Venante - Capítulo 5
— Vo-você… — Talvez pelo choque ou pela raiva, mas o corpo de Charlotte tremia como se estivesse com frio e a sua voz estava instável.
Antes que a garota pudesse terminar sua sentença, Felipe e Isabela reagiram ao que o rapaz disse: — Desiste?! — Ambos falaram juntos e mais alto que deveriam.
Quando a agente ia falar algo para Leonardo, uma mão áspera e pesada caiu sobre o ombro dela.
— Isabela, peço que não insista com isso. Esse rapaz não pode continuar apenas porque você quer que ele vença. — Um sorriso estava presente no rosto carrancudo e maduro deste homem provecto.
O líder dos agentes, Rafael Tavares, apareceu por causa da luta, interrompendo qualquer prosseguimento de luta que os agentes queriam ver.
Leonardo olhou para o homem de meia-idade e de porte físico quase explosivo, que mesmo de terno, ainda se percebia seus protuberantes músculos apertando o tecido da roupa, e não disse nada.
Não foi difícil o amistoso desses dois tomar a atenção de Rafael, afinal, Isabela falou alto com Leonardo, perguntando se estava bem, fora o jovem não responder, então, como qualquer agente de teste — principalmente de um colégio famoso como este — era preciso estar vigilante à saúde dos adolescentes.
Entretanto, para a sua surpresa, a sequência de acontecimentos o impressionou mais do que deveria. Por mais que fossem apenas movimentos de um amador completo, foram movimentos meticulosamente calculados por um amador de físico horrível.
Em sua cabeça o seguinte pensamento passou: “Um Auct de Previsão? Outro Profeta despertou…?”
Leonardo o surpreendeu por saber exatamente o movimento que o animal faria caso fizesse um especifico movimento. Tudo bem o rapaz ter instintos, mas, ser capaz de acertar a mandíbula de uma fera invocada sem o medo de outro movimento de um Invocador, dizia muito sobre o seu Auct. Era como se basicamente soubesse tudo o que o oponente faria.
Não passou ideia de um Auct de Amplificação de Movimentação ou Aceleração Instintiva nem subclassificação dentro do Auct Físico, afinal, Venantes experientes poderiam dizer quando um Auct era ativo ou não. Ou seja, como não houve mudança na energia durante a investida de Leonardo, implicava que foi por causa de antes.
— Por que… você desistiu…? — Charlotte estava muito cansada também, respirando pesado. Mesmo assim, precisava saber por que o rapaz desistiu assim que a alcançou.
Leonardo olhou de volta para ela com uma expressão duvidosa. — Você esperava que eu vencesse como? Te socando? Como viu… Não posso invocar uma arma ou bichos que nem vocês. Além disso… Hah… eu nunca usaria algo que poderia te machucar.
Inesperadamente, a última parte a fez corar na mesma hora. Porém, ela não havia entendido por completo a intenção da frase. Leonardo quis falar que não machucaria qualquer pessoa só para ganhar um treino prático. Era apenas para mostrar o Auct, não se matarem.
Ainda com o rosto totalmente vermelho, virou a cabeça e começou a falar sem jeito e bem alto: — Tudo bem! Certo! Mas por que tinha que cutucar minha testa?
— Não ficou mais legal assim? — Leonardo coçou a bochecha, sem jeito também. Na visão dele, seria uma maneira muito descolada de ganhar e passar boa impressão.
Charlotte voltou a olhar os olhos dele, meio sem jeito sobre essa ideia. Na verdade, aquela cutucada a enfureceu, mas, nesse momento, achou estranhamente legal também.
Ainda vermelha, ela começou a andar em direção de Felipe, para encerrar o teste, mas falou para o ar, sem olhar para trás: — Você não foi nada descolado.
Por mais orgulhosa e brincalhona que fosse, Charlotte ainda provava ter uma mente mais madura para a sua idade.
