Venante - Capítulo 29
Uma voz robótica soava dos fones de ouvidos, enquanto cenas de um combate em um ambiente escuro eram reproduzidas no holograma do Nelink.
— Como pode ver, essas são as gravações dos combates que você realizou contra as Anomalias. E esse documento serve para que, a partir de agora, comece a corrigir aos poucos os problemas principais.
Leonardo tinha acabado de iniciar o documento escrito pelo Rafael. Como o último já tinha avisado do que se trataria, não tinha muita surpresa no conteúdo.
Dessa forma, abriu um bloco de notas ao lado e decidiu que escreveria as dicas conforme escutava — era como gostava de fixar as coisas.
— Acredito que se lembre das correções principais que citei durante o treino.
O garoto assentiu devagar e pensou: “Não deixe de usar o Auct. Se sabe que o oponente é mais forte que você, seja imprevisível. Um ataque certeiro é o melhor caminho para mim. Se você tem Energia baixa, distribua nos pontos corretos do corpo…”
— Então, queria relembrá-lo do elemento surpresa, que é algo que você tem feito bastante. Devo elogiá-lo por utilizar pedaços de roupa para criar ondulações no lago para confundir o inimigo… — O garoto apertou os punhos, sabendo como terminaria essa frase. — Mas do que adianta se vai ser derrotado no instante seguinte?
— E eu tenho culpa disso?! — gritou inconsciente.
Nesse momento, o motorista, assustado, deu uma freada. — Senhor… está tudo bem?
— Hã? Ah! Desculpa, é que eu…
Na hora do susto, pausou a leitura.
— Não precisa se explicar. Só peço que não grite tão do nada; eu já estava achando que estava sozinho aqui, você não falou nada até agora. — Terminou por dar uma risada e voltar a dirigir.
— Foi mal, mesmo.
Como tinha acabado de sair de uma situação tensa, estava óbvio a mentalidade perturbada. Na verdade, sentia como se tivesse ainda um caroço preso na garganta. Entrar em um Portal, matar Anômalos e mais…
Assim, continuou o documento.
— Você tem problemas fundamentais, desde o pouco treino da Energia até a terrível saúde. Mesmo que a sua mãe não tivesse me passado seus dados médicos, já saberia do seu péssimo hábito de alimentação e zero esforço físico.
“Eu já sei disso…”
Por ser um adolescente, era mais do que comum ter a noção e faltar o empenho em seguida.
As preocupações de Leonardo antes do Portal eram como as de qualquer outro jovem em busca de ser um Venante: estudar, pensar no futuro e curtir o momento. Por mais que o futuro passasse na mente dele, sempre lhe faltou algo.
Algo que mudaria por completo.
O garoto de olheiras se lembrou de algumas promessas que foram feitas quando começou a estudar na Marvente, das mesmas que repetiram em sua cabeça depois de ouvir o diretor discursar.
Por mais que a luta contra o Gustavo tenha mudado um pouco seus hábitos, um mês dificilmente faria diferença.
“Já estou me exercitando por trinta minutos antes de jogar, parei de comer alguns lanches também…” Ele buscava amenizar o problema, mas entendia que não seria o suficiente isso.
— Com o treino no Portal, consegui fazer uma pequena lista de mudanças para você, que serão obrigatórias de agora em diante, e uma outra de opiniões, até porque está chegando as inscrições de cursos na Marvente, correto? Como são opiniões, você não precisa acatá-las, mas recomendo que considere.
Então, o documento começou a reproduzir cinco vídeos do combate contra as Anomalias. Embaixo de cada vídeo estava uma frase dedicada.
“Falta de precisão com a Energia. Falta de agilidade e reação. Despreparado — não possui técnica. Capacidade física inexistente.”
Cada frase atravessou o coração do garoto, quase o fazendo apertar o peito.
Por mais que já tivesse sido criticado pelo Rafael antes, ainda era ruim de ouvir de novo e com mais ênfase; com até vídeos dos problemas básicos dele.
