As Paredes do Céu Negro - Capítulo 5
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09:42
Enos e Daniel estavam na garagem da casa. Depois do que aconteceu, foram para lá verificar o carro e colocar um curativo na ferida do garoto. Enquanto estendia a perna para Enos, sentado sobre uma bancada metálica repleta de ferramentas e poeira, Daniel exibia o machucado no joelho.
O cenário em si era menos arrepiante com a luz acesa. A lâmpada pendia do teto, sustentava-se por um soquete não muito velho. A luz lançada sobre o cômodo revelava muitos detalhes antes ocultos. Primeiro, as paredes amarelas descascadas em muitos pontos que, de certa forma, ornavam com o piso cinza liso, davam um toque rústico um tanto agradável.
Outro detalhe notável estava no centro da garagem: o carro de Enos, um Volkswagen Gol preto com poucas marcas de uso. Enos não precisava usá-lo quando ainda trabalhava, então acabou ficando reservado para passeios familiares. Apesar de tudo, era usado — fruto de uma negociação feita quatro anos atrás. Era uma memória vaga, mas ele lembrava-se de ter tido a ajuda de Romeo quando foi negociar os valores.
Também havia duas caixas de ferramentas na garagem. Uma era dele, disso tinha certeza. A segunda pertencera ao seu falecido avô. Enos verificou a caixa de ferramentas abandonada quando teve a chance, somente para descobrir que poucas ferramentas dentro dela seriam úteis. Toda a ferrugem e a fragilidade delas as definiram como recordações pelo resto da vida do neto daquele homem.
— Isso me incomoda… — disse Daniel.
— O quê? Ah, sim, a dor… — respondeu. — Já vai passar.
Enquanto Enos colava o curativo, Daniel treplicou:
— Não é a dor. É o seu olhar, papai. Eu sei o que você tá pensando.
— Não vá assumindo coisas que não sabe, Daniel.
— Não estou assumindo o que não sei. Eu percebo quando você olha pro machucado e, de repente, faz uma cara esquisita. Se isso for o que eu acho que é, pode ir parando por aí.
— Não sei do que está falando. — O olhar dele tornara-se mais sombrio, mais vazio. Ele estava se perdendo dentro dos próprios pensamentos.
— Não adianta fingir. Eu vou te dizer o óbvio nisso tudo: a culpa não foi sua. Eu caí porque me enrosquei no banco, e isso foi culpa minha. Não consigo te ver assim por algo que você não causou.
Silêncio.
— Sim, eu causei — respondeu, o semblante amargurado. — Você estaria ileso se eu não tivesse surtado durante o banho. Qualquer um poderia dizer que a culpa foi minha. Eu poderia dizer que meu maior medo é ter que lidar com a sua mãe depois disso, mas não… Meu maior medo é lidar comigo mesmo, com essa vergonha. Eu não queria te mostrar um lado tão feio de mim.
— Você tem a ideia errada sobre a relação entre pai e filho…
— O que quer dizer?
— Você só tem o pensamento de cuidar. Cuidar, cuidar, cuidar. Por que você nunca pode ser cuidado? Eu também tenho deveres como filho, precisamos nos ajudar mutuamente. Honestamente, isso é bem egoísta da sua parte.
Enos riu de leve.
— “Egoísta”. É engraçado ser chamado assim na minha situação atual. Eu conheço um adjetivo que se encaixa melhor em mim — disse com pesar. — Louco.
Daniel engoliu em seco. Sabia que o seu pai fora rotulado como louco a vida toda, então ouvir aquilo de sua boca o entristecia muito.
— Eu tenho certeza que você não tá louco, papai. E se estiver, que se dane. Tudo isso tem solução. Eu te disse: você precisa parar de cuidar e ser cuidado uma vez na vida. Esse caminho solitário que você tá trilhando não vai terminar bem.
Depois de finalizar o curativo, Enos se levantou do chão, limpou as roupas e caminhou na direção da porta da garagem. Conforme a placa de ferro maciço erguia-se e revelava o mundo lá fora, fachos de luz começavam a incidir na garagem empoeirada.
O corpo iluminado pela forte luz do sol, Enos disse a Daniel:
— Agradeço a preocupação, filho, mas essas palavras estão três anos atrasadas.
Daniel, novamente, sentiu a garganta secar com a tensão no ar. Mas não podia se dar ao luxo de desistir.
— Eu… Eu sei muito bem disso. Também sei que nada disso é culpa sua. Você ainda pode se curar. Tenho certeza que o doutor nunca te deixaria na mão se você estivesse disposto a colaborar outra vez.
— Não é o termo certo pra minha situação anormal. O problema aqui não pode ser resolvido com simples medicina.
Profundamente aflito, ele continuou:
— É uma maldição, Daniel. Eu vejo… e ouço… e sinto coisas que não dá pra explicar dizendo que são alucinações. Tudo é real demais. Eu não sei exatamente com o que estou lidando, mas tenho medo de perder o controle e deixar de ser como sou. — Mirou a própria mão aberta e a fechou. — Posso acabar sendo esmagado por essa maldição. Agora entende o que eu queria dizer? A culpa sempre é e será minha, porque estou deixando essa sombra crescer. Eu detesto saber que foi minha culpa você ter se machucado, mas é a verdade; e eu me arrependo muito disso. Eu ando sendo um péssimo pai.
— Você não é um péssimo pai. Ainda não entendo por que diz essas coisas terríveis sobre si mesmo.
— Eu só digo a verdade.
— Essa com certeza não é a verdade. O que acha de tentar enxergar as suas qualidades, papai? Só pra variar.
— Você virou um psicólogo de repente? Não precisa me aconselhar, eu não sou um adolescente revoltado. Uma criança como você não pode agir como se fosse meu pai ou minha mãe.
Então, Daniel teve uma ideia.
— Ei, é claro que eu posso agir dessa forma. Já esqueceu que hoje é o meu aniversário? — lembrou ele.
— É óbvio que não esqueci. O que tem a ver?
— Bom, as crianças birrentas fazem os pais de gato e sapato nos seus aniversários; até mandam e desmandam neles. Tenho certeza de que consigo fazer o mesmo.
— Vai bancar a criança birrenta pra me forçar a sorrir? E eu pensando que você era maduro pra sua idade… — Enos balançou a cabeça em desaprovação.
Ele deu as costas para o garoto, vendo-se um pouco decepcionado com a ideia infantil.