Enquanto se afastava, Leonardo respondeu a frase largada com um pequeno sorriso: — Acho que não fui mesmo…
Durante a conversa dos dois adolescentes, Rafael estava lendo os dados de Leonardo, através da informação que Isabela escreveu, além dos documentos acessíveis pelo governo.
— Leonardo Klevic… Klevic? Aquele Klevic? — Dessa vez, Rafael pareceu mais surpreso do que com a luta anterior.
Sem demora, Isabela e Rafael se aproximaram do garoto.
— Prazer, Leonardo — Estendeu a mão para um cumprimento —, acredito que não precisamos nos apresentar novamente. Peço que me acompanhe por um momento — disse Rafael, não soando como um pedido, e continuou: — Isabela, pode se retirar por ora, dependendo das questões de hoje, irei instruí-la a uma nova operação. Está dispensada.
Isabela pareceu impressionada, mas não comentou nada e se retirou do local, sobrando apenas Leonardo e Rafael ao canto mais externo da quadra.
Os últimos adolescentes já estavam terminando seus testes, mas todos se mantiveram na quadra, curiosos que aquela figura chamada de Dragão Verde, Rafael Tavares, estava conversando com um rapaz aleatório. Ninguém havia visto o rosto dele antes, parecendo apenas como desconhecido. Isso despertou uma certa curiosidade e inveja nos jovens, pois, apenas ele tinha recebido essa atenção.
Rafael colocou a mão nas costas de Leonardo e o guiou em uma caminhada para conversar, para que ninguém ouvisse mais sobre os tópicos que abordaria.
— Então, o seu teste de medição diz que seu Grau é D-… Gostaria de saber como você se sente. — Foi iniciada a conversa entre os dois. Rafael não perdeu o tempo para saber os sentimentos do garoto.
— Sinceramente? Além da decepção inicial, não senti nada. Ah! Além de imaginar de que forma a minha mãe me mataria… — Leonardo falou com honestidade. Sua mente estava exausta depois do treino e ficar um dia sem dormir, então demonstrou bem mais reações que de costume. — Mas, depois desse treino… Eu realmente não sei.
Rafael sorriu com a resposta. O jovem se mostrou humilde e não se menosprezava por causa de seu Grau. Isso deu ânimo maior para continuar a conversar.
— Entendo. É uma boa resposta. Então, como está a sua mãe? Aquela moça ainda é tão animada quanto eu me lembro? — Para aproximar mais do rapaz, demonstrou explicitamente que conhecia a mãe dele.
Leonardo levou um pouco de tempo para entender. Essa pergunta foi repentina e não sabia que Rafael e sua mãe eram conhecidos.
— Vocês se conhecem?
— O seu pai também. Um ótimo parceiro — respondeu.
Quando falou sobre o seu pai, um pouco do brilho nos olhos do garoto havia se perdido. — Entendo… Parece que meus pais realmente conheceram alguém importante.
Rafael pareceu compreender a tristeza e disse: — Eu participei daquele raide[1] infernal também. Seu pai foi o herói nesse dia.
Um brilho de surpresa apareceu nos olhos dele, quando ouviu sobre isso. Ele sentia arrepio por todo o corpo, como se fosse a alegria de alcançar algo.
— Fico feliz… Muito mesmo, Sr. Rafael. — A figura de seu pai era muito importante, fazendo-o quase lacrimejar quando escutava sobre. — É muito raro ver outra pessoa falar isso… — Na verdade, além de sua mãe, ninguém havia falado; Rafael tinha sido a primeira pessoa.
— Sabe, aquele homem adorava falar de seu filho. Sempre dizendo que era incrível, como você já sabia falar tão bem, mesmo sendo praticamente um bebê. Você foi o motivo de muitas dores de cabeças para os outros. — Ele quis amenizar o clima triste, trazendo um assunto engraçado.
Leonardo apertou os olhos com os dedos, para não deixar uma lágrima descer e forçou um sorriso. — Não se preocupe… Ele também dava muita dor de cabeça para mim. — No fim, uma risada saiu de seu nariz, leve e curta.
