A Voz das Estrelas - Capítulo 14
Reunidas à mesa, crianças trajadas com seus hábitos escuros cruzavam as mãos de olhos fechados, conforme executavam preces em agradecimento ao alimento de cada dia. Conduzidas pelas freiras mais velhas, enunciaram a oração em voz alta antes de começarem a degustar.
Embora fosse um lugar relativamente estreito para comportar diversas meninas de idades que variavam entre três e dezesseis anos, todas aproveitavam o momento de fartura sorridentes.
No entanto nenhuma das pessoas presentes ali poderia esperar pelo que viria a acontecer durante a confraternização. Um curto-circuito numa das antigas fiações soltou as faíscas responsáveis por darem início aos minutos de puro terror daquela noite.
Em um piscar, as chamas engoliram o pequeno orfanato localizado numa área campada, distante da cidade. Por mais que as luzes alaranjadas alcançassem as vistas da zona urbana, nenhuma ajuda poderia vir. Os gritos agonizantes de socorro não seriam alcançados por alguém.
O sinal de fumaça subiu aos céus até se unir às nuvens esporádicas que flutuavam sob as estrelas. Perante o calor infernal que queimava todas as irmãs até a morte, três garotas tiveram sucesso em escapar. Chocadas com a cena horripilante, podiam apenas observar impotentes com vistas esgazeadas.
Nas mãos de uma delas, a de maior estatura no centro, um pedaço pequeno de bolo continha a palavra “parabéns” escrita abaixo do número dezessete.
★★★
Diante do médio fluxo de pessoas na cidade, os hábitos religiosos sujos e rasgados nas extremidades chamavam a atenção de quem olhava. Amedrontadas pelos olhares dos desconhecidos, as três meninas caminhavam grudadas umas às outras.
Durante o trajeto conturbado, um ruído grunhido ressoou pelo espaço. A maior delas percebeu ter sido um ronco vindo do abdômen de uma das duas que conduzia pelos flancos do corpo.
— Irmã Judith… — murmurou a da esquerda com uma voz manhosa — eu tô com fome…
— Eu também… eu também…
A da direita, tão dramática quanto, assentiu com a cabeça diversas vezes fazendo a cruz amarela que carregava no peito balançar.
Com um breve suspiro, a garota no centro murmurou:
— Todas estamos, mas peço que aguentem mais um pouco…
A jovem chamada de Judith observava os estabelecimentos da área onde caminhavam ao passo que também aguentava a dor na barriga causada pela fome.
“Enquanto protetora dessas duas, preciso aguentar as pontas”, pensou em silêncio ao pressionar os lábios. Seria complicado continuar daquela maneira, afinal nem mesmo um rumo concreto tinha em mente.
E pensar em um no atual estado de lazeira certamente não seria possível
Sem melhores opções as quais pudesse recorrer, a protetora fixou o primeiro grande alvo. Uma loja de conveniências na esquina do quarteirão apresentava-se com pouco movimento, portanto julgou ser uma boa oportunidade a fim de adquirir comida.
Guiou a dupla até a entrada do estabelecimento comercial. Ao abrir das portas, um som característico anunciou a chegada dos novos clientes. Apesar das protegidas demonstrarem certo receio diante ao ruído desconhecido, a líder manteve a serenidade.
Fitou as duas antes de iniciar a exploração e constatou o semblante aliviado de ambas, diferente da demonstração ao longo da jornada pela rua.
— Uaah… que fresquinho…
— Quero ficar aqui… podemos ficar, irmã Judith!?
O condicionador de ar deixava o clima interior bastante aprazível, um frescor jamais experimentado por nenhuma das três.
— Infelizmente não podemos. Vamos conseguir algo pra comer e iremos embora… — sussurrou apesar da vontade mútua em permanecer.
— Aaaah…
Dando de ombros à birra feita pelas duas menores, Judith esboçou um fraco sorriso e decidiu iniciar a pequena aventura dentro do estabelecimento. Com uma quantidade de pessoas onde era possível contar nos dedos, as pequenas freiras procuravam se desvencilhar das encaradas alheias.
Podia sentir os ombros trêmulos ao trazê-las junto do corpo, também tinha ciência de que não era por causa do frio originado pela climatização. Seria muito bom se conseguisse alcançar o objetivo o mais rápido possível no intuito de deixá-las confortáveis.
