Venante - Capítulo 4
Somente Leonardo sabia o que havia acontecido naquele curto espaço de tempo, que, para ele, levou horas.
Depois que gritou para ativar o Auct, sua Energia correu direto para a cabeça. A sensação foi indescritível. Tudo o que enxergava em sua frente era um mundo cinzento, com muita névoa ao longe. Parecia sem som, movimento, tempo e vida.
Ele estava preso, estático, lá. Não conseguia gritar. Sem qualquer liberdade naquele mundo. Não teve outra reação além de procurar razão em tudo o que acontecia, tentando não entrar em pânico e desesperar.
Seus olhos estavam presos em uma direção; Apenas Felipe, Isabela e Charlotte estavam na sua frente, parados, e mais ao longe estava tão neblinado que não se podia ver além.
Durante alguns poucos minutos, pensando nas possibilidades, já havia determinado que foi o seu Auct tinha feito isso.
Com essa certeza, sabia que podia sair do mundo quando desativasse o Auct, o que diminuiu muito sua ansiedade.
“Eu parei… o tempo? Não… Nunca houve um registro de algum Auct assim…”
A única coisa que podia fazer ali era analisar e tentar encontrar uma solução.
E, após muitos minutos, viu uma mudança no ambiente. A boca da Isabela estava se movendo, quase imperceptível, mas estava, e era muito lento.
Quase uma hora se passou assim, parados, com apenas Isabela se mexendo de fato. Isso era a confirmação que precisava para ignorar a ideia que seu Auct parava o tempo.
“Talvez eu tenha mudado a forma como sinto o tempo passar? Mas isso não explicaria eu ver as coisas mais lentamente ainda, ao ponto que nem consigo me mexer…”
Toda essa situação bizarra expulsou o sono que sentia desde que chegou no colégio.
“Certo… Esse é o meu Auct. Ele não envolve o tempo… Então precisa funcionar de outra forma.”
Ele começou a formular hipóteses. Por mais que não fosse o mais estudioso, ainda era uma área que conseguia aplicar sua boa dedução, afinal, gastou boa parte da vida lendo e vendo sobre Aucts. Então, pelos próximos minutos, continuou a testar outras formas de usar seu poder.
Durante quase outra hora passar, com Leonardo penosamente contando o tempo, conseguiu alguma resposta do seu poder.
Mesmo preso no mesmo lugar, de olhos abertos, conseguiu encontrar uma forma de se mover.
“Não é mais meu corpo se movendo aqui, mas a minha mente…”
O que se movia de fato era a sua consciência. Ele era capaz de levar seus “olhos” para todos os lugares em seu campo visão, conseguindo observar de diferentes perspectivas… Podia enxergar as costas de Charlotte, de olhar nos olhos de Isabela e até de olhar de frente para o seu corpo estático.
Sua mente sentia como se estivesse partida em duas, mas, de alguma forma, não causava qualquer estranhamento, como se sua mente fosse capaz de assimilar tudo isso como normal.
Foi dado um pouco de liberdade, mas de uma forma diferente.
“Então esse é o meu Auct? Perfeito para investigadores… e tarados. Mas pra que essa função de ‘atrasar’ o tempo… Preciso entender logo…”
De certa forma, a sensação de cansaço mental e físico, que sentia por seu corpo fora do Auct, era como um sentimento de urgência aqui, quase como um perigo iminente.
Havia uma coisa que estava incomodando Leonardo e era o mundo cinza e a névoa. Esse mundo o dava estranheza de algo e quando passou a sentir urgência, começou a dar mais e mais olhadas nisso.
Era perceptível que todo esse mundo tinha linhas. Linhas formavam tudo e quanto mais havia movimento — como Isabela indo até ele e a energia das criaturas da Charlotte se movendo — mais se mostravam visíveis.
“Parece desenhar o mundo e o que está acontecendo nele… Só que muito devagar.”
Pensando dessa forma, Leonardo sentiu quase uma lâmpada acender em sua mente. Havia entendido algo.
“Será que posso ’desenhar’ aqui?!” Com essa suposição, mudou a maneira de pensar e decidiu usar esse momento para se desenhar.
Como imaginava, as linhas do chão começaram a levantar, dando relevo e volume, como se sempre estivesse ali.
Um segundo corpo dele surgiu naquele lugar. Era idêntico.
“Isso… Cara…” Ele estava sem palavras. Era tão bizarro quanto incrível.
E, para completar, sentia que estava tendo três campos de visão e entendia ao mesmo tempo os três.
Diferente do seu corpo estático, esse novo corpo podia se mover e falar.
— Ah, mano… Agora tá tudo fazendo sentido. Esse mundo não tem nada de desenhado… — Colocou uma mão sobre a boca, com a surpresa do novo compreendimento.
Sempre houve um termo melhor para isso e, como um jovem viciado em jogos de realidade virtual, Leonardo sabia exatamente como se referir a isso.