— Sei que Luiz está orgulhoso de ti. Se estivesse aqui ainda, estaria chorando na arquibancada, gritando por você. Ele era bem exagerado… — Rafael suspirou, imaginando a situação e logo sua voz carregou um tom mais pesado. — Mas, agora, preciso te perguntar algo.
— Sim? — Pela repentina mudança de tópico, ele se assustou e imaginou que seria algo importante.
— Por que desistiu? Sei que não havia necessidade em continuar, mas, se fosse um embate real, você ainda desistiria?
Ele pareceu intrigado com essa questão, então, respondeu conforme imaginava: — Charlotte e eu somos inexperientes. Só havia duas conclusões se fosse uma luta real…
Rafael esperou o garoto desenvolver a resposta, segurando sua questão verdadeira.
— A primeira, sem dúvidas, seria eu sendo comido vivo. Haha… — Coçou a testa, sem jeito, e voltou a explicar, enquanto movimentava bastante as mãos: — A outra seria eu acertando-a e acabar perdendo… Eu comecei chocando-a de início, possivelmente isso faria os comandos dos invocados enfraquecer. Como ela só poderia lançar um ataque por vez, havia como sair por cima, mesmo desistindo no fim…
Leonardo demonstrou que obviamente não falaria das simulações, mesmo para Rafael, não porque era um grande segredo, mas porque levaria muito tempo para explicar.
Mas, o que não contava, a reação de Rafael foi de cerrar os olhos. A última frase mudou todo o sentido da ideia geral que estava tendo.
— Sinceramente, eu acho que nem conseguiria acertar ela, só evitar os animais foi horrível! Meu corpo tá doendo até agora… — Ele parecia querer explicar ainda mais, já que estava animado com a situação, porém, a voz do agente se sobrepôs.
— Então, você contou com a inexperiência dela no combate e controle para que conseguisse ficar frente-à-frente?
— Basicamente…?
— Mas, para chegar nesse resultado, você não teve mais que 30 segundos, rapaz. Por acaso, previu essas conclusões com o seu Auct? — A questão real veio à tona. Contudo, quando notou que falou diretamente a pergunta, Rafael, recompôs sua atitude e adicionou: — Isso se quiser comentar. Tudo o que você disser, manterei em segredo… Eu prometo.
Na verdade, o jovem sabia que seu Auct era muito único, mas era só isso. Com seu Grau D-, o potencial real desse poder nunca seria mostrado de verdade. Então, imaginando o por quê de Rafael se interessar ao ponto de querer saber abertamente, ele pensou: “Será que ele tá pensando que posso prever o futuro?”
Ele deu uma parada, olhando para Rafael, pensando um pouco a respeito e disse: — Sr. Rafael, não precisa ficar assim. Até porque, sei que você, alguém tão famoso e poderoso, não teria motivo para me prejudicar. Mas… Eu não previ aquilo…
O grande agente queria questionar mais profundamente, mas deixou o rapaz desenvolver sua resposta.
Leonardo parecia com certa dificuldade em descrever o essencial, então levou um tempo para a primeira palavra sair de sua boca.
— Eu… fiz aquilo acontecer daquele jeito. Não vejo o futuro, mas… é algo perto disso…? — Nem ele tinha certeza de como colocar a ideia em ordem. — Eu pude ver muitas possibilidades de movimentos da Charlotte. Muitas e muitas vezes…
Rafael permaneceu quieto e pensativo a respeito. A descrição soava como um tipo de previsão, entretanto, sabia que o jovem não conseguiria detalhar mais do que isso. Talvez fosse complexo demais, ou faltava experiência.
Vendo que o garoto queria continuar a falar, estendeu sua grande mão sobre o rosto dele, interrompendo-o.
— Não tem necessidade de continuar, Leonardo. Agora, só preciso que responda duas últimas coisas… — Deu uma pausa, para deixar o adolescente preparado, e perguntou: — Você já ouviu falar ou leu sobre algum Auct como o seu?
