Venante - Capítulo 7
— E você ainda vem com “foi bem” no teste… — Um sorriso mortal apareceu no rosto dela.
— Mas tem mais! — Para evitar que ela ficasse ainda mais brava, decidiu contar tudo de uma vez. Talvez isso faria o cascudo que levaria ser mais leve quando ela voltasse.
— Por que eu sinto que não vai ser boa coisa… Hah… Vamos lá. O que tem mais?
Leonardo contou o teste inteiro, enfatizando a singularidade do seu Auct e a oportunidade dada por Rafael.
Massageando suas têmporas, Elisa estava dissecando em sua mente tudo o que ouviu.
— Está me dizendo que aquele velho te deu uma chance para estudar lá? Em outras palavras, você está me dizendo que ele, de todas as pessoas, sentiu pena de ti? — Na mente dela, a tal “oportunidade” oferecida não era mais do que dó do filho dela e uma forma de recompensar pelas coisas que ela e Luiz já fizeram.
— Mãe… Não foi assim. Você… sabe que eu não queria… — Leonardo ficou um pouco deprimido com a conclusão e os comentários. Afinal, Elisa sabia que seu filho estava traumatizado ainda.
— Hah… Certo. Certo! Você ainda decidiu isso. É. Isso é algo bom. Desculpa a mãe por ter pensado tanto. — Ela deu uma risada abafada e baixa. No entanto nunca admitiria que surtou por um segundo. — Estou feliz que tenha decidido seguir esse caminho, meu lindinho.
— Já conversamos sobre parar de me chamar assim…
— Quer apanhar? — Seu rosto se tornou sério, como se não tivesse ficado feliz antes. — Se quiser, eu pago a tua passagem para cá.
Leonardo engoliu seco. — Não, mãe…
— Bom garoto. — Terminando de conversar com seu filho, estalou o pescoço em sons altos, como se tivesse acumulado muita tensão em pouco tempo. — Enfim, a mamãe precisa discutir algumas cláusulas com aquele velho sobre o seu bem-estar ainda.
Nesse momento, algumas vozes soaram de fundo. Era a chegada dos japoneses para a troca dos móveis quebrados.
— Bem, já que chegaram, vou indo e ligarei para esse querido, bem-afeiçoado e benevolente Rafael. Deixarei tudo de melhor para o meu lindinho.
— Obrigado… — Ele ainda estava um pouco desanimado pela forma como sua mãe estava tratando tudo, mas, ainda assim, sabia que essa mulher sempre buscou pelo melhor para sua família.
Então, ainda olhando para seu filho, Elisa desviou seu olhar para o almoço dele e reclamou: — Ainda comendo isso… Tá na hora de mudar essa alimentação. Esses nuggets… Você ainda vai morrer por causa disso. Beijinhos, filhinho, mamãe vai indo. — A ligação terminou.
Leonardo olhou para o próprio prato, pensando em seu corpo. Era óbvio que não tinha qualquer benefício naquilo, mas já se tornara um vício criado por morar sozinho.
Ele respirou fundo, descartou o que restou no prato à lixeira e foi direto para seu quarto. Tudo o que seu corpo pedia agora era um bom cochilo pela tarde. A madrugada estava esperando esse jovem coruja.
No Japão, após terem trocado os móveis do quarto de Elisa, era hora de fazer uma ligação importante.
— Nelink, ligar para “Velho Tavares”. — Fora o apelido estranho, ela estava muito mais séria que o habitual.
Não demorou mais que três toques para que fosse atendida.
A imagem de Rafael apareceu. Estava sentado em uma bela poltrona, bem em seu escritório.
— É… Será uma longa discussão. — Quando viu a feição no rosto da mulher, já tinha ideia do tanto que estava segurando.
— Rafael, exijo uma explicação. Que papinho foi aquele de “oportunidade”? O que você está querendo com o meu filho? Acha mesmo que eu não poderia dar isso a ele? Não me faça ir até aí para lidar contigo também. — Ela levantou uma mão e estalou cada falange dos seus dedos, apertando em um punho.
— Elisa, peço que se acalme e escute. — Tentou manter a compostura, mesmo sabendo que aquela mulher poderia mesmo explodir e ir até ele. — Não vou mentir nem esconder algo sobre tudo isso. Confesso que à primeira vista, pensei em promovê-lo apenas pelo seu Auct… Contudo, Elisa, o seu filho… carrega aquilo que seu marido sempre demonstrou. Sua humildade e sinceridade. Leonardo tem tudo o que nós, Venantes brasileiros, precisamos.
