As Paredes do Céu Negro - Capítulo 3
1
— P-Papai?
— Sim?
— Dá pra me soltar agora? Você tá cheirando a desinfetante…
Enos pulou de susto e soltou-o do abraço. Cheirou a camisa azul que estava vestindo e comprovou o cheiro incômodo.
— E-Essa porcaria ficou impregnada em mim…
— E em mim também, agora. — Daniel tapou o nariz quando sentiu o cheiro nauseante de desinfetante. Tanto ele quanto Enos estavam impregnados com ele. — Eca! Você é muito descuidado, papai.
De repente, Enos tomou consciência de algo assustador.
— Você não está com as roupas novas, né? Por favor me diga que essas não são as roupas que sua mãe te comprou — disse, tremendo com medo. — A-Agora sim, ela me mata… Adeus, mundo cruel.
— Hein? Não, eu ainda não tomei banho.
Enos suspirou de alívio e relaxou os ombros, sentindo-se muito melhor.
— Engraçado, essa é a primeira vez que você fica feliz depois de eu dizer que não tomei banho. O dia de hoje tá indo de estranho a estranhíssimo.
— Não se apegue aos detalhes! Espera, que horas são agora? — Enos olhou para o pulso, mas não encontrou nada. — Não está aqui…
— Aquilo não deveria dizer? — Daniel apontou o relógio afixado na parede. Tinha um formato circular e era exageradamente colorido, com orelhas de gato e os ponteiros como os seus bigodes. — Espera, agora que eu reparei…
— Pois é, aquele é o relógio que você quebrou no seu aniversário de três anos. E não funciona. Eu até tentei consertar, mas não deu certo. Grande perda.
— Você me disse que o tio Romeo ficou muito triste quando soube disso — disse Daniel em voz baixa, quase arrependido. — Mas espera, se não funciona, por que está com ele até hoje? Você já podia ter comprado outro há séculos.
— Acontece que eu gosto de gatos, e guardar recordações também não é ruim. Voltando ao assunto, preciso pegar o meu relógio no quarto. Eu me lembro de ter guardado ele pra não sujar na faxina — explicou ele. — Fica aí.
— E pra onde eu iria?
2
Enos colocou o relógio no pulso e travou-o na base. Ele já sabia que horas eram: nove e vinte da manhã.
— Ainda tô surpreso.
— E você achou mesmo que eu iria abandonar o meu único e melhor relógio naquele dia?
— Depois de eu jogá-lo no rio? Talvez. Nem sei por que fiz aquilo.
— Mas eu sei, e sei muito bem. Você tava irritado comigo porque eu te venci cinco vezes no Cara a Cara e decidiu se vingar quando a gente passou perto do rio — explicou. — Bom, como eu não venceria? Você era muito ruim! Hahahaha!!
— Tá se gabando por ganhar de uma criança de cinco anos num jogo infantil? Nesse caso eu não sei quem era a criança na ocasião, papai.
Enos parou de rir na mesma hora.
— Calado! Não foi você quem precisou bancar o Michael Felps pra recuperar um relógio na água nojenta do rio. Tem noção de quantos banhos eu tomei naquela semana?!
Daniel suspirou pesadamente e balançou a mão direita como uma bandeira. Estava desistindo da discussão.
— Tudo bem, tudo bem, vamos parar por aqui, você venceu. Desse jeito até parece que tenho algo contra relógios.
— Que bom que entende o meu drama agora.
Depois de alguns segundos de silêncio, Daniel se manifestou:
— Ei, e os nossos planos pra hoje? Você conseguiu providenciar tudo?
— Tudinho! Eu cheguei a fazer uma lista pra não esquecer.
— Eu quero ver.
Encostado no mesmo canto de antes, Enos tirou um pedaço de papel do bolso e entregou-o nas mãos de Daniel.
— Muito bem, vou ler em voz alta. — Desdobrou o papel e viu a letra garranchuda sob a fina camada de tinta azul. — Como sempre, hein? Que bom que eu tô acostumado.
— Só leia de uma vez.
— Tudo bem. Aqui diz: “item um: tomar banho e trocar de roupas; item dois: avisar ela que estamos saindo; item três: abastecer o carro; item quatro: ir ao shopping e comprar o presente; item cinco: comer na pizzaria (chegar antes das três e meia); e item seis: deixar o Daniel em casa às cinco” — e, depois de terminar de ler, olhou para o pai. — Quanta coisa. Vai dar tempo até as cinco?
— Se o carro colaborar, sim. Já decidiu qual vai ser o presente?
— Com certeza. Tenho que falar agora?
— Não, agora não. Eu imagino o que vai ser, mas guarde para quando chegarmos lá.
— Ok — concordou. — Sabe, papai, você é muito mais organizado do que eu pensava.
— Está me subestimando? Eu aprendi com a melhor!
Silêncio. Assim que disse isso, Enos foi tomado por um semblante angustiado e abaixou a cabeça. Ele o dissera no impulso, sem pensar; porém, as imagens de anos atrás não saíam de sua cabeça. A lembrança foi de melhor amiga a inimiga jurada em segundos.
Mas ele não podia deixar-se ir pela tristeza. Não no dia do aniversário do seu filho. Levantando a cabeça lentamente, disse:
— Ei, desculpa por is…
Tak!
Uma toalha azul-escura atingira o rosto de Enos em cheio.
— O quê? — Com a toalha em mãos, viu quem a tinha lançado. — Daniel?
— Você tá demorando demais. Temos que sair daqui às dez, não é? Então vai se limpar!
Daniel estava parado na sua frente, os olhos implacáveis e sólidos. Enos planejara o dia perfeito e não estava agindo de acordo, sabia disso. Cara a cara com a pequena pessoa que o interrogava, soube que decepcioná-la não era uma opção.
Repousou a toalha no ombro direito e, sorrindo, respondeu:
— Como quiser, chefe. — E dirigiu-se ao banheiro.