Como um aficionado por Léric, este garoto sabia sobre muitos Aucts estranhos e novos, mas, quando parou para pensar sobre o seu próprio, percebeu que apenas os Aucts Singulares como Previsão e Possibilidades batiam com o seu.
— Não querendo exagerar, mas poderia ser que meu Auct seja tão incrível quanto o do Johann Edwards e Timothy Belikov…? — As mãos dele começaram a tremer, falando de figuras de renome. — Eu não sei o que dizer…
— Não conheço outro como o seu — complementou Rafael em sua análise. Como alguém famoso e fazendo parte da Associação das Américas por décadas, ele havia interagido com figuras incríveis e conhecido muitos Aucts únicos. — Nem o Profeta e o Vidente, que citou, se encaixam no seu caso. Possibilidades poderia estar perto… Mas esse Auct precisa de um Grau alto para poder ativar e uma situação muito específica para operar corretamente…
— Então… — Leonardo ia comentar algo em cima, mas foi interrompido no caminho.
— É como imagina. Você é portador de um Auct Singular incrível.
Ao ouvir isso, ele sentiu alegria. Por ser um adolescente, acreditava que ser diferente das massas era uma verdadeira qualidade, então estava de fato feliz com essas palavras. E o “incrível” no fim da frase foi a cereja do bolo.
— No entanto… você não se qualifica como um Venante. E nem possui um Grau para mostrar o brilho do seu Auct. — Completou Rafael, esmagando o bolo e com toda euforia do garoto.
Não havia contestação para isso. Ele era muito fraco. Usar apenas 30 segundos era o seu limite, se fizesse mais, talvez o machucasse fisicamente. Mas havia mais o que considerar além das suas capacidades.
— Eu sei, Sr. Rafael… O que fiz hoje foi apenas um produto de muita sorte.
Sua humildade em admitir as verdades.
Rafael sorriu de leve, gostando ainda mais da sinceridade dele. Ele realmente gostava de pessoas que compreendiam muito em pouco.
— Sim, você é fraco, inexperiente, incapaz, sem capacidades físicas e motoras. O que fez hoje foi um total resultado de sorte, com muitos riscos… — Começou a criticar pesadamente o adolescente.
Leonardo não sabia nem onde colocar o rosto para esconder seu desânimo por ter que escutar isso tudo. Foram poucas vezes que foi criticado dessa forma, fazendo seu coração pesar.
Então, com o rosto para baixo, ouviu a mudança de tom pesado do agente para algo tranquilizador, enquanto dizia: — Contudo, vi a sua resposta no teste da Isabela… Além da sua pessoa hoje. — O jovem ergueu a cabeça para escutar mais claramente. — Acredito que você possa mudar essa sorte cheia de riscos, sua fraqueza, inexperiência e incapacidade para muito além do que imagina. Não deixar que apenas este amistoso seja sua única marca de algum sucesso… — Colocou a mão no ombro do garoto. — Agora, preciso perguntar uma última coisa, Leonardo.
— Sr. Rafael…
Leonardo não sabia como colocar em palavras o que estava sentindo. Nunca imaginou captar expectativas dessa figura reconhecida pelo país inteiro, formando uma alegria e ansiedade em sua barriga.
— Quero te oferecer a oportunidade de estudar neste colégio Marvente. Com o meu patrocínio por trás, mesmo sendo um Grau D-, você ainda poderia se matricular aqui. Sei que pode ser pesado para você, que pode sofrer por causa dos outros alunos, mas, ainda assim, acredito que esse colégio te oferecerá mais oportunidades para florescer.
Ele deu uma longa pausa, deixando o garoto ter seu tempo para assimilar. Quando viu o jovem apertar os punhos, decidiu que era hora de fazer a pergunta.
— Você aceitaria essa oportunidade?
Notas:
[1] Raid, ou Raide em português, na obra, é um(a) ataque/operação dos Venantes aos Portais para fechá-los, evitando que os monstros saiam.