As Paredes do Céu Negro - Capítulo 1
1
Nove da manhã. Tempo ameno, o sol brilhando fracamente na ponta leste da abóbada celeste. O terceiro dia de janeiro começava bem como nenhum outro.
Pelo menos, a aparência estava boa.
Enos tinha grandes expectativas para aquele dia. A rotina matinal começara uma hora mais cedo, às cinco da manhã, e se estendia até agora. O cheiro de desinfetante entupia as narinas dele com grandes quantidades de compostos de fenólicos e hipoclorito de sódio. Ter a casa limpa era importante para tornar um dia especial ainda mais especial.
Escorou-se na pia para descansar as costas, o rodinho tombado ao seu lado, segurado entre os dedos. Gemeu de alívio por um ou dois segundos e admirou tudo o que tinha feito em quatro horas de trabalho árduo e contínuo. A cozinha, os quartos, a sala e até mesmo o banheiro estavam como novos. Ele nunca parou para pensar a fundo no assunto, mas que tinha os dotes de um bom faxineiro, tinha.
— Aaaah… Enfim, limpo. Parece que se passou uma eternidade desde que eu comecei — comentou. — Valeu a pena, nunca vi esta casa tão limpa assim. Bem que poderia ter outros dias como este.
Enos focou seus ouvidos na distância.
— Nada. Bom. Se ele ainda não acordou, vou aproveitar pra guardar as coisas e tomar um banho rápido. Eu acho que mereço, né? — perguntou ao rodinho que segurava. Obviamente, não teve resposta. — Bem dito. Muito bem, eu j…
Zummm! Zummm!
— Hein? O telefone?
Zummm! Zummm!
— Só um segundo!
Largou o rodinho encostado na outra extremidade da pia e usou a mão livre para alcançar o telefone.
Beep!
— Enos, é você? — perguntou a voz do outro lado. Era firme, grave e constante.
— O que é isso? Já perdeu os modos? Bom dia pra você também, Sr. Policial.
— Hahaha! — riu a voz. — Eu tô indo muito depressa, tem razão. Quer que eu te chame pra jantar antes, senhorita?
— Corta essa, cara.
Um segundo de silêncio. Então, as risadas irromperam.
— Desculpa a grosseria, Enos. Tudo embaixo ou em cima por aí?
— Com certeza em cima!
— Opa, opa! Novidades quentinhas pra mim? Pode ir falando!
Enos sorriu sozinho. Romeo seria a primeira pessoa a saber a razão de seu bom ânimo naquele dia específico. A razão de estar muito mais animado que o normal. Encontrou a posição perfeita para se encostar na pia e revelou:
— Hoje é o aniversário do Daniel, lembra? Três de janeiro!
— Oh.
— Romeo? Tudo bem?
O silêncio que se seguiu foi constrangedor. Romeo só voltou a falar um pouco depois:
— Fala sério? É hoje o aniversário do menino?
— Sim, é hoje. Tem certeza que está bem?
— Puxa… — Enos o ouviu bufar desanimado. — Foi mal, Enos, sério mesmo. Me desculpa por ter esquecido e… e por não estar presente. Que droga, cara.
Enos sabia que ele não falava da boca para fora, conhecia o policial há tempo o bastante para dizer que sentia arrependimento genuíno. Ele não nutriria nenhum rancor de Romeo por algo tão banal como esquecer uma data. Podia ser a data de aniversário do seu filho, mas ele não era a única criança no mundo.
— Tá perdoado. Eu imagino que você deve estar tendo muito trabalho na delegacia, não é?
— E como! Faz um bom tempo que não sei o que é dormir mais de quatro horas em uma única noite.
— Eles não pegam leve mesmo… Aconteceu alguma coisa na cidade?
— Em Vinhedo, nada. Não que eu saiba; essas coisas não chegam em mim. Pra você ter ideia, eu nem estou aí no momento.
— Hein? E onde você tá?
