As Paredes do Céu Negro - Capítulo 4
1
Enos tomava banho há cinco minutos. Marcou no relógio antes de guardá-lo na mesma gaveta do quarto. Na verdade, aquele relógio era uma herança de família muito valiosa e ele não gostaria de perdê-lo, especialmente se precisasse explicar-se ao seu falecido avô no pós-vida: “bom, eu estava tomando banho e aconteceu. Que pena”. Parecia uma situação da qual ele não escaparia ileso, mesmo sendo um espírito. Por isso guardava-o com tanto zelo.
O banheiro tinha uma aparência agradável. Três anos atrás, em dois mil e vinte, Enos mudou-se para a casa onde agora morava. Ele sabia que não depararia com maravilhas arquitetônicas em uma casa herdada do século anterior, mas o estado condenável do chuveiro tirou-lhe alguns xingamentos na época. Enferrujado, sujo, torto; viu uma cena de filme de terror; o jeito foi colocar a mão na massa, consertá-lo por si mesmo.
Uma coisa levou à outra. Pintou as paredes, trocou os azulejos do chão, incluiu um forro sobre sua cabeça e muitas outras reformas necessárias. Quando deu por si, havia construído um novo cômodo sobre o velho banheiro do avô. Com os outros cômodos não foi diferente.
No banho, ele não evitava os pensamentos que chegavam à mente. Pensava:
“Precisei fazer muitas reformas, mas tudo deu certo no fim. Eu deveria me arriscar na profissão. Será que ele ficaria orgulhoso? Bom, não posso dizer que não gostei do presente. Uma casa… não é coisa que se dê assim, sem pensar. Mas o vovô se lembrou de mim perto da morte.”
Então, sentiu o coração pesar.
“Só me entristece que seu último desejo não tenha sido realizado… Eu juro que tentei, vovô.”
Enquanto olhava para os pés, percebeu uma protuberância molenga precipitando-se de sua barriga. Tocou o amontoado de gordura e fez-se lembrar que estava um pouco acima do peso. Não muito, mas já tivera dias melhores.
Enos sabia que não era o tipo de cara feio. Com cento e oitenta e dois centímetros de altura, ostentava um bom porte físico: braços fortes, pernas grossas, pescoço espesso. Os pés e as mãos também eram grandes. Estava mais para um brutamontes aposentado. Os cabelos pretos e encaracolados, marcados por um degradê não muito extravagante que contornava a cabeça, concediam-lhe uma aparência distante do repugnante.
Levou a mãos aos olhos, pensativo. Eles eram a parte mais distinta de seu corpo. Não eram castanhos, nem verdes, nem azuis. A escuridão completava tomava-os, eram pretos como o pico da noite. Ele sabia que olhos totalmente pretos não estavam entre os mais comuns de se ter.
Enquanto deixava a água escorrer pelos ombros, mergulhado em um mar de devaneios, ouviu um ruído estranho.
Tssssk!
“O quê?”
Virou-se para todos os lados e não viu nada anormal.
Tsssssssk! Tsssssssssssssssk!
Eletricidade. Parecia-se com o som de uma descarga elétrica. Com isso em mente, olhou diretamente para o chuveiro.
“É ele que está emitindo o barulho? Mas eu faço a manutenção de três em três meses…”
TSSSSSSSSSSSSSSK!!!
Não era o chuveiro. Com certeza. Enos sentiu os ouvidos doerem com o último som. Não tinha uma única fonte: pelo que pudera perceber, vinha de todas as direções.
“J-Já sei o que é! Mas a-agora? Depois de tanto tempo? Argh!”
TSSSSSSSSSSSSSK!!! TSSSSSSSSSSSSSSSSSK!!!
Ele caiu de joelhos no chão, a dor era grande demais para suportar. Sentia-se atacado por um enxame de abelhas cujo único objetivo era torturá-lo até a morte. Com as mãos sobre os ouvidos e os olhos fechados, inclinou a cabeça para a frente.
“A-Agora não! Não hoje! Sai da minha cabeça, maldito!! Droga, droga, droga!”
Mas o som não cessava. Ao contrário, só estava piorando.
TSSSSSSSK! TSSSSK!
TSSSK! TSSSSSSK!
“Chega, chega, chega…!!”
E ainda não dava indícios de parar. Enos estava no limite da sanidade, as lágrimas pulando dos olhos.
Ele não entendia. Não conseguia mesmo entender. Depois de tanto tempo, por que justo agora? Houve tantos momentos mais propícios, mas o tormento chegara no dia do aniversário de Daniel.
Aquilo o sufocava na mesma medida que o enfurecia. No limite da dor e da perturbação, Enos liberou os pensamentos em um grito:
— CHEGA!!! — foi o que vociferou para si mesmo ou o que quer que estivesse na sua cabeça. E a paz realmente veio, acalmando o cenário caótico de antes.
O silêncio tomou conta do lugar. Mais calmo, Enos abriu os olhos e olhou ao redor.
“Estou seguro?”
Passeou os olhos pelas paredes. Depois, pelo chão. O teto foi o terceiro. O tormento havia acabado, confirmou.
“Eu só não sei como vou explicar toda a comoção pro Daniel… Bom, preciso me levantar antes de mais nada.”
Drip!
Uma gota caiu nas costas dele enquanto se recompunha.
“Já consigo ouvir a água caindo do chuveiro. Eu consegui…”
Drip! Drip! Drip!
As gotas caíam aos montes, molhando todo o corpo de Enos. Levantou-se e, com os olhos arqueados em alívio, jogou a água no rosto para lavar as lágrimas.
A temperatura estava acima do que queria. Não se lembrava de a ter alterado, mas, diante do que enfrentara, regular a temperatura do chuveiro não seria problema.
“Essa água tá realmente quente. Eu devo ter acertado o chuveiro no meio do caos. Vejamos, vejamos…”
Enos abriu os olhos e voltou a ver as cores do mundo. Estranhamente, a cor predominante era o vermelho. Um mundo vermelho onde ele estava destinado a sofrer sem hora ou razão.
Esse mesmo mundo vermelho o engolia, coagulando tumores inoperáveis aos quais ele chamava “punições” e fazendo chover gotas de sangue sobre ele.
“O-O chuveiro… As gotas… Sangue? Sangue…?”
Não dava para processar. As gotas de água límpida que limpavam o seu corpo estavam, agora, vermelhas e quentes como o sangue fresco. Elas caíam aos montes, mas não limpavam; feriam com a descoberta de um novo trauma. Estar sob uma chuva de sangue não era nem um pouco agradável a Enos, que tremia de medo, as pupilas dilatadas e o semblante incrédulo. Poderia pensar tratar-se de uma alucinação, mas não: o sangue banhando todo o seu corpo não era mera ilusão. Tinha volume, temperatura, cor. Sentia-o com todos os cinco sentidos, como normalmente é no mundo sensível dos homens. Até suava frio; a chuva carmesim é que não o deixava aparente.
“Merda, merda, merda…”, pensava ele, as palmas abertas. Pequenas poças de sangue formaram-se nelas.
O desespero chegou antes da razão. Disse a si mesmo que poderia aguentar por mais um tempo; e, se não fosse pelo que aparecera aos seus pés, poderia mesmo.
— SO…SO…SOCORROOO!!! — gritou em desespero.
O braço decepado não parou de se contorcer por isso. Então, a aberração de carne, ossos e sangue pulou na garganta de Enos, querendo esganá-lo. O fim da linha para o amaldiçoado.