33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 180
Segunda Noite de Escuridão
André havia perdido o controle outra vez, Josiley havia levado ele para sabe deus onde, Victoria usou seus poderes para tentar achar os dois, e Felipe estava tentando entender por que diabos as coisas davam errado tão rápido.
Sentado próximo a uma das fogueiras que iluminavam o acampamento, ele ouvia atentamente as versões de cada um ali. Apesar de cada pessoa parecer ver a gravidade maior na escuridão que cobria o continente inteiro por dois dias, Felipe estava mais preocupado com os heróis que perderam poderes.
— Se você morrer, eu perco meus poderes? — ele perguntou a Ferdinand — Simples assim?
Ferdinand estava mantendo Alice ao seu lado o tempo todo, ele era o motivo para ela ainda estar viva. Até mesmo Felipe havia votado pela execução da garota.
— Sim. Simples… — Ferdinand respondeu.
— Que merda…
— Antes isso não importava, — Ferdinand continuou, — éramos imortais. Por isso não me preocupei em te contar.
Brogo passou entre eles, distribuindo um tipo de mingau esverdeado. Felipe recusou, mas Ferdinand pegou duas cuias cheias da gororoba, uma foi passada a Alice, que se mantinha encolhida ao lado do pai.
— Mas ainda não entendi uma coisa, como perderam a imortalidade exatamente? — Felipe perguntou, passando a mão no queixo — Não me parece algo simples…
— E na verdade é. — Ferdinand suspirou — A imortalidade foi, meio que, roubada do guardião desse mundo, então quando ele se libertou, o poder voltou a ele naturalmente.
— Simples assim? — Felipe arqueou uma sobrancelha.
— Simples assim! — Ferdinand concordou.
— Que merda…
— Por que tudo que a gente te explicou nas últimas TRÊS horas, você responde com “simples assim” seguido por “que merda”? — Adênia perguntou, visivelmente irritada.
Brogo passou mais uma vez entre eles, agora distribuindo uma sopa apimentada. Felipe aceitou uma porção, com um sorriso feliz. Havia pedaços de carne em uma cor esverdeada, mas ele preferiu não perguntar o que era aquilo; para o homem cujo poder era a sabedoria, às vezes a ignorância era uma bênção.
— Apenas gosto de me manter informado, e não gosto de parecer apático perante as informações que me são dadas. — Felipe respondeu, antes de encher a boca com a sopa estranha.
— Se continuar repetindo isso, eu vou perder a paciência e quebrar a sua cara. — Adênia afirmou, entregando a cuia para Brogo e sinalizando que queria mais.
— Vai me quebrar? Simples ass… — Felipe viu o risco que estava correndo — Acho justo. Estamos ocupando o seu espaço, comendo a sua comida e enchendo o saco.
— Estão mesmo! — Brogo concordou.
— Então fazemos assim, — Felipe se levantou e espreguiçou, — eu me liberto do peso morto e depois caio fora, aí a única preocupação de vocês será a linda família do André.
— O que está querendo dizer? — Sônia entrou na conversa.
Ferdinand parecia querer dizer algo, mas se manteve em silêncio, apenas encarava Felipe como se não gostasse do que via.
— Não faça merda, Felipe. — Maria Julia se levantou do lado de Sônia e foi em direção ao rapaz — Acha que não entendi o que planeja? Eu vi o que você fez quando mandou o Valmir dar uma volta com Shiduu!
— Então deveria estar grata por eu ter pensado em tudo! — Felipe sacou uma arma, a mesma que pertencia a Valmir, e apontou para Ferdinand — Eu atiro nele e depois na Alice, nos livramos de dois problemas com duas balas, e vocês serão felizes para sempre.
— Felipe, não… — Maria Julia tentou.
— Não percebem que ele está usando hipnose para convencer vocês a não o matar? — Felipe disse, quase rosnando — Não é algo mágico, ou poderia ser detectado, é simplesmente um efeito psicológico que palavras e gestos causam nas pessoas, ele é bem esperto…
— Então você percebeu? — Ferdinand sorriu.
— Aposto que não esperava.
Adênia e Brogo já estavam em postura de luta, se preparando para o pior, Maria Julia se pôs à frente de Sônia, e Alice estava em desespero. Ferdinand se levantou e pôs as mãos no quadril, dizendo:
— O que me matar vai mudar? Além de você perder seu poder, é claro.
— Não, preciso desse poder! Eu nunca precisei, principalmente agora que já sei o final de tudo isso.
Os olhos de Ferdinand ficaram arregalados ao final da frase de Felipe, ao mesmo tempo, dois tiros foram disparados. A bala que era para Alice foi parada pelo corpo de seu pai, que levou um segundo tiro para proteger a filha.
— Poderia ter sobrevivido se deixasse ela morrer, — disse Felipe, — mas eu sabia que ia preferir morrer por ela. Como eu falei, o final está escrito e não pode ser mudado.
Felipe levantou a arma em direção à cabeça de Alice, e quando o gatilho foi puxado, a bala não encontrou o alvo. Alice desapareceu no ar, bem em frente a todos.
— Exatamente como previ. — Felipe esboçou um sorriso — Ou esqueceram que eu sei como isso termina!
Os sons de tiros chamaram a atenção de todo o acampamento, fazendo com que as pessoas se aproximassem com armas em mãos esperando o pior. Felipe assistia os últimos suspiros de Ferdinand, ignorando a multidão que se aglomerava ao redor.
Assim que o deus da sabedoria parou de apresentar sinais de vida, Felipe elevou os olhos aos céus cobertos de escuridão. Uma lágrima desceu pela sua face, contrastando com o sorriso de felicidade que a estampava.
— Yu, — Felipe se referiu a Brogo, mesmo sem olhar para ela, — a sopa estava deliciosa.
Seus olhos foram de encontro a Sônia.
— Aos que ficam, boa sorte! — Ele encostou o cano da arma em sua cabeça — Sônia, te vejo do outro lado… Se puderem devolver a arma ao Valmir, eu ficarei agradecido. Foi uma boa vida.
O último tiro da noite ecoou pelas planícies gélidas, carregando consigo a morte de mais um herói. Diferente dos demais, ninguém era digno de tirar sua vida, além de si mesmo.
Felipe havia concluído sua missão naquele mundo, não havia mais nada para aprender. Agora restava a André a missão de fazer as coisas darem certo, e o final previsto por Felipe se tornar real.
Adênia se aproximou do cadáver de Felipe, ainda chocada com as ações repentinas do herói suicida.
— Ele se matou? — Adênia balbuciou — Simples assim? Que merda…
No dia seguinte ela teria que lidar com dois cadáveres que sequer eram do seu povo.