— Simulação… Porra… Meu Auct tá simulando isso tudo… — Sua animação superou muito o que esperava, soltando até um palavrão de tão impressionante que era para ele.
Todas sensações e sentimentos estavam normais, afinal, era ele ali, tão real quanto o “verdadeiro real”. Ele respirava pesado de euforia contida.
“Quanto tempo eu tenho para continuar aqui… Não deve ter passado de duas horas ainda…”
Havia passado um pouco mais de duas horas, na verdade. Tinha perdido muito tempo testando a consciência e seu corpo simulado.
Até antes de ativar seu Auct, ele decidiu desistir de imediato do amistoso, mas algo havia mudado agora. Não era confiança, mas vontade de se testar.
“Se eu posso me simular… Será que também posso fazer isso com…” Sua visão caiu direto em Charlotte, que parecia estar com dificuldade. “… ela?”
Dessa forma, uma segunda adolescente surgiu, com seus animais do lado.
“Só que ela parece meio… diferente…”
Essa Charlotte simulada não tinha qualquer expressão de dificuldade, como se não sentisse nada.
“Parece que só eu posso me simular de verdade aqui…?”
Depois de notar isso, o jovem ignorou e decidiu lutar contra ela. Era hora de ver o que mais o Auct era capaz.
Uma longa hora se passou rapidamente, com muitos testes e descobertas.
Leonardo estava sorridente, ofegante e cansado.
Ele havia se colocado contra aqueles animais. De primeira, se viu sendo arrasado. Nem precisou dos dois animais para derrotá-lo, um era suficiente para deixar seu corpo cheio de arranhões profundos. E para piorar sentiu a mesma dor que sentiria na vida real.
Nesse mundo simulado, não havia Isabela ou Felipe para deter ferimentos graves, então a primeira experiência de combate quase o traumatizou.
A luta não durou mais que alguns segundos, com ele pedindo mentalmente para os animais pararem de atacar. As coisas nesse mundo funcionavam com base na sua mente, então poderia interromper a luta, mas por causa da dor e choque da experiência, demorou um pouco para lembrar.
Contudo, essa foi a primeira tentativa.
Na segunda, decidiu separar a consciência do corpo e ver como funcionaria.
O resultado foi quase o mesmo. A diferença foi que, no início, Leonardo evitou o primeiro ataque do cão, pois já tinha passado pelo mesmo.
Não houve mérito, mas começou a entender cada vez mais seu Auct.
A terceira, quarta, quinta e mesmo na sexta, todas foram derrotas.
Era óbvio que, por ser apenas um adolescente acostumado a ficar no quarto, sedentário e que odiava esforço físico, não tinha qualquer qualificação para lutar contra dois monstros.
E, durante suas sessões de tentativas, quis acelerar a compreensão, criando outro corpo para lutar com mais outra Charlotte simulada. Sua consciência se repartiu outra vez, ainda não causando estranhamento, como se visse e vivesse em diversos corpos e aprendesse o mesmo que todos.
Diferente das outras vezes, essa nova Charlotte iniciava o ataque diferente da primeira, que Leonardo pensava ser padronizada.
“Cada corpo simulado age de diferentes formas? Então, por que toda vez que a primeira iniciava a luta era o mesmo padrão…”
Essa foi a questão levantada. Então, decidiu criar mais e mais simulações. Sua mente dividiu em uma dezena, nesse ponto, sentiu um estranhamento, como avisasse que não deveria fazer mais do que isso. Fora esse sentimento, ainda era o mesmo que antes, sentindo ser capaz de absorver o que todos passavam.
Ele mal viu o tempo passar, mas a urgência parecia ter aumentado ainda mais por causa dessa nova experiência de criar uma dezena de si.
Testou de diversas formas. Com ele mais próximo à Charlotte, com ele mais distante para poder correr dos animais. Simulações de situações não paravam de acontecer ao mesmo tempo.
Ele nunca se considerou esperto ou multitarefas, então essa situação de entender e viver tantas coisas ao mesmo tempo era incompreensível. Ser capaz de controlar diversos tipos de ações no mesmo instante estava longe do seu natural. Porém, começou a notar que, a cada nova tentativa, ficava mais preparado de prever o próximo movimento da oponente.
Enfim, Leonardo finalizou as simulações, não porque achava que era capaz de derrotar Charlotte, mas porque algo lhe dizia para desativar o Auct logo.
Nesse espaço simulado, sem som e vida, Leonardo suspirou.
— Quem diria… Hah…
Leonardo estava realmente cogitando tentar derrotar alguém com Grau B+, enquanto estava ainda no D-? Nem sabia de onde tirou essa confiança, mas sabia que se conseguisse esse feito, poderia trazer alguma prova de capacidade.
Sem notar, após entender seu Auct, mesmo não encontrando algum sucesso em suas simulações, ele nunca deixou de sorrir. Não tinha percebido quando, mas passou a gostar ainda mais desse sentimento. De fato, as suas vidas mudariam após ativar o Auct.