Além disso, Leonardo estava indignado com o último.
Era óbvio que não tinha muito vigor, mas “inexistente” era algo exagerado. O fazia questionar se o Rafael estava comparando o corpo de bodybuilder dele; só assim poderia dizer que era inexistente perto daquele provecto enorme.
A voz continuou após algum tempo: — Quando te conheci, eu falei que você era fraco, inexperiente, incapaz, sem capacidades físicas e motoras. Que tudo o que tinha feito era um produto de sorte, com riscos altíssimos… — Uma pausa surgiu, deixando o garoto respirar fundo. — Contudo, no final do nosso treino, você provou pela primeira vez que não depende só da sorte.
Uma expirada forte surgiu, tirando todo o peso de cima do peito dele.
Nos vídeos que reproduziam os problemas do menino, uma das frases ficou em destaque.
— Sua Energia é muito mais do que só provedora do Auct; é ela que nos faz capaz de mover mais rápido, socar mais forte, ouvir melhor, ver com mais clareza. A partir de agora é seu dever desenvolver melhor o uso da sua Energia. E não esqueça que, como você tem pouca, deve utilizar da maneira mais sábia contra os oponentes.
O vídeo se fechou e dois surgiram: Agilidade e físico.
— Por mais que a Energia possa te fazer mais rápido e te permita reagir melhor, a agilidade e reação é um fator do corpo humano, não um produto que deve ser corrigido apenas com Energia ou Auct, mas melhorado com esforço. Por conta disso, juntei esses dois problemas em um só, para que você corrija agora em diante.
Leonardo estava escutando tudo isso com um humor abatido, seu rosto estava claramente abalado.
— Deixei uma lista de exercícios e treinos iniciais nos anexos do documento, além de uma correção da sua alimentação de agora em diante.
Sabia que viria isso uma hora ou outra e até sentia que estava pronto, mas quando foi até a parte que listava os treinos e alimentação, era como se o mundo fosse destruído.
— O seu Auct pode ser incrível, uma ótima garantia, eu diria, mas não é dele que deve depender. É o Auct que deve depender de você. Não desperdice esse poder com pouco empenho.
“Certo… Obrigado, Rafael.”
Leonardo já tinha escutado isso no Portal antes. Na verdade, já tinha escutado até de Elisa.
O Auct era um poder feito para melhorar algo em você, mas jamais deveria deixar ele definir o que é melhor para você; era uma das reclamações que escutava bastante.
Sem nem mesmo saber qual seria o poder do filho dela, já queria deixar claro que um Auct não era o pico de algo, mas o início de algo novo — que deveria crescer com a pessoa, não crescer a pessoa.
Talvez fosse senso comum dos Venantes mais experientes, ou uma filosofia dos Venantes brasileiros, mas sentia estar correto.
Estava convicto de que deveria mudar para aproveitar com plenitude o poder que foi lhe dado.
— Por fim, seu despreparo. Isso não é exatamente um problema por agora, já que nem começou a treinar. Porém é preciso aproveitar agora que é jovem. Sem técnica, você não será capaz de utilizar a imprevisibilidade como gostaria. Além de muitos outros fatores. Então, gostaria que você pensasse bem no que praticará. Se não tiver algo em mente, deixei algumas sugestões na área de opiniões.
Até estalou o pescoço, aliviando a tensão da parte mais tensa do documento. Era raro fazer isso — por conta de ser uma mania de Elisa — mas precisaria de vez em quando.
A voz robótica começou a falar das primeiras opiniões de Rafael sobre todo o treino.
Foi desde o começo, falando de formas para se acalmar antes de lutar, como deveria praticar alguns exercícios que ele tinha afinidade e acreditava que faria diferença para o adolescente.
Até que chegou no ponto que o jovem esperava.
— Veja bem, rapaz, não pretendo me meter nas decisões do clube que escolherá, mas é preciso que você aproveite a oportunidade, senão será deixado para trás. Escolha um clube do seu interesse para a noite e um clube de treino pela manhã.
