As Paredes do Céu Negro - Capítulo 2
1
Enos estapeou o próprio rosto assim que a ligação terminou.
— Mas o que foi aquilo? — Com a mão no rosto, olhou para o chão. — “Alto e claro, Rambo”? Eu tenho doze anos ou algo assim?
Uma resposta veio. De algum lugar nas costas de Enos, uma voz infantil disse:
— Parece mesmo, papai. Que papelão.
— O-O quê?!
Ele virou-se à toda velocidade para ver quem estava nas suas costas. Sentado em um banco fofo, os cotovelos debruçados sobre o balcão de porcelana branca e os lábios sujos de manteiga quente, ali estava o filho de Enos. O assunto da ligação de poucos instantes atrás. E, principalmente, o aniversariante do dia.
Era pequeno e magro, por volta dos cento e cinquenta centímetros de altura. Os fios loiros ajuntavam-se em um cabelo brilhante e saudável. Estava curto como sempre, mas apresentava uma franjinha a despeito do corte escolhido. Um pouco abaixo da festa de fios havia um par de olhos castanho-claros, grandes e vívidos, e o sorriso despreocupado parecia fazer parte do visual. A camiseta branca que vestia não tinha nenhuma estampa.
Daniel abocanhou outra vez o pão que preparara com todo o cuidado. Tomou um gole do leite com chocolate que repousava a alguns centímetros do prato. Nenhum farelo caíra no balcão limpo, cuidadoso que era o garoto. O pote de achocolatado também já havia sido guardado, assim como a caixa de leite integral Jussara que bebia a goles demorados. A mesa estava posta, mas Enos não sabia há quanto tempo. Decidiu perguntar:
— D-Desde quando você tá aí?! Eu achei que estivesse dormindo.
— Eu acho que desde antes da ligação do tio Romeo. Não sei se já te disseram isso, mas você realmente gosta de fazer a faxina, papai.
— O que quer dizer com isso?
— Eu não quero dizer nada. Não, não, longe de mim…
— Daniel… — ameaçou ele.
— T-Tudo bem. — Ele entendeu o olhar do pai. — Mas promete que não vai ficar bravo?
Enos manteve-se quieto. Daniel encarou como um “sim”.
— Você fica com uma cara de bobão quando tá limpando. Tipo, eu realmente não sei por quê, mas você vai parar no mundo da lua. Eu estou aqui há um bom tempo e te vi conversando com o rodinho pelo menos três vezes. Eu ainda não tô contando aquela hora em que você fingiu que era um samurai e começou a brincar de espada com ele. Aliás, quem era o seu oponente? Porque eu acho que te vi perdendo.
Enos ficou sem palavras. Seu filho viu um lado que ele não costumava mostrar.
— Esqueça tudo o que viu — ordenou ele. — E eu não perdi aquela luta.
Daniel fingiu fechar um zíper sobre a boca, selando aquele segredo vergonhoso para sempre. Depois ergueu as mãos como se não tivesse nada a ver com a situação.
— Mas então, você ouviu minha conversa com o Romeo?
— Sim! Adorei aquela parte sobre o anjo!
—Não é nada de mais, não dê atenção a isso. Mas me surpreende você estar tão tranquilo agora.
— E por que eu não estaria? E-Eu deveria me preocupar com algo?
— Não. Só pensei que ficaria chateado pelo Romeo ter esquecido o seu aniversário.
— Ah, isso? — lembrou-se Daniel. — Bom, eu não diria que tô tranquilo, só não quero colocar tudo a perder. Você passou a semana inteira dizendo que teríamos um dia incrível hoje, não vejo sentido em ficar chorando o leite derramado — disse. — Metaforicamente, porque eu não derramei uma única gota no seu balcão novo.
Enos sorriu de orgulho. O filho era engraçado na mesma medida que era maduro, uma qualidade rara em crianças de oito anos de idade.
— Mas confesso que vou sentir falta de jogar com o filho do tio Romeo. Aquele moleque é tão ruim que nunca conseguiu me vencer em uma única partida, fazia até eu me sentir melhor comigo mesmo depois de uma derrota esmagadora para aqueles chineses viciados.
E o orgulho se desfez em decepção.
— M-Moleque! Ele não é o seu melhor amigo?!
— Mais ou menos. Tenho outros amigos melhores que o Eliseu.
— Os panacas da internet não contam. Você precisa de amizades como a dele: reais e próximas, não virtuais e distantes. As redes sociais são malignas!!
— Você ficou preso na sua adolescência, papai? Que implicação sem sentido!
— Foi o que eu ouvi nos jornais, e eu acredito neles. — Enos cruzou os braços e bufou, exalando confiança.
Daniel suspirou pesadamente.
— Enfim, errou de novo. Eu não tava falando deles — explicou Daniel. Então, um sorrisinho meigo surgiu nos seus lábios. — Eu tava falando de amigos como você, papai. O melhor que eu tenho.
— H-Hein?
Enos sentiu as palavras de Daniel como se fossem balas de revólver atiradas contra o peito, sentiu o baque de ouvi-las enquanto olhava para aquele pequeno ser humano em desenvolvimento. Ele estava conversando com o próprio filho, uma criança que tinha seu sangue, seus traços e todo o seu carinho. O aniversário que comemorariam ao longo do dia não era mais importante do que todos os momentos juntos no ano passado.
Passaram juntos por cima de dores, dificuldades, crises. O instinto paterno fazia parte dele desde que Daniel nascera, mas agora ele tinha certeza de que estava vivendo aquela vida.
Ele nunca teria imaginado isso quando era mais novo, mas passaria as próximas horas ao lado da pessoa que mais o apreciava no mundo.
Uma lágrima tímida escorreu do olho direito de Enos.
— Papai, você tá chorando?
Ele limpou a lágrima do rosto com agilidade. Então, respondeu, a voz trêmula:
— Não… Não é hora de chorar agora.
— É…
Ele caminhou até o garoto e reuniu os sentimentos nas palavras entaladas no fundo da garganta.
— Papai?
De súbito, ele puxou-o do banco, levantou-o no ar e o abraçou com força.
Daniel retribuiu o abraço, por mais que não entendesse a mudança repentina.
— Feliz aniversário, filho — disse baixinho.
— V-Valeu…