— Tavares… ele tem apenas 14 anos. E é de meu filho que estamos falando também. Não vai ser com esse discursinho todo enfeitado e sentimental que vai conseguir o meu apoio. Ainda sou a mãe dele, e, sem a minha aprovação, não vai conseguir o que busca.
Nessa hora, Rafael suspirou forte. — Elisa, você não pode continuar protegendo-o assim. O garoto já decidiu o que deseja fazer. — E, em uma tentativa de contornar a situação, apelou para o sentimental do filho dela.
— Eu posso e vou. — A resposta foi curta e grossa, ignorando o que o pobre Leonardo sentia. — Meu marido morreu naquela maldita raide sua, e você ainda ousa querer levar o meu filho para o seu lado? Rafael, me dê bons motivos e não apenas palavras bonitas. — Mais uma vez, estalos foram ouvidos, ainda mais alto que antes. Elisa expressava claramente que estava ficando sem paciência.
— Certo. Só peço que escute tudo, com paciência. O Grau de Leonardo é o maior problema, e nós dois sabemos disso. E, também, somos capazes de lidar com isso. Mas, com aquele Auct, existe a possibilidade de que todas as raides que ele participar se tornem ainda mais seguras, só por causa dele! — Ele parou um momento para engolir e analisar a expressão dela. — Eu não forçarei nem tomarei partido até que a maioridade dele chegue. Tudo o que posso fazer agora é ajudá-lo. Principalmente porque devo muito ao Luiz, Elisa.
Havia algumas falhas no que Tavares havia dito, mas, quando ouviu a última frase, Elisa só pôde tentar controlar sua fúria e lembrar de como esse velho agia. Ele podia ter sido muito idiota quando novo, mas amadureceu muito como adulto e, agora, velho, era muito meticuloso, mas sentimental na mesma medida.
— Rafael… — Outra vez foi forçada a massagear as têmporas e controlar o que sentia. — Eu estou pronta para que o meu filho viva uma vida como Venante. Nós dois sabemos muito bem como pode ser horrível e difícil, mas, mesmo assim, era o sonho meu e do meu marido que Leo seguisse esse caminho também.
Quando Rafael estava prestes a abrir a boca para dizer algo, Elisa levantou a mão, interrompendo-o.
— Mas eu não quero ver você tratando-o como uma ferramenta, Rafael. Nós já somos uma e não quero que ele seja considerado uma antes mesmo de ser um verdadeiro Venante. — Com a mão estendida ainda, virou ela e desceu dois dedos, sobrando três levantados. — Eu vou exigir três condições para te permitir que continue dando suporte para o meu filho.
— Muito bem — respondeu com firmeza, mesmo que as exigências pudessem ser absurdas, ainda eram só três.
— Primeira. Eu quero alguém participando da vida colegial dele, para proteção. Disfarce alguém e não precisa fazer amizade com ele, apenas ficar de olho constante. Ter um Grau tão baixo em um colégio renomado… Hah… Vai ser terrível para ele se estiver sozinho. Se algo grave acontecer, você deve me contatar de imediato e enviar alguém com Cura, no mesmo instante.
Rafael assentiu, comentando: — Eu já havia previsto isso. Não se preocupe, não seria diferente.
Elisa também assentiu e continuou: — Ele não vai conseguir acompanhar o crescimento e velocidade de evolução de Aucts dos outros alunos, então, a cada dois meses, quero que você o leve para algum Portal para treinar a si mesmo. E, não esqueça, a segurança dele é prioridade.
Rafael pareceu meio incomodado com isso. Afinal, era uma pessoa de renome e de alta patente na Associação das Américas. Dessa forma, se o vissem ou soubessem que estava levando um adolescente para um Portal, mesmo que fosse a cada dois meses, ainda levantaria muitas questões, além de custar o tempo dele fora do trabalho.
Mas, mesmo essa exigência, ainda era algo aceitável.
— Por último… Rafael, eu estou abrindo mão da coisa mais importante da minha vida. Então, obviamente preciso que você também faça algo do mesmo tamanho. Afinal, é do meu garotinho que estamos falando. — Por mais bruta que fosse nos diálogos, esse último pedido parecia trazer uma grande alegria, jogando-o na cara de Rafael, com todo gosto. — Eu quero que você o dê aquela coisinha que pegou naquele dia.
Apenas em ouvir a última frase, este enorme homem sentiu um arrepio. O que ela se referia era um item raríssimo que havia conseguido da raide mais perigosa que participou, justamente naquela que Luiz perdeu a vida.
