Vigilante Eterno - Capítulo 15
Mesmo com os olhos abertos, Aline não conseguia visualizar nenhum resquício de luz dentro daquela escuridão sem fim. Apenas conseguia ouvir sons distorcidos que se assemelhavam a vozes, que ecoavam dentro de sua cabeça.
Após um longo período de tempo, o vazio em sua volta foi se materializando. Estruturas gigantescas, que pareciam rasgar o céu, se formaram em sua volta. Agora firmes sobre o asfalto escuro e rachado, Aline caminhou pelas ruas sem qualquer resquício de vida. O céu era coberto por um véu branco, e o horizonte marcado por uma névoa espessa.
Aline nunca tinha sentido tanta solidão em sua vida como sentia agora. Canto de pássaros, o som das cigarras ou o coaxar de um sapo, não conseguia ouvir nada disso além do silêncio monótono e perturbador.
Sem qualquer escolha, ela continuou caminhando pelas ruas daquela cidade desalmada, passando por vitrines de lojas quebradas, prédios prestes a irem ao chão e casas abandonadas.
Após algum tempo vagando pelo local, ela voltou a escutar as vozes, mas agora era possível distingui-las e entender parcialmente o que diziam. Guiando-se pelo som, Aline chegou até a origem daquelas vozes.
Os sons que Aline escutava vinham de um bueiro semi-aberto. Agachando-se perto do bueiro, ela conseguia escutar com clareza o que as vozes tagarelavam.
— Soube que estão chegando novos recrutas para a legião? — indagou uma voz sonolenta.
— Mais recrutas? O ninho já está bastante cheio, quase lotado — respondeu outra voz estridente.
— Não esquenta a cabeça, com certeza o mestre tem tudo planejado. Ele não iria fazer isso à toa.
Aline abaixou-se ainda mais, aproximando o rosto do bueiro. Por estar concentrada na conversa, Aline demorou para perceber uma presença aproximando-se por trás de si.
Mesmo sem ter se virado, Aline já imaginava que se tratava de algum ser monstruoso apenas pelos sons que ele emitia. O rosnado junto a respiração ofegante transmitiam uma intenção assassina. O bafo quente queimava a nuca de Aline, que se encontrava paralisada pelo medo.
— Então é aqui que você está, seu miserável?! — A voz da criatura parecia penetrar a alma com seu tom ameaçador.
A única coisa que se passava na mente de Aline era fugir dali o mais rápido possível, porém o seu corpo não respondia aos comandos do seu cérebro. Apenas a presença daquele ser sem rosto era o suficiente para fazê-la congelar de medo. Pela visão periférica, Aline conseguiu ver uma mão de aparência tosca aproximando-se pela lateral de seu rosto. A mão era estranhamente grande, coberta por uma penugem escura e com garras compridas como facas na ponta dos dedos. A última coisa que presenciou antes de acordar, foi a mão da fera cobrindo sua face, apertando-lhe com força.
Ao acordar, Aline sentou-se abruptamente na maca hospitalar, soltando um berro do fundo de sua garganta, acordando Maycon, que dormia em uma cadeira ao lado da maca.
— Calma, calma, está tudo bem — dizia Maycon, segurando os ombros de sua irmã claramente desorientada.
Minutos se passaram e Aline foi acalmando os ânimos aos poucos.
— Você deveria descansar mais. É muito cedo para levantar — disse Maycon com uma expressão de preocupação profunda. Ele havia permanecido ao lado da irmã durante todo o período em que ela estava desacordada.
— Eu já estou melhor, Maycon. — Apoiada no suporte para soro, Aline levantou-se, caminhando até o banheiro, onde trocou de roupa.
Maycon acompanhou Aline até o lado de fora da sala de enfermaria.
— Devíamos chamar o médico para lhe analisar e ver se você está realmente bem — insistiu Maycon. Ele nunca foi contra a sua irmã entrar para os vigilantes, mesmo sabendo dos riscos. Ele acreditava que desde que sempre estivesse ao seu lado, nada iria acontecer com ela.
— Para que tanta preocupação? — perguntou a jovem vigilante com uma expressão de dúvida. — Eu não fiquei apagada por tanto tempo, fiquei?
— Você apagou por dois dias, dois… malditos… dias.
Aline parou em frente a porta da enfermaria, pensativa. Seu rosto jovial e delicado, agora, expressava um forte sentimento de angústia e dúvida.
— Eu não acredito que foi tanto tempo assim — disse Aline, baixando o seu tom de voz.