Focada nisso, as levou até o local mais isolado da loja. Ali as prateleiras abrangiam biscoitos salgados e doces de variadas marcas e sabores. Só de enxergá-los, as crianças deixaram todo o temor se esvair em prol da vontade carregada pela fome.
Contudo havia um grande problema.
“Esses são os valores? Não temos dinheiro”, buscou algum jeito de contornar aquela situação, porém somente uma passou por sua cabeça. “Não, não, não. Nem pensar. Roubar é errado, nosso Senhor iria nos castigar por isso.”
Enquanto balançava a cabeça em negação, a garota pensou numa segunda solução. Não era tão correta quanto a anterior, mas talvez fosse melhor do que precisar pegar sem permissão.
— Karen, Sarah… me esperem um pouquinho.
Deixou-as juntas, escondidas na grande prateleira e se dirigiu até uma mulher que carregava uma cestinha no braço com alguns produtos. Do interior de sua bolsa de couro, retirou papéis esverdeados e os utilizou para passar as compras pelo caixa.
“A irmã Lídia mostrou isso pra nós uma vez… cédulas de dinheiro. É isso que usamos pra pagar pra podermos levar biscoitos?”, a garota retornou até a prateleira onde tinha deixado Karen e Sarah, as respectivas protegidas.
As puxou até ficarem próximas de seu corpo e fechou os olhos concentrando a mente. Um súbito arrepio percorreu a dupla envolvida à medida que um fraco brilho surgiu no lado esquerdo de seu pescoço. Sem que ninguém pudesse ver, algo começou a tomar forma acima de sua palma destra.
As cédulas idênticas às verificadas a pouco surgiram no ar e caíram até a mão da menina. Exalou um fraco suspiro de cansaço, mas logo sorriu contente por ter sido capaz de originar o dinheiro necessário.
— Podem escolher o que quiserem… vamos pegar bastante pra sobrar até a noite! — Sorriu com alegria para as duas.
Dito e feito, as pequenas freiras encheram duas cestas com vários tipos de biscoitos salgados e doces. Mesmo diante do espanto demonstrado pelo dono da loja, conseguiram pagar tudo com o dinheiro criado do nada.
Tendo duas sacolas cheias nos braços, deixaram o estabelecimento felizes da vida, pois não iriam passar fome por mais um dia. Para não chamarem a atenção das pessoas como faziam desde o início, entraram em uma das pequenas ruelas vazias onde conseguiriam se alimentar sem problemas.
Retiraram o capuz da cabeça e executaram uma rápida prece em conjunto ao se sentarem em um meio-fio elevado.
Judith tinha cabelo castanho liso com pequenas ondulações até metade das costas, próximo ao ruivo. Entre as duas companheiras, cruzou as mãos e proclamou em voz alta:
— Obrigada Senhor, por nos conceder a oportunidade de sermos agraciadas com tamanha benevolência em saciar nossa fome. Dessa forma, iremos aproveitar vossa generosidade com prazer. Amém.
— Amém! — As outras complementaram em uníssono.
Seguindo as próprias preces, as meninas abriram os pacotes e não se intimidaram a atacarem as iguarias com tudo que tinham. Não era tão satisfatório quanto o almoço no qual estavam habituadas, porém o simples fato de poderem se alimentar já era suficiente.
— Espero que… o Senhor esteja cuidando… das irmãs no céu…
Entre mastigadas efusivas, a garota de pele morena murmurou ao ajeitar uma das tranças laterais onduladas de seu cabelo castanho-escuro.
Um momento de silêncio tomou conta do local, mas logo foi cortado pelos ruídos da terceira menina. Essa de cabelo castanho-claro, tão curto que mal alcançava os ombros, comia os salgadinhos com um sorriso no rosto.
— Sua boca tá toda suja, Karen — Judith comentou por meio de uma fraca risada.
A garotinha percebeu as migalhas do biscoito salgado ao redor dos lábios e tentou puxá-los com a língua, mas só serviu para piorar a situação. Ela não desejava utilizar as mangas do hábito religioso em hipótese alguma, então seu malabarismo infantil tirou gargalhadas das outras irmãs.
Seguindo o exemplo da menor, Judith e Sarah assentiram após se entreolharem e comeram o quanto podiam. Naquele primeiro momento, um pacote e meio foi o suficiente para cada. No entanto agora elas precisavam contornar um novo problema…
— Sede… — murmurou a de tranças onduladas.
— Seeede… — repetiu a de cabelo curto.