— Fui movido pra Campinas por enquanto. Tirando os detalhes sigilosos que não posso te contar, tem muita coisa errada acontecendo aqui. Aposto que você já leu algum quadrinho de super-heróis, então vai se interessar. Acontece que tem uma pessoa, não sabemos se é homem ou mulher, causando uma grande divisão na opinião pública da cidade. Ela continua a aparecer em lugares aleatórios evitando crimes e rendendo os bandidos com algum tipo de “arte mística”, apesar de eu não acreditar muito nessa parte da história. Se apresenta como “Anjo-Cortadeiro”. Muitos moradores tomam essa figura como um verdadeiro “herói destinado do povo”, mas tem uma parcela deles que está querendo a cabeça desse mesmo “herói” pra entregar às autoridades competentes. Eu não tinha entendido a princípio, mas depois fez muito sentido.
— Então me explique! Por que eles querem a cabeça desse sujeito se ele só está ajudando a cidade?
— O Incidente de 2011.
Enos congelou. Sim, o Incidente de 2011. Nenhuma outra palavra era necessária a esse ponto.
— Não pode ser, aquilo já deveria estar fora do radar de todos. Já faz tanto tempo.
— Bom, os países da OTAN concordam com você. Isso tudo ainda é mera suposição dos moradores.
— Mesmo assim, essa… pessoa… Se for mesmo o que pensam, por que ela está se comportando de modo tão diferente? Aquilo mudou sua natureza?
— Ninguém tem a menor ideia de nada nesta situação, mas dinheiro é dinheiro — disse Romeo. — Ah, que canseira! Lidar com vigilantes mascarados é um saco! Droga, não estamos em um maldito quadrinho.
Enos riu de leve.
— A situação tá mesmo tão ruim?
— Ainda vai piorar. Os moradores mais radicais contra o vigilante mascarado, e eu no meio disso tudo. Cara, minha carreira realmente despencou.
— O importante é, você está em perigo como está aí. Ainda mais se a teoria dos moradores estiver certa.
— Não dá pra dizer que não estou, mas tenho mais medo daqueles populares enlouquecidos do que do tal Anjo-Cortadeiro. Bom, eu escolhi esse caminho e preciso arcar com as minhas responsabilidades. Só consigo mesmo pensar em como eles estão se sentindo com isso.
— É o que eu ia te perguntar. Eles com certeza não estão tranquilos como você, não? A dona deve estar tendo um ataque a esta hora, e ainda tem o Davizinho…
— Eu fiz o meu melhor pra tranquilizá-los — explicou, e mudou de assunto em seguida: — Eu sinto falta de quando as coisas eram mais simples pra nós.
— Elas nunca foram, Romeo. Somos brasileiros.
— Brasileiros e pobres, pra piorar! Hahahaha!
Eles riram juntos outra vez.
— Ei, eu vou levar o Davi aí assim que puder, então avisa o pequeno, beleza? — disse, e completou, a voz lamentosa: — E me desculpa, de coração; eu não tinha a intenção de te desapontar logo hoje.
— Não esquenta com isso. E não é a mim que você deve desculpas, se é assim que pensa.
— Vou manter isso em mente.
Então, do outro lado da linha, alguém chamou Romeo com voz grave. O som bateu nos tímpanos de Enos, transpassando-os até o cérebro como uma lança furiosa.
— Preciso ir, é o delegado me chamando. Pelo visto vou ter que sair de novo… — disse Romeo baixando o tom. — Eu prometo que ligo assim que estiver menos ocupado. E avisa o pequeno que ele vai ganhar um montão de cartas, entendeu?
— Alto e claro, Rambo.
— Ha! Até mais, Enos. Se cuida.
— O dobro pra você. Pensa neles quando estiver nas ruas.
— Vou pensar. — O delegado tornou a chamá-lo, visivelmente mais irritado. — E lá vamos nós…
Beep.
Romeo encerrou a chamada.