— Esqueça isso. O que importa agora é que você está bem e…
O vigilante foi interrompido pela ação inesperada de sua irmã, que disparou pelo corredor do navio. Maycon ficou estático por alguns segundos sem entender o que havia acabado de acontecer, até decidir seguir a irmã, correndo o máximo que pode em sua direção.
— O que você pensa que está fazendo? — berrou Maycon ao alcançar a irmã.
— Onde está o diretor? Eu preciso falar com ele urgentemente. — Enquanto falava, Aline não parava de correr em nenhum instante. Mesmo após ficar dois dias desacordada, ela ainda tinha forças para correr longas distâncias sem descanso. Uma prova do preparo físico proveniente do treinamento árduo que os vigilantes recebiam em seu processo de formação.
Por sorte, o diretor ainda se encontrava no navio. Com a ajuda de soldados que encontravam nos corredores da embarcação, a dupla foi guiando-se até a sala em que o diretor estava assentado. Em frente à sala, encontrava-se dois guardas postos em frente à porta.
— Vocês não podem entrar — disse um dos guardas postado em frente a porta.
— O diretor está no meio de uma reunião — acrescentou o guarda à esquerda. Ambos estavam vestidos com um traje balístico que cobria dos pés a cabeça.
— Vocês não entenderam, eu tenho uma informação de extrema importância para dar ao diretor. Mais importante que qualquer reunião. — A voz de Aline falhava periodicamente. Seu rosto rubro e respiração ofegante, eram resultados do esforço que fizera ao correr até ali.
— Infelizmente vocês terão que esperar até o fim da reunião para poderem falar com o diretor. — O tom de voz do guarda era monótono, não mudando de tom em momento algum, assemelhando-se a uma voz robótica. O fato de terem as faces cobertas por máscaras de kevlar, não ajudava muito na hora de ler suas expressões.
— Você não a ouviu, “amigo”? Independente se o diretor estiver em reunião ou jogando sinuca, ela precisa falar com ele, agora! — bramiu Maycon em uma tentativa de intimidar os guardas. — Fala com a secretária do diretor, ela com certeza deve estar aí dentro. Diga que Maycon quer falar com ela.
— Fomos autorizados a barrar qualquer um que tente entrar na sala durante as reuniões, graças aos assuntos confidenciais que são discutidos nelas — explicou o guarda à direita, em uma tentativa de amenizar a situação que se encontrava tensa. Porém, o tiro acabou saindo pela culatra e acabou deixando Maycon ainda mais irritado.
O vigilante deu um passo abrupto para frente, em direção à porta, ignorando completamente os dois guardas ao lado. Maycon foi barrado pela mão do militar a direita, que o empurrou para trás, mas o vigilante resistiu e não moveu nenhum centímetro.
O outro guarda, ao perceber que Maycon estava resistindo, levantou a arma em direção ao vigilante, porém, com o dedo fora do gatilho.
— Para trás, AGORA! — ordenou o guarda com o fuzil apontada para Maycon, que ao perceber o dedo fora do gatilho, soltou um sorriso.
Em um movimento quase que invisível aos olhos humanos, o vigilante veterano desarmou o guarda à sua direita. O soldado com a mão no peitoral de Maycon, ao perceber o desarme de seu companheiro, tentou sacar a pistola em seu coldre, porém, antes de sequer tocar na arma, ele foi ao chão, sendo derrubado por Maycon em um movimento tão ágil e preciso quanto o anterior. Essa sequência de acontecimentos ocorrera em um curto período de tempo de apenas 3 segundos.
— Mas que algazarra é essa? — A voz vinha do outro lado da porta, que ao ser aberta, revelou a figura simpática de Larissa.
Ao reconhecer os irmãos, a secretaria dispensou ambos os guardas, convidando a dupla de vigilantes para entrar no escritório. Após alguns minutos, a reunião foi encerrada, assim, o diretor pode dar a atenção devida a Aline e Maycon.
— Realmente, esse “pesadelo” que teve é muito intrigante. Levando em conta a descrição do local, acredito que se trata de uma cidade fantasma, do outro lado da cerca. — Enquanto falava, o velho girava uma caneta com os dedos de uma mão. Movimentos rápidos e ágeis para alguém de sua idade.
— Um ótimo local para montar um esconderijo. Nenhum humano atravessou a cerca desde sua criação — completou Larissa, pensativa. — Além da neblina e mata espessa, que impedem qualquer tipo de reconhecimento aéreo.