— Não tinha pensado nisso…
A maior das três suspirou por ter sido levada a esquecer das bebidas graças a fome. Se levantou do meio-fio, bateu as mãos na traseira em prol de tirar a sujeira do hábito escuro e decidiu voltar à loja de conveniências com o objetivo de comprar água.
“Ou seria melhor suco?”, levou o indicador ao queixo enquanto tentava se decidir. “Talvez eu compre os dois”, sorriu com leveza quando evocou a possibilidade de criar quanto dinheiro quisesse. Isso a permitiria adquirir tudo que desejasse, assim como na ocasião passada.
Contudo antes de poder se dirigir ao estabelecimento novamente…
— Ei, olha só! Tem umas freiras aqui! — Um garoto cheio de piercings no rosto entrou na viela com as mãos no bolso.
— Como é que é? E ainda são crianças…
Mais dois jovens recheados de tatuagens estranhas o perseguiram até fecharem a passagem mais próxima das meninas.
Sentindo-se ameaçada pela repentina aparição deles, Judith se postou à frente de Sarah e Karen antes de pensar em qualquer outra coisa.
— O que foi? Por acaso estão perdidas, freirinhas? — O terceiro jovem, o mais gordo deles, se aproximou e destacou a diferença de altura comparado a elas. — Que tal nos passarem esses biscoitos? Vocês compraram bastante, né? Acho uma covardia não dividirem.
— Não iremos dividir, pois eles são nossos.
A resposta firme da líder causou uma reação estranha nos três garotos. Eles arregalaram os olhos boquiabertos, trocaram olhares silenciosos e, logo na sequência… começaram a gargalhar.
— Olha só! Olha só! A menininha é bem corajosa, né!? — O das tatuagens apontou com o indicador enquanto segurava a barriga com a outra mão.
— Acho que ela não entendeu a situação em que se encontra… né!?
O dos piercings executou um rápido movimento que levou o joelho esquerdo até o abdômen da garota. O golpe a fez expelir bastante saliva até ser derrubada no solo com os joelhos.
— Irmã Judith! — Sarah tentou se levantar ao acompanhar a cena.
Apesar da tentativa, Judith estendeu o braço estremecido como se implorasse para ela não se mover. Tentava recuperar o oxigênio perdido ao passo que tocava a testa no chão sujo, ainda soltava fios de saliva pelos cantos da boca.
— Não nos desafie, sua fudida. Podemos levar disso pra pior se quiser sair daqui sem que reconheçam sua cara.
O responsável por derrubá-la com o rápido golpe se agachou apoiado nos joelhos flexionados. Ele segurou no cabelo ondulado dela e puxou sua cabeça a ficar frente a frente com seu rosto assustador.
Tendo um dos olhos castanho-escuro fechado por causa da dor, a pequena freira rangeu os dentes na tentativa de superar o obstáculo. Precisava se concentrar caso desejasse evitar o pior, pois a única saída restante seria criar alguma arma em prol de defender a si mesma e suas duas irmãs.
Entretanto a agonia causada pelo momento não a permitiu utilizar o poder.
— Você me tirou do sério… — murmurou o garoto à frente. — Peguem as outras duas. E depois vamos levar a comida delas.
— N-Não! Esperem…!
A jovem buscou suplicar pela clemência dos arruaceiros, mas não podia mais interromper o avanço deles em direção às mais novas.
“Oh, meu Senhor… por favor… nos ajude”, clamou mentalmente àquele que devotava sua crença de corpo e alma. Quando o gordo e o tatuado estavam próximos das indefesas… o silêncio tomou conta de todo o beco parcialmente iluminado.
A demora para uma conclusão levou o provável líder deles a erguer o olhar até a retaguarda da garota que segurava pelo cabelo.
— Ei, o que houve!? — esbravejou aos companheiros paralisados. — Por acaso ficaram com peninha!? Vocês…
No momento que pensou em se levantar e ir conferir a situação dos garotos, foi assolado por um arrepio surreal a percorrer todo o corpo. Assim como os criticados amigos, também foi incapaz de seguir em frente, então largou o cabelo da jovem baqueada.
“Isso é…?”, ela olhou para trás ainda sofrendo com a falta de ar, porém todos os sentimentos agonizantes foram substituídos por pura apreensão. E o mesmo podia ser dito de Sarah, as sobrancelhas dela erguiam-se até o limite.