Sua grande mão estava apertando forte o joelho, afinal, era um item muito delicado para ser jogado em uma troca.
— Elisa… Você realmente entende o valor dele? Abrir mão e dá-lo para um adolescente… E se for roubado?
Assim que ia continuar a falar, a mulher o interrompeu, ignorando qualquer coisa que poderia vir em seguida.
— Primeiro de tudo, Tavares, não foi você que disse, agora mesmo, que eu e você poderemos lidar com o problema do Grau do Leo? É óbvio que entendo o valor desse item que custou a vida do meu marido! — Ela rangeu os dentes quando terminou em voz alta e logo acrescentou: — Você achou mesmo que dando um dos seus brinquedinhos baratos para ele seria o suficiente? Eu já falei para você… Não ouse tratar o meu filho como uma ferramenta.
Rafael se acalmou, porque, se Elisa se estressasse um pouco mais, não teria mais discussão alguma. Então, fechando os olhos, reavaliou o que falou e notou que estava sendo irresponsável em alguns pontos. Principalmente em tentar fazer perguntas falsas como “Se for roubado?”. Se o rapaz estiver sob constante observação, não teria como alguém roubá-lo, porque seria culpa dele e não de Leonardo.
Aproveitando que Rafael estava preso em seus pensamentos, Elisa queria terminar com a discussão, sem dar chance para ele contra-argumentar.
— Por sinal… Esse item que guardou com tanto esforço, não era justamente para dar a alguém que valesse a pena ajudar?
Ela lembrou o primeiro motivo de Rafael estar guardando com tanto afinco esse objeto. O seu valor só existia para os fracos. Ou seja, a sua importância só existia aos olhos de Rafael e ninguém mais. Por isso esse homem estava tão relutante em dá-lo.
Elisa continuou: — Além disso, eu também darei algo muito importante para ele. — Era hora de dar fim a essa negociação. — Que tal, não acha justo? — Um sorriso que parecia uma ameaça surgiu, mostrando a felicidade de tomar algo desse velho.
Do outro lado, Rafael afrouxou o nó da gravata, porque parecia estar mais apertado que de costume.
Sua mente estava ainda tentando processar que tudo o que estava em jogo era apenas o futuro de um adolescente. Como pôde se tornar algo tão sério assim? Mas, claro, só de olhar para a tela holográfica, sabia a resposta.
Era o filho da mulher que detestava ele. Além disso, tudo o que ela apontou fazia sentido.
— Certo, Elisa. Você venceu. No entanto, essa terceira exigência tem que esperar. — Ele, em anos, lembrou como é ser colocado contra parede. Essa negociação nem poderia ser chamada assim, foi mais como um roubo.
— Por? — perguntou, estranhando.
Com um suspiro longo, o provecto homem se encostou fundo na poltrona, relaxando um pouco.
— Aquele item acabou virando uma pesquisa das Associações. Em poucos anos, algo parecido será distribuído. Foi previsto que algo melhor do que o item original. — Ele sabia que podia contar essa informação, afinal, estavam em canal seguro. E se houvesse um espião, deveria estar infiltrado até a última camada da Associação das Américas para saber do que estavam falando.
— Quanto tempo para poder entregar ao Leo?
— De acordo com os memorandos, tudo o que podiam pesquisar já foi perfeitamente sondado. Ou seja, eu posso retirar o item de lá, desde que emita um comunicado para o departamento. Deve demorar três ou quatro meses para retornar às minhas mãos.
Elisa assentiu e confirmou: — Entendo, no segundo encontro com Leo… Certo, Tavares. Deixarei o meu filho em suas mãos até que eu volte para casa. E não se esqueça das outras exigências. Então, até mai…
Prestes a se despedir, Rafael perguntou com pressa: — Espere! Você não me disse o que vai dá-lo.
Elisa percebeu que não falou e deu um tapinha na testa, respondendo: — Aquele anel que Luiz estava tentando terminar. Falta alguns detalhes e melhorias, mas vai servir muito bem para ele agora. — Imaginando que estava para terminar de explicar, Elisa lembrou de algo e falou provocando: — Por sinal… aproveitando que você está todo disponível aí, vou enviar o anel pelo canal da Associação. Só faça ser entregue o mais rápido para ele.
Rafael não pôde acreditar na audácia dela. Fechou seus olhos e respirou lentamente. Era muito difícil lidar com essa mulher.
— Certo… Só envie logo. — Ele já estava de saco cheio.