Venante - Capítulo 28
Na escuridão da fortaleza subterrânea, oculta pela escuridão, a água escorria pelas rochas, criando uma sinfonia vazia e solitária.
O gotejo era a única forma de saber que tal local existira antes; a única vivacidade que existia no esquecimento.
Criaturas estavam caídas uma a uma em todos os cantos. Era o testemunho que alguém havia passado por ali e aniquilado os seres.
Frente a uma porta enorme, um homem estava em pé, como se desafiasse a rocha coberta de musgo. Em suas costas, residia um garoto desmaiado e uma mochila que estava presa envolta do ombro do jovem.
Diferente de antes, que precisava ficar iluminando, agora apenas a escuridão cobria tudo. No entanto, para Rafael, este breu nunca foi um problema.
— Foram doze… mas, pelo visto, tem mais aqui. — Passou a mão sobre a rocha com musgos.
Era comum Venantes utilizarem a Energia para ampliarem os sentidos e outros atributos, então descobrir a quantidade de seres em uma pequena área não foi complicado para alguém tão experiente.
Entretanto, quando se tratava de sentir o que podia estar atrás daquela porta entre as escadas, o provecto sabia que não era algo tão banal. Tinha sido incapaz de saber o que se encontrava lá, como se fosse um espaço sem vida.
Podia ser qualquer coisa — os mesmos Anômalos de antes, um Líder, o núcleo do Portal, ou algo diferente. Ele estava sério para qualquer situação, independentemente de ser um simples Portal de Ameaça Baixa.
Como o objetivo do treinamento fora alcançado, não precisava mais ficar ali. Era o momento de destruir o núcleo do Portal.
Segurou firme Leonardo e, com um movimento veloz, chutou a rocha gigantