Venante - Capítulo 6
Essa pergunta tocou o garoto de uma forma que nunca imaginou.
Antes de hoje, imaginava que seria como o seu pai havia planejado: faria o teste, teria bons resultados, entraria no colégio e seria bem-conhecido. No entanto, na mente de Leonardo, tudo que envolvia seu pai era um pesadelo.
As pessoas não lembravam da morte dele. Na verdade, nem ligavam para as mortes dos Venantes em suas raides; o importante era que estavam “cumprindo suas obrigações”.
As pessoas, que não podiam ser Venantes, tratavam os verdadeiros Venantes como escravos da sociedade. Não era mais do que obrigação deles lutarem em raides e morrerem nelas… Porque, no fim, era tudo pelo bem da humanidade.
Leonardo rejeitava completamente isso. Por perder seu pai, já havia sofrido muito. Luiz, pai do adolescente, era um homem poderoso, mas humilde, composto e amava sua família. Sempre tratando o filho como o tesouro mais importante. Quando veio a falecer, foi esquecido, como muito de seus parceiros.
Venantes eram ferramentas. Nada mais que isso.
Léric descrevera em seu livro uma frase que Leonardo pensava quase todos os dias. “Somos adjetivos. Poderosos são os úteis, os fracos são dispensáveis”. O autor não estava referindo-se às pessoas com empregos comuns, mas de todos Venantes, como ele.
Fracos eram aqueles que morreram cumprindo suas obrigações. Poderosos eram aqueles que continuaram uteis até o fim.
Esse era o ódio de Leonardo pelos sonhos do seu pai. Ser Venante era um castigo para ele… Mas também era o que sempre sonhou.
Uma briga interna de respeito e descontentamento pelo falecimento do seu pai.
Ele, desde criança, sonhava em ser Venante, e Luiz sempre o apoiou, muito mais do que esperava. Era o sonho de infância, que o fez aficionado por Léric, por Aucts e aprender cada dia mais sobre. Porém era seu pesadelo, forçado a relembrar da insignificância que seu pai representou nesse mundo. Seria uma tortura se sentir uma ferramenta, como seu Luiz fora.
Uma profissão odiável e querida por ele.
Hoje, no dia que mais gostaria que fosse esquecido, ou mesmo nem ter ido, esse garoto descobriu tantos sentimentos novos.
O sentimento mágico de ativar seu Auct pela primeira vez.
Uma alegria incomum quando descobriu que era fraco.
Conquistar uma Charlotte através da derrota, apenas porque ele era capaz disso.
Ser um Singular o trouxe a uma euforia imatura, mas inocente.
E a dualidade, quase explosiva, dentro de si quando ouviu a oportunidade da pessoa em sua frente, que jamais seria dado para alguém como ele. Um fraco qualquer.
Ter um Grau tão baixo, o fez se sentir aliviado, sabendo que não seria forçado pela própria consciência para ser um Venante. Porém seu coração batia forte quando lembrava que seu Auct Singular tinha tantas vantagens, abrindo caminho para seu amado sonho.
Por mais que odiasse a ideia de ser uma ferramenta para a sociedade, ele seria a ferramenta mais inútil. Uma tão inútil que ninguém saberia como chegou lá.
Esse pensamento o trouxe uma felicidade única.
Em voz baixa, Leonardo, sorrindo, disse: — Parece que ele estava certo…
Foi como Luiz havia dito diversas vezes para ele. Aucts eram a complementação da alma das pessoas. Quando ativado pela primeira vez, você descobriria mais de si do que imaginava.
Mesmo odiando o fato de se tornar um instrumento, era mais frustrante ver tantos Venantes sendo tratados como grãos — sempre haveria mais. Mas sabia que se não fosse por esses grãos, jamais poderia utilizar seu Auct corretamente. Leonardo admirava os Venantes, assim como se orgulhava e amava seu pai.
Ele não havia superado seu trauma, mas, no fundo, tinha conseguido encontrar um tipo de resolução e força, que nunca pensou que teria nesse dia. Com as mãos cerradas fortemente, abaixou a cabeça e deixou as lágrimas escorrerem de seus olhos, pela primeira vez em anos.
— Eu aceito, Sr. Rafael…
Foi baixo, mas firme. O garoto havia crescido muito sem notar.
Rafael viu a força que Leonardo precisou para responder e deu-lhe um abraço forte, cobrindo o pequeno corpo, em comparação ao seu.
— Está tudo bem, Leonardo — disse orgulhoso. Esse menino capturara a admiração desse provecto homem. Ele agiu como faria com seu próprio neto, se o visse chorando.
Por sorte, eles já estavam longe de serem vistos por outras pessoas. No máximo, alguns agentes viram aquela cena constrangedora.
Quando o adolescente parou de chorar, Rafael parou de abraçar e ficou quieto, até que estivesse calmo.
Então, o agente disse: — Leonardo, vou me encarregar dos seus documentos. E avisarei a sua mãe sobre a minha decisão, mas seria bom que a contasse sobre o teste. Em duas semanas, as aulas começarão. — Ele deu um tempo para ver se Leonardo estava acompanhando e continuou: — O colégio exige que seus estudantes se mudem para os dormitórios, então deixe tudo o que precisa preparado com antecedência. — Finalizando, esfregou as costas do garoto, sem expressar muito.
— Obrigado mais uma vez, Sr. Rafael. E, sim, vou avisá-la… Mas acho que ela vai discutir muito contigo também. — Leonardo conhecia muito bem o jeito da própria mãe de lidar com as coisas.
— Realmente. Aquela garota nunca parou quieta no mesmo lugar. Aposto que isso só piorou com o tempo… Mas não precisa se preocupar, darei muitos motivos para tranquilizá-la a respeito de ti.
Depois de discutir alguns detalhes com Rafael, Leonardo olhou a hora e viu que já era meio-dia. Ele havia passado três horas nesse colégio, desde que chegou. Era finalmente hora de voltar para casa.
Despedindo-se de Rafael, começou a formular em sua cabeça o que deveria levar para sua nova vida no colégio.
Assim que Leonardo estava próximo do portão do colégio, algo puxou a manga da jaqueta.
— Onde está a sua educação? Não vai se despedir de mim?
Não era outra senão Charlotte, que, por algum motivo, estava lá há mais tempo que deveria, afinal, enquanto Leonardo estava conversando com Rafael, o teste dela havia terminado há muito tempo.
Desta vez, não estava muito interessado em provocá-la, afinal, parecia que a garota queria falar uma última vez com ele.
— Foi mal, eu não achava que você estaria aqui me esperando — comentou exatamente o que pensou na hora, sem notar se havia algo errado em sua frase.
Ouvindo o que ele disse, Charlotte ficou sem reação, quase estática.
Ambos ficaram se olhando por um tempo, em um clima estranho.
No fundo, Leonardo sentia que comentou alguma coisa que não deveria, mas, também, achava que não disse nada demais.
Já, Charlotte, estava em um turbilhão de pensamentos, tentando encontrar alguma resposta para o que o jovem havia dito.
Então, em gaguejos, falou: — Eu… Eu… Não ficando estava… — Algo não compreensível saiu da sua boca.
— “Eu não ficando estava”…? — Leonardo repetiu, buscando entender.
— Calado! Pelo amor, fica quieto um segundo! — gritou com ele de novo, enquanto estendia a mão para a frente e escondia o rosto com a outra.
Com muita vergonha de não conseguir pensar em uma resposta, ela se virou de costas para ele, deu três passos de distância e parou, tremendo um pouco. Foi uma visão confusa para Leonardo. Nada parecia fazer sentido.
— Charlotte…? Alô, Charlotte? — Ele tentou chamar a atenção dela com alguns estalidos de dedo, mas ela continuou quieta.
Depois de poucos segundos, virou-se, com uma expressão chorosa, por não conseguir pensar em uma resposta a altura para aquele “comentário ultrajante” que recebeu.
— Por que diabos você é tão… Argh! — Ela gritou para fora a indignação e começou a andar rápido para o portão do colégio, deixando Leonardo sozinho ali.
Uma brisa silenciosa passou por ele, conforme observava a garota sumir pelo portão.
— Eu… falei algo que não devia mesmo…
De alguma forma, lembrar das expressões da garota o fez sorrir, após dar um suspiro de alívio. Era algo adorável, por mais que não gostasse dos escândalos exagerados dela.
E, assim, avançou para o portão também, já que devia voltar para casa.
Porém, quando chegou lá, sua visão periférica notou que havia alguém encostado no muro, ao lado de fora. Era Charlotte, esperando de novo por ele.
Leonardo estava prestes a abrir a boca e dizer algo, mas a garota interrompeu de imediato: — Quieto! Eu só quero te dizer que… Ah!… — Esfregou o rosto, meio incomodada. — Que seja! Obrigada e tchau! — Dessa vez, correu até um tipo de limusine preta que estava estacionada, entrando de uma só vez, sem sequer olhar para trás.
Sem tempo para processar tudo, ele só conseguiu estender a mão para a limusine, acenando em um tchau.
— Tchau, Charlotte — falou normal, não querendo deixar ela sem uma resposta.
No carro, a jovem estava com o rosto puramente vermelho e quente, sem saber onde escondê-lo. Mesmo assim, estava encostada no vidro, com a metade superior do rosto olhando o garoto acenar. Isso a trouxe muita alegria.
Notando isso, a chofer perguntou: — Senhorita, fez um novo amigo?
Charlotte só foi responder quando Leonardo se dirigiu para outro lugar. — Algo do tipo… — Sua atenção estava presa nele.
Depois de ter chamado um carro para levá-lo para casa, Leonardo estava exausto e com a barriga roncando.
Tudo o que precisava era de um bom almoço antes de cochilar pela tarde toda e madrugar mais outro dia. Um cotidiano, para ele, digno.
Enquanto fritava alguns nuggets de frango e preparava um clássico arroz branco, sua mente estava relembrando de todos momentos da manhã.
Seu Auct, aceitação e a personalidade única de uma garota em especial. Para este rapaz que odiava sair de casa, foi um ótimo dia de sol.
Depois de servir-se e sentar-se à mesa, estava tudo pronto para degustar dessa maravilhosa alimentação que este magro adolescente havia acostumado a ter.
Pronto para dar a primeira garfada, lembrou que tinha que ligar para a sua mãe. Se não contasse logo para ela, possivelmente, levaria tanto puxão de orelha que pareceria um elefante.
— Nelink, ligar para “Mãe”. — Comandou para o Nelink.
Nesse momento, do seu pescoço, um pequeno objeto redondo saiu e começou a flutuar em frente — ainda assim, distante — do seu rosto. Essa era a câmera de tecnologia de ponta dos Nelinks. Sem barulho e perfeita para não atrapalhar movimentação do usuário.
Um som de telefone saiu do seu pescoço, enquanto um holograma aparecia em sua frente.
Quando foi atendido, uma mulher apareceu, com o cabelo despenteado e maquiagem borrada, com baba escorrendo pelo canto da boca.
Era Elisa, a mãe de Leonardo.
— Hora ruim? — perguntou, percebendo que havia acabado com o sono da sua mãe.
— Eu não vou nem te responder… — respondeu, limpando a baba.
— Ainda está no Japão, mãe?
Ela esfregou os olhos com os dedos, sem se importar em borrar mais a maquiagem. — É. A Associação Asiática precisa que ajudemos em mais duas raides ainda… Hah… Mas por que ligou dessa vez?
— Hoje é aquele dia…
Nessa hora, Elisa olhou para cima, onde ficava o calendário do Nelink. Um som de choque travou na sua garganta, enquanto escancarava os olhos. Ela havia esquecido completamente desse dia. O dia do menino dela.
Em surto, gritou: — E como você foi?! Calma aí, vou lavar o rosto! Um minutinho! Já volto!
Desligou a transmissão de vídeo, deixando apenas o áudio. Foi possível ouvir os estrondos contínuos vindo do quarto, os gritos dela dizendo algo em japonês e sons de coisas quebrando.
Enquanto isso, Leonardo comia tranquilamente, esperando sua mãe voltar. Ele já estava acostumado com essa personalidade dela.
Passaram-se cinco minutos até a transmissão de vídeo retornar. Uma bela, composta e bem-vestida mulher estava no holograma.
O cabelo dela estava preso para trás, bem maquiada, com postura recatada e atitude de uma verdadeira burocrata. Nem parecia que estava terrível há alguns minutos.
— Bem-vinda de volta. — Leonardo a recebeu.
— Então, meu querido filho, como foi o seu teste? — Obviamente esse belo diálogo estava sendo encenado por ela. Afinal, em ambiente de trabalho, ela costumava ser mais séria.
— Não vai me dizer que quebrou alguma coisa importante nesse hotel e a Associação Asiática vai ter que compensar isso, e, nesse exato momento, estão vindo para repor, então, supostamente, é para você estar vestida corretamente para a chegada deles. — Leonardo sorriu cinicamente e finalizou: — Não seria isso, né, mãe?
Toda conclusão que detalhou foi por base na convivência das viagens dela. Ele sabia muito bem quão desastrada era sua mãe.
— Jamais, meu filho. Por acaso, já viu a sua mãe errar antes? Mas, peço que não estranhe caso algumas pessoas entrem aqui e troquem alguns móveis. Enfim, voltando ao teste, como foi?
— Foi bem… Conheci o Rafael Tavares, conheci uma Veneditte… Hm… Muitas coisas… — Ele estava evitando de propósito falar do Auct e Grau, porque sabia como sua mãe reagiria.
Elisa cerrou os olhos e repetiu: — Muitas coisas… Huh… — Só por analisar a expressão do seu filho, sabia que estava escondendo algo. Então, como uma ordem, disse: — Desembucha logo. Qual foi o seu Grau?
Leonardo não teve outra reação além de suar frio e engolir seco.
— D-…. — disse triste. Ele sabia que não podia evitar de contar isso, mas tentou ainda assim. Anos sofrendo com ela, o tornaram fraco contra o olhar amedrontador.
Uma veia pulsante surgiu na testa dela. Ela piscou muitas vezes e, segurando para não falar alto demais e nem surtar, questionou duvidosa dos próprios ouvidos: — Eu entendi certo…? Você disse… D-? Não A-? Nem B-? Leonardo… Espero que não esteja de gracinha comigo.
Ele fechou os olhos como reflexo do tanto de puxão de orelha que já havia recebido na vida e comentou dolorosamente: — Não, mãe… Foi D- mesmo… — Terminando de repetir isso para ela, sentiu a saliva que engoliu descer como uma navalha em sua garganta.
Em oposto, Elisa estava com uma expressão horripilante em seu rosto, como se pudesse arrancar a alma do seu filho só de olhar.