33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 196
Livres
Onde um dia existiu um grande abismo que dividia o continente inteiro ao meio, agora era apenas uma planície vasta empoeirada. A fronteira entre os reinos do Leste e de Prata já não era mais tão perceptível.
A antiga Grande Falha, que por séculos foi uma barreira física entre os dois reinos, reduzindo as relações comerciais e protegendo-os mutuamente contra invasões um do outro, agora deixara de existir, deixando toda aquela região propícia a receber um ataque de ambos os lados.
E a única cidade ali era Parva, a cidade das pessoas livres. Um lugar que nos últimos anos vinha recebendo e abrigando pessoas que buscavam liberdade e uma chance de sobreviver.
Cerca de dez anos antes a cidade havia sofrido um ataque do Reino de Prata, o que resultou na morte de muitos de seus habitantes, inclusive dos líderes políticos. A invasão foi contornada quando Deco e suas pessoas apareceram e subjugaram os soldados inimigos, em seguida deixando o lugar a cargo de Adênia, a líder das Pessoas Livres do Leste.
Nos anos em que Deco esteve desaparecido, Adênia conduziu as Pessoas Livres à glória e cuidou da cidade de Parva como seu lar. O nome da comandante civil se tornou famoso e equiparável aos grandes líderes daquele mundo.
Com a bagunça deixada pelos heróis ao final da guerra, economias instáveis e regiões inteiras em crise, as caravanas que partiam e chegavam todos os dias em Parva, eram a esperança do continente inteiro de se manter de pé.
Agora, mais do que temida, Adênia era respeitada como uma das pessoas mais poderosas do mundo. Não em magia, mas em poder econômico e militar. Sem contar seus contatos ao redor do mundo que formavam a maior rede de espionagem.
Informações que levavam semanas para atravessarem o continente, chegavam em poucas horas até ela. Mesmo assim, Adênia achava que aquilo tudo não era dela, a pobre garota órfã que foi abandonada pelos pais em meio às flores que crescem sobre as pedras do deserto não merecia ser famosa.
Com esses pensamentos, Adênia sentou-se na borda do muro da cidade, encarando o horizonte escuro do meio-dia. Normalmente ela gostava de observar o pôr-do-sol dali, mas com a escuridão que cobria tudo, não havia sol para se pôr.
Ela lembrava que existia uma lenda sobre o sol sumir por três dias e nascer no oeste, mas nunca acreditara. Haviam várias versões sobre o que ocasionaria isso, mas em todas o sol terminava surgindo ao oeste.
As pessoas da cidade de Parva se apegavam ao desejo de que a lenda fosse verdade, como a tal profecia que previu a chegada dos heróis anos antes. Se bem a profecia dizia e o que aconteceu de verdade foi bem diferente.
— Adênia! — Um grito agudo veio da base da muralha — Irmã Adênia!
A líder das Pessoas Livres olhou para baixo e viu uma garota com olhar animado e sorriso largo. Ela pulava e acenava para Adênia, depois para a direção da praça da cidade.
— Ele voltou! — gritava a garota — O Deco voltou, ele está na praça…
Mas não precisou que Adênia descesse, ela piscou e uma pessoa estava parada ao seu lado, em cima da muralha. Olhando direito ela percebeu que era Deco, ele tinha uma expressão que misturava cansaço e satisfação.
— Como você…? — Adênia questionou o quão rápido ele chegou ali.
— Teletransporte. — Deco respondeu antes mesmo dela completar a pergunta — O poder que era da Victoria. Ela me deu em troca de sair da guerra. Agora seu único compromisso é com o Reino de Cristal, e o mesmo vale para você, Adênia.
A garota olhou para Deco sem entender o que ele dizia.
— Preciso que você proteja essas pessoas, essa cidade, o nosso sonho de liberdade… Não quero que venham comigo enfrentar deuses.
— Mas nós queremos lutar ao seu lado! — retrucou Adênia.
— Só irão morrer. — Deco sentou-se sobre a pedra fria da muralha — Só existe uma forma de terminar isso, é acabando com quem começou. Eu tenho um plano para isso, mas ainda preciso de mais umas peças no quebra-cabeças antes de agir. Vocês já fizeram muito por mim, perdi amigos demais, não quero que mais nenhuma morte em vão aconteça por minha culpa.
Adênia ficou em silêncio, uma lágrima escorria por sua face, e quando ela olhou para Deco, viu que ele também chorava em silêncio.
— Lembro o nome de cada um que perdemos ao longo desses anos. — Ele sussurrou — Carregarei todos eles em minhas memórias quando chegar a minha hora…
— Não fale assim! — Adênia reclamou, enquanto enxugava as lágrimas do rosto.
— Então vamos celebrar a memória deles! — Deco se pôs de pé e estendeu a mão para Adênia, que a segurou.
O mundo pareceu tremer, e Adênia se viu no meio da praça de Parva, onde os habitantes bebiam e cantavam alegres, como se comemorassem algo, mesmo que não houvessem motivos.
Adênia observou a algazarra por alguns segundos sem entender, eles pareciam não lembrar que havia uma guerra contra deuses e qualquer momento poderia ser o último.
Ou será que era por isso que bebiam?
— Viva cada dia como se fosse o último! — disse Deco passando uma caneca de bebida para Adênia — Cada despedida marca o início de uma nova jornada, e cada noite antecede um dia.
— Estamos na mesma noite faz três dias! — reclamou Adênia após esvaziar sua caneca em um único gole — Quando é que o sol vai brilhar sobre nós novamente?
— Se você soubesse o que vem após a noite, não pediria para que ela acabasse… — Deco disse, como se deixasse seus pensamentos fugirem por sua boca.
Mas no momento seguinte ele abriu um sorriso largo, como costumava fazer nos tempos de Ratos, e as coisas eram bem mais difíceis. Adênia lembrou da primeira vez que viu Deco, magro e mal-vestido, sem memórias, sem esperanças…
Ela lembrou que cada dia na Toca dos Ratos poderia ser o último, e mesmo assim Nilo e Deco jamais deixaram de sorrir e acreditar. Jamais deixaram de se arriscar pelo bem dos demais, e a ela cabia o dever de cuidar dos mais frágeis.
Ela entendeu o que Deco queria. Ele desejava que fossem felizes, e que alguém tivesse que sofrer, que fosse ele. Ele sempre foi assim, sempre desejou que todos pudessem ser felizes, enquanto carregava toda a tristeza sozinho.
Adênia virou mais um copo de bebida, e quando deu por si, estava deitada no chão frio, coberta de vômito e arrodeada por pessoas na mesma situação. Pelo visto ela se deixou levar pela festa e bebeu demais.
O sol quente brilhava sobre sua cabeça, que doía muito devido à ressaca.
— Sol?! — Adênia olhou para cima, protegendo os olhos com a mão.
— Ele é incrível, não é? — A voz de Nilo veio de algum lugar perto dela.
— Sim, o sol é incrível… — A voz embargada de Adênia saiu com dificuldade.
— Não o sol. — Nilo riu — O Deco. Ele foi embora pouco tempo depois que você pareceu parar de pensar demais, e aposto que foi ele que acabou com a escuridão.
— Ele foi embora? — Adênia se virou assustada em direção a Nilo.
— Sim. Ele foi… — Nilo segurou a frase, sua voz falhou — Essa foi a festa de despedida dele…