençol.
— Hein?
— Esquece.
— Ah… certo.
Então, o ronco do motor soou e partiram dali.
…
O Palio preto de Enos descia a rua com velocidade.
Uma moradora a varrer a calçada cumprimentou-os. Eles responderam “oi!” a tempo de serem ouvidos.
Percorrendo a rua amontada rente a uma infinidade maravilhosa de pessoas, casas e prédios, Enos olhou para o lado e viu Daniel rabiscando um papel. Ele perguntou:
— De novo isso? Pensei que ela te daria um dia de folga no seu aniversário.
Daniel congelou a mão a centímetros da folha. Então, virando-se para o pai, respondeu:
— A mamãe é um pouco… perfeccionista. Eu sei que é um baita defeito, mas gosto de ver como ela se preocupa comigo. Fora que não é esforço nenhum escrever um diário sobre o nosso dia a dia juntos.
— Hum… — murmurou Enos. — Sabia que eu nunca tive um diário?
— Porque não quis ou por outro motivo?
— Não, não, é que meu pai achava que era coisa de menina. Nunca me deixou ter um.
— E você?
— Eu, o quê?
— Você — disse Daniel. — Como pai, o que acha do diário do seu querido filhinho aqui?
— Quê? — tornou a perguntar.
— Tá ficando surdo, papai?! Eu perguntei o que acha do MEU diário!
— Ah… ah, sim! Precisa ser muito macho pra colocar sua vida em um pedaço de papel que outras pessoas podem ler a qualquer momento. Muito admirável, se me permite dizer.
— Já vi que não puxou ao vovô. Hehe! — disse Daniel. — E que surdez, hein? Seus ouvidos tão na casa do chapéu.
— Eu tô b…
Tum!
Uma batida. A cabeça de Enos afundara no volante.
Daniel avistou a vinte metros de distância o fim do mundo: um tronco de árvore de espessura espantosa.
— PAPAAAAAAAAAI!!! ACOR…
Em seguida, outra batida.