“Dois clubes? Até posso… mas vai ser difícil de manter as jogatinas no Ambição Real.”
Leonardo não se preocupava tanto com aulas teóricas, já que estava bem no início, mas o que complicava era o tão amado jogo e as aulas práticas que deveria comparecer pela manhã.
“E eu vou ficar todo acabado pela manhã…”
Se treinasse pela manhã, nem sabia se estaria em pé pela tarde e noite.
Ele tinha noção que um combate de dois minutos já o deixava acabado, então o que um clube de duas horas seria capaz de fazer.
— Eu não recomendaria que escolhesse um clube de combate próximo. Para você, que seria uma das pessoas na retaguarda em uma raide, seria loucura ir para cima dos inimigos, pelo fato do seu Auct não lhe dar auxílio no combate. Mas…
“Mas…” O coração dele estava batendo forte.
Por mais que considerasse com peso tudo o que Rafael dizia, o clube de combate que o garoto queria era uma escolha pessoal, não poderia ser do agrado do provecto, mas era uma coisa importante para ele.
— Nessas primeiras fases de treino, é mais aconselhável que aprenda a se defender das Anomalias de combate próximo.
Por mais que tivesse estranhado o início, o restante ofuscou a dúvida, fazendo o jovem controlar o sorriso bobo que tentou nascer.
— Eu recomendaria mais o clube de MMA, caso você queira defender dos seus colegas. Mas, por conta do seu Grau ser tão baixo, contra Anomalias, a escolha é para clubes focados no uso de uma arma. Nesses caso…
A voz continuou a listar os clubes envolvendo armas específicas que tinha na Marvente e como afetaria com o estilo da Simulação, com prioridade na sobrevivência do Leonardo.
Por sorte, o Dragão Verde não comentou ser uma má ideia treinar com arma, porque a mente do jovem estava formada desde criança sobre isso.
Depois de um bom tempo ouvindo as opiniões, chegara em outro tópico do documento.
— O que está nesse documento é altamente sigiloso e deve se manter dessa forma. Após ler, marque a opção de extermínio desse trecho.
Não era o que estava escrito, mas um aviso do próprio leitor do Nelink.
— Leonardo, quando estávamos no carro, comentei sobre alguém foi no colégio atrás de você, correto? Como já deve concluir, não encontramos essa pessoa ainda. Por mais que pareça um problema, não é. E, tenho que te falar a verdade: possivelmente, essa pessoa se encontra escondida no colégio Marvente.
Nesse ponto, o garoto engoliu em seco.
Ele sabia que existia alguém atrás dele, mas estar no mesmo local ainda… Era como uma lâmina invisível estivesse próxima do pescoço.
Sua respiração ficou errática, quase querendo ligar de volta para o Rafael ou sua mãe.
— Mas não se preocupe. Eu já te prometi segurança e que ninguém iria tocar um dedo em você. Esse “espião” não vai se mostrar tão cedo e deve ter pensado que concluiu a sua missão, então não vai fazer nada, desde que não tenha motivo para isso.
— Motivo…? — murmurou inconscientemente.
— Desde que você não passe a ideia de ser um Singular, quem quer que esteja atrás de você não vai fazer um movimento impulsivo. Para ele, a missão de ter interceptado o Singular já deve estar completa, então a ideia aqui é manter essa fachada, tanto ele quanto nós.
— Então eu não posso…
— Ou seja, rapaz, não pode sair falando do seu Auct por aí e nem utilizando de qualquer jeito. De acordo com a informação falsa que criei…
A matrícula do garoto apareceu no holograma, com algumas partes destacadas.
“Sou um Grau C- no colégio? E… um Amplificador Sensorial? É, até que faz sentido… as minhas reações aos eventos parecem ser mais de última hora e não como uma premeditação.”