Os únicos ruídos a ressoarem em meio ao absoluto silêncio foram dos passos curtos da terceira garota. Com os olhos bem arregalados, os três puderam perceber sua heterocromia — o direito possuía coloração azul-claro enquanto o esquerdo era tomado pelo verde-escuro.
Eles pareciam brilhar perante o repentino abalo de todos os presentes. Apesar disso tratava-se apenas do efeito causado por um raio solar solitário que a envolvia da cabeça aos pés.
— Deixem… minhas irmãs… em paz…
Após as palavras soturnas da criança, a luz na íris escura dos garotos desapareceu. Em questão de segundos, as gargalhadas foram substituídas por gritos desesperadores enquanto sucumbiam à terra com as mãos sobre a cabeça.
Judith conseguiu se levantar durante a estranha reação dos jovens ameaçadores. Seria o momento propício para puxar as duas e correr dali, mas não podia se mover.
Queria chamar pelo nome dela, porém nem isso foi capaz de concluir. O efeito prosseguiu até a menina perder forças e ir de encontro ao solo. A repentina síncope não deixou os garotos se livrarem do sofrimento desconhecido, portanto não seria nenhum problema para as três escaparem dali.
— Irmã Judith… isso foi…?
Sarah ainda respirava arfante frente ao que presenciou, então teve dificuldades até para comentar sobre. A mais velha escolheu não dizer nada em resposta, somente foi até Karen e a pegou no colo.
Ela também não aparentava compreender a razão daquele acontecimento, contudo tinha algumas suspeitas superficiais. Não à toa experimentou a mesma energia de quando utilizava o poder de criação.
— Vamos embora…
Livres das ameaças, as pequenas freiras decidiram procurar outro lugar para evitarem novas perturbações. Colocaram os capuzes de volta à cabeça, pegaram as sacolas com os pacotes de biscoitos restantes e deixaram o beco onde os jovens arruaceiros permaneceriam sofrendo por bastante tempo.
★★★
Quando a noite já tinha retomado o controle do firmamento recheado de estrelas pulsantes, a pequena Karen ressurgiu assustada. Notou estar com a cabeça apoiada sobre as pernas de Judith, portanto toda a tensão que dificultava sua respiração se esvaiu logo na sequência.
Perante o despertar repentino da criança, a garota esboçou um leve sorriso de contentamento. Juntas de Sarah, adormecida num banco de madeira ao lado, as pequenas freiras tinham encontrado um espaço tranquilo para conseguirem descansar após um dia cheio.
Karen virou o rosto sem se levantar e fitou o terreno cercado com solo relvado e algumas árvores ao redor. Também havia alguns brinquedos infantis, como balanços e escorregadores, além de uma quadra a céu aberto. Em paz depois do ocorrido de mais cedo no beco, ela pôde relaxar.
— Tá tudo bem, Karen? — Judith perguntou ao conduzir os fios curtos de seu cabelo à frente da testa com os dedos.
— Irmã Judith… eu… — Ela encontrou dificuldades para responder num primeiro momento, porém logo proferiu após suspirar: — Eu tive um pesadelo… não sei se consigo dormir…
Mesmo com o conflito da manhã, a mais velha sabia que o conteúdo daqueles sonhos ruins envolvia a tragédia no orfanato onde viviam. Afinal desde esse dia eles eram os principais responsáveis por atrapalharem o sono da pequena irmã.
Num gesto de afago, acariciou a cabeça da criança enquanto erguia o rosto em direção ao céu. Aproveitando a posição favorável, Karen também observou a abóbada inalcançável pintada com luminosos pontos brancos, azuis e vermelhos espalhados pela escuridão.
— Hoje está uma noite linda…
— Irmã… — A caçula segurou o hábito da garota e sussurrou: — Pode cantar… pra mim?…
Ao escutar o pedido da menina, a líder dirigiu um sorriso benévolo a ela. Ao aceitar silenciosamente, fechou os olhos e buscou inspirar bastante ar como se fosse uma breve preparação para, então, entoar com leveza:
— Brilha, brilha, estrelinha… eu queria ser você…
A voz suave da protetora ecoou pelo ar junto a uma fraca brisa que fazia seu cabelo ondulado menear pelo espaço. Com um sorriso alegre, Karen também fechou as írises de diferentes cores e apreciou a canção de ninar da irmã mais velha.
Apenas o céu e as estrelas podiam as observar durante aquele momento pacífico.