As Paredes do Céu Negro - Capítulo 6
1
Pouco tempo depois, Enos limpava os vidros do carro enquanto o garoto observava de longe. O clima pesado ainda estava pairando na garagem, embora nenhum comentário fosse feito há alguns minutos. Com o silêncio ensurdecedor perturbando ambos, Daniel tomou a iniciativa de falar, tentando dissipar a névoa de puro constrangimento que os cercava:
— Ei, papai.
Enos foi pego de surpresa pelo chamado. Mesmo assim, concluiu que era melhor do que o silêncio.
Ele parou de esfregar por um momento e virou a cabeça para o lado. Então, respondeu:
— Falou comigo?
— É óbvio, não é? Ou tem mais alguém aqui? — brincou Daniel. — Um fantasma, talvez? Buuu…
Entretanto, com um olhar severo, Enos cortou a brincadeira do garoto. O carro estava realmente sujo e, por isso, ele o limpava. Limpar os vidros era apenas o começo. Como já estava próximo das dez, Enos não teria paciência com as palhaçadas de Daniel.
— Foi mal. Eu tava querendo saber se você vai demorar muito aí.
— Ah, era isso. Bom… eu diria que uns quinze minutos. Vamos sair para abastecer o carro o mais rápido possível, então esteja pronto quando eu te chamar. Se não tô esquecido, já são nove e trinta e cinco.
— Entendido. Ei, já que você vai demorar um pouquinho aí, posso jogar no celular até a gente sair? Eu juro que vai ser rapidinho.
— Já sei do que você tá falando. Você realmente gosta daquele jogo, hein? Como era o nome mesmo? Jogos… Jogos Vorazes?
Daniel empalideceu ao ouvir isso.
— J-Jogos Elementais. Esse que você mencionou não tem nada a ver com o meu jogo.
Enos pareceu ter uma grande revelação. Apesar do que disse, conhecia a franquia que havia mencionado.
— Ah, verdade, verdade! Agora me lembrei! Jogos Vorazes é outra coisa. Eu sei porque o Romeo costumava me convidar pra assistir os filmes com ele.
— E você assistia?
— Não, eu nunca aceitei os convites. Minhas preocupações na adolescência eram… outras — explicou, um sorrisinho de canto aberto no rosto. — Mas mudando de assunto, vá em frente. Só não demore muito nem me enrole quando eu te chamar. Estamos entendidos?
— Certo, capitão!
Antes de se aprofundar no jogo, Daniel falou:
— Papai, tive uma ótima ideia. Você se lembra daquele baralho que me deu há uns anos?
— Baralho…? Ah, aquele cartão. Aquilo era um baralho? Estranho, não me lembro de serem assim na minha época. Pensei que fosse uma carta.
— Era um baralho, mesmo. De cartas digitais. Eu te disse isso na época.
— Disse mesmo? Bom, isso explica o preço absurdo. Mas afinal, qual foi a sua “ótima ideia”?
Daniel riu de leve.
— Eu vou usá-lo na partida de agora — revelou, o olhar confiante.
— Oh… Mas por quê?
— Porque eu nunca o usei de verdade. E, bom, eu meio que quero te homenagear. De filho pra pai, que tal?
— Homenagear? É, não é uma má ideia. Eu sempre fui péssimo nesse jogo mesmo. — Então, antes de voltar a esfregar o vidro do carro, Enos disse: — Boa sorte pra você, filho. Arrebente com eles por mim.
— Haha! Pode deixar, não vai sobrar chinês sobre chinês no meu caminho!
A declaração do garoto o assustou um pouco. O que ele quis dizer com aquilo? Enos preferiu fingir que não ouviu nada, mas manteve o sorriso o tempo todo. Estava confiante e, na verdade, muito feliz com a consideração do filho, que queria tanto incluí-lo na sua vida a ponto de fazê-lo até mesmo no seu jogo favorito. O aniversário era de Daniel, mas ele era o presenteado no momento.
Daniel, então, bateu continência para ele e fisgou o celular do bolso do short, saindo da garagem. Não era tão grande, mas tinha a aparência de um dispositivo moderno. Quando o comprou, Bruna teve o cuidado de escolher o único que estava em promoção. Apesar da simplicidade do design, o poder de processamento dele era indiscutível, além de abrigar incríveis 256 gigas de armazenamento. As bordas arredondadas e a tela de 6.7 polegadas davam um charme a mais para o celular. Nas costas, uma capa de silicone fazia o papel de protegê-lo, com uma estampa do mesmo jogo que Daniel estava prestes a jogar carimbada nela, bem visível e com cores vivas. Era um exemplar magnífico do Samsung Galaxy M54.
A estampa trazia a figura de um lorde feudal encoberto em roupas vermelhas. Ao fundo da imagem, um vilarejo em chamas com uma grande fogueira no centro contavam mais sobre suas habilidades especiais, ou melhor, as “Potências de Elemento”, como eram chamadas entre os jogadores. Quando se olhava para o rosto do lorde feudal, notava-se seus olhos flamejantes e os dentes à mostra na feição cadavérica, destoantes do resto do corpo jovial e saudável do mestre supremo do fogo.
Daniel iniciou o jogo e buscou uma partida. Em menos de um minuto, ele já estava frente a frente com o seu adversário.
2
O cenário ao redor se transformara em segundos. Antes na oficina velha e abandonada do pai, Daniel estava, agora, no topo de uma torre azul formada por pequenos tijolos. Ameias achatadas circundavam o garoto, que agora olhava de cima um imenso campo de batalha dividido em quatro seções retangulares principais — três mais à frente, uma atrás. Os jogadores se referiam a elas, respectivamente, como Zona de Ataque e Zona de Suporte. Nelas, as jogadas eram desencadeadas a partir das cartas de cada Elementalista.
Os contornos das zonas também eram azuis, assim como as torres nas quais ficavam os desafiantes. Quando desviou a sua atenção do campo e olhou para baixo, viu uma espécie de mesa retangular e maciça, cuja cor era exatamente a mesma da torre, exceto pelo retângulo menor na superfície diagonal. Dentro daquela área, via-se a projeção em miniatura do campo logo abaixo: uma pradaria de relva verde e saudável com as mesmas zonas de antes, um cenário escolhido aleatoriamente pelo sistema do jogo.
O baralho que usaria já estava disposto ao lado, em uma zona à parte. Daniel nunca disse ao pai, mas aquele conjunto de cartas era simplesmente terrível. Teria sorte se ganhasse contra o chinês à sua frente.
“Por falar nisso…”
Não podia se esquecer de analisar o seu adversário, ou então apenas conhecê-lo. Então, Daniel olhou para a frente e deparou o olhar com aquele que o enfrentaria.
Foi o tipo de surpresa que ele jamais esperaria em um momento tão despretensioso.
“E-Eliseu?!”