— Você deve passar essa imagem. Tente evitar confronto contra as pessoas ou simule em outros momentos, mas não de última hora. Se esse espião notar essa estranheza inicial das suas ações, pode concluir facilmente que esconde algo.
Estranhamente, ouvindo as precauções, o jovem sentiu que não era tão perigoso quanto imaginava. Afinal, havia tantos alunos no colégio, e, desde que ele não fizesse algo chamativo, ninguém prestaria atenção.
— Mas, como imagino que a sua mãe irá me alertar, caso eu fique colocando regras demais na sua vida colegial, saiba que não há problema em contar para pessoas que realmente confia. E, caso seja descoberto, tenho maneiras de te proteger ainda. Só peço cautela.
Leonardo assentiu com o pedido. Ele sabia que não deveria contar para os outros, mas se alguém perguntasse antes, poderia ter dito a verdade sem saber das consequências.
“Será que ele está me espionando tão de perto assim?”
A mente do rapaz estava organizando toda a informação que obteve desse dia. Era coisa demais, e um tipo de sentimento de desconfiança nascera ali.
Já bastava ter alguém querendo dar o “sumiço” nele, agora também considerava que existia alguém observando todas as ações que tomou nos últimos dias.
— Se lembra do que eu falei no Portal? Que, por mais que o espião seja motivo para te ensinar a se defender, esperava te deixar crescer por conta própria. No entanto, a sua mãe e eu decidimos que seria melhor que eu levasse você para treinar a cada dois meses em um Portal. Por conta disso, te chamei no dia tão de repente…
“Espera… A minha mãe e o Rafael? Por que isso? E por que não me contaram antes?”
— Você está muito atrasado em comparação com os outros alunos, rapaz. Você precisa crescer mais rápido do que qualquer outro, para que nunca seja ameaçado como está sendo agora. Desculpe deixar para esse momento, mas precisava que você focasse no treino e não nas dificuldades.
“No final, eu não tenho direito de nada, não é? Eu teria que ir para aquele Portal querendo ou não…”
Era amargo. Para ele, que vivera sozinho por tanto tempo, vendo poucas vezes seus pais, era como tratá-lo como um animal. Por mais que entendesse, era incômodo não poder viver do jeito que queria. No entanto…
“Eu sei. Eu sou um Venante agora.”
Ele não queria assumir, mas agradecia a preocupação dos dois. Sentia que era mais importante, mesmo sem ter o controle que tinha antes.
— Verificarei seu treino e condição no próximo encontro, para ver se seguiu tudo certo. Espero que entenda nossas preocupações, rapaz.
O reprodutor finalizou a última frase, ativando um aviso:
“O trecho foi lido, ativar o extermínio?”
Só havia duas opções: sim e ouvir novamente. E, se escutasse novamente, não haveria o aviso, sendo só exterminado de vez.
Ele se recostou no banco e disse: — Sim.
Faltava mais quinze minutos de viagem ainda, dando tempo para o garoto refletir sobre aquilo tudo. No banco de trás, Leonardo apertava os lábios, sentindo a amargura desse mundo em sua boca.
Era domingo à noite, perto das dez horas, e o display da porta do quarto C-03 teve o brilho verde, aprovando a entrada.
Leonardo entrou no seu dormitório depois de uma longa viagem. O aroma que estava acostumado dos perfumes das duas meninas foi sentido.
Em sua frente, no tapete de yoga, uma garota, com a franja colorida e uma pinta embaixo do olho esquerdo, estava com os dois pés na nuca.
Agatha olhou devagar para ele e acabou por ignorar a entrada.
O adolescente evitou de encarar para as áreas destacadas e direcionou o olhar para a outra menina no cômodo.
A morena estava na cozinha do dormitório, preparando um bolinho de caneca, e usava um avental rosa cheio de bordados de animais.
Na hora que ouviu a porta abrir, derrubou a caneca em cima da bancada e foi correndo para cima do garoto na porta.
— Leo! Saudades!!!!