E, voltando ao teste de Grau de Energia, o pior resultado, em sua visão, seria ter um Grau C-, mas, no fim, foi muito pior. A sua mãe não parava de surgir nos pensamentos, quando lembrava que tinha que contar desse resultado.
“Pelo menos, se eu vencer isso, ela vai me dar um desconto…” Tal pensamento ressoou em sua cabeça por um tempo. Mas logo lembrou quem era a sua mãe. “É o que espero…”
Contudo, se não vencesse, além de depender dela quase pelo resto da vida de adolescente inteira, ainda seria motivo de zombaria.
Além disso, essa vitória não só representaria sua capacidade, para ele e sua mãe, mas também estaria registrado o feito. Ele sabia muito bem que, com um Grau tão baixo quanto o dele, dificilmente arranjaria um trabalho decente nesse mundo movido à talentos. Ou seja, queria alguma garantia de futuro, visto que não poderia ser um Venante.
Era hora de agarrar essa chance única e transformar em um futuro decente.
Quando notou, Isabela já estava do seu lado, tocando em seu pescoço.
“Desativar” pensou depois de refletir se deveria continuar com sua decisão.
— Leonardo? Está me ouvindo? — A voz de Isabela foi ouvida.
Um cansaço inundou Leonardo de uma só vez, mas sua convicção não havia desmoronado com isso.
— Está… Hah… Tudo bem… Hah... Podemos continuar — disse enquanto encarava Charlotte e retirava a mão de Isabela.
Ela estava com a testa um pouco suada, provando que era difícil manter aquelas duas invocações ativas por tantos segundos, mas, por causa do seu Grau alto, foi capaz.
Depois de negar o conselho de Isabela, Leonardo olhou para Charlotte e disse em voz alta: — Está… preparada!?
— Para ver você perder? Sim.
Ambos sorriram um pouco e escutaram a Isabela e Felipe declararem: — Comecem!
No mesmo instante, como um louco, Leonardo começou a correr com todo o fôlego que ainda restava, direto para as invocações. Era quase cômico como corria, pois não havia um pingo de noção atlética. Parecia que era apenas um desesperado.
Entretanto, para Charlotte, que conhecera em primeira mão o jeito despretensioso e preguiçoso dele, esse tipo de ação foi algo desconcertante, deixando-a sem reagir como deveria.
Isabela e Felipe analisaram os movimentos dele, para ver se algo estivesse fora do comum.
“Isso…” Leonardo pareceu perceber algo estranho, mas não conseguiu completar seu pensamento, pois o enorme felino começou a avançar para ele.
Parecia que ambos se acertariam de frente, mas, assim que o animal saltou visando o peito do garoto, não acertou ninguém.
Para a surpresa de todos, Leonardo previu isso e havia se atirado por baixo, projetando a perna para frente, literalmente fazendo o movimento comum no futebol; um carrinho!
Depois de tantas vezes tendo que desviar em suas simulações, esse carrinho não parecia tão horrível quanto a primeira vez.
Nesse momento, Charlotte moveu as mãos de uma forma singular, como se indicasse algo.
“Agora vem o cachorro… Mas por que está tão lenta?”
Por algum motivo, Leonardo achou a atitude de Charlotte muito esquisita. Mas, durante o carrinho, não podia prestar atenção nos próprios pensamentos.
Nesse ponto, viu o cão partindo da sua direita.
“Isabela?!” Essa cena de perto era aterrorizante, então quase quis desistir e pedir para Isabela ajudá-lo.
Mas, com um único braço e ajuda do movimento de ombro, forçou sair do movimento contínuo do carrinho, rolando para o lado esquerdo.
Com essa ação, era quase um grito para que aceitasse o bote do cão.
No entanto, diferente do que esperavam, assim que o cachorro ia mordê-lo, Leonardo juntou as mãos abertas e acertou, por baixo, o queixo do animal, forçando sua cabeça para cima e parando a mordida.
Era quase uma previsão do movimento minucioso da boca do animal.
Como ele sabia que a boca do animal estaria ali naquele momento, enquanto ainda estava se recuperando do rolamento?
Essa pergunta passou na cabeça de Isabela e Felipe, fazendo-os enrugar a testa.
Ele se levantou sem equilíbrio — era quase um bêbado se levantando, não tinha classe alguma. Charlotte estava em choque, sem conseguir dar uma ordem para seu cão.
Quando percebeu, Leonardo, desequilibrado, estava na sua frente.
A jovem estava boquiaberta, sem palavras para o descuido e imprudência dele. O choque foi tão grande que suas invocações estavam sumindo, pois afetara a assistência de Energia deles.
Leonardo, apesar do banho de suor e cansaço, tinha um sorriso no rosto. Seu nariz não parava de expirar pesado o ar, e, com o dedo, tocou a testa de Charlotte, fazendo-a fechar os olhos.
— Eu desisto.
Essas foram as palavras que saíram da boca dele.