— E então, qual é o próximo passo? — indagou Maycon. Seu tom de voz demonstrava um grande desejo de justiça ou até mesmo vingança contra os híbridos por tudo que eles haviam feito durante todos esses anos. — Atravessar a cerca e invadir o ninho?
— Infelizmente estamos de mãos atadas. Levará semanas até eu conseguir permissão da organização e do governo para atravessar a cerca. — Após concluir a frase, o diretor deixou a caneta escapar por entre os seus dedos, caindo no chão.
— Também devemos levar em conta que os parceiros do escavador perceberão o seu desaparecimento repentino, o que pode levar eles a suspeitarem de que já sabemos sobre o esconderijo. É capaz de quando chegarmos até lá, eles já tenham escapado e sumido com todas as provas. — As palavras da secretária foram como um balde de água fria para Aline, que estava esperançosa que eles poderiam fazer algo contra o inimigo com aquelas informações.
— Então a minha irmã arriscou a vida por nada?! — bravejou Maycon, desferindo um golpe sobre a mesa do diretor.
Um silêncio constrangedor seguiu-se logo após isso. O diretor estava claramente incomodado por não ter o poder para lidar com a situação como gostaria. A burocracia excessiva na organização era algo que o incomodava há muito tempo.
— Toda a destruição causada há 19 anos atrás. Os diversos desaparecimentos anuais sem respostas. Quando finalmente achamos a possível resposta para todos esses casos, nós somos impedidos de agir. — A voz de Maycon pesava ao relembrar toda a dor e destruição que esses seres foram responsáveis por causar.
Após isso, um longo período seguiu-se. Todos se encontravam cabisbaixos, lamentando ou ponderando sobre a situação.
— Há menos que vocês ajam por conta própria, sem ser a mando da organização ou do governo — sugeriu o diretor de repente.
Aline, que até aquele momento estava cabisbaixa, levantou sua cabeça de forma repentina, encarando a cara enrugada do velho com muita atenção.
— Senhor diretor, o que você está sugerindo é…
— Existe uma doca da marinha não muito longe daqui, lá estão aportadas diversas embarcações prontas para o uso — continuou o diretor, interrompendo a sua secretaria. — Acho que eles não vão sentir falta de apenas um barco. Além disso, se acharem necessário, vocês podem pegar o quanto de suprimentos que acharem necessários na dispensa do navio. E é claro, também irei dar-lhes a informação de uma possível passagem por entre a cerca, mas não garanto que ela ainda exista.
— Você entende o que está propondo a nós? — perguntou Maycon com uma expressão carrancuda. — Podemos nos fuder muito caso sejamos pegos atravessando a cerca sem autorização.
— Eu sei. Por isso farei de tudo para garantir que ninguém além das pessoas nessa sala saibam sobre isso. É claro que não posso garantir a vocês 100% de proteção, mas farei o máximo que puder.
— Mas diretor, isso é muito arriscado. — Larissa expressava um extremo descontentamento em seu tom de voz. — Esse tipo de operação deve ser realizada com um grande efetivo de vigilantes, além de um planejamento prévio profundo
— E você acha que eu não sei disso? — berrou o velho, apoiando suas mãos na mesa para levantar-se da poltrona. — Entendam, não estou pedindo para atacarem a base inimiga. Pensem nessa missão como uma operação de reconhecimento. Quero que consigam o máximo de informações possíveis sobre o ultra e os híbridos. Não se arrisquem de forma desnecessária.
— Nós podemos fazer isso. — Aline demonstrava grande ânimo e determinação em sua voz. — Com as memórias que adquiri do escavador, podemos chegar até o ninho sem problema algum.
— Bem… — Maycon ainda parecia hesitante sobre o assunto, mas ele também não queria que o sacrifício de sua irmã fosse em vão. — Me parece um plano aceitável, mesmo que ainda tenha um certo grau de risco.
— Então estamos de acordo. Agora, tratem de fazer os seus preparativos o mais rápido possível, já perdemos muito tempo. — O diretor voltou a sentar em sua poltrona, onde assistiu à dupla de vigilantes dirigir-se até a porta da sala.
Larissa ainda demonstrava a sua desaprovação em relação ao plano, mas nada podia fazer além de auxiliar os vigilantes e desejar que nada de ruim acontecesse durante a missão.
— Maycon! — berrou o diretor. O vigilante, que estava prestes a sair pela porta, virou-se em direção ao velho, o encarando com uma feição inexpressiva. — Procure aquele rapaz, Vidal, e seu parceiro. Acredito que eles serão de grande ajuda.
— Serão sim — respondeu Maycon, deixando escapar um sorriso de canto de boca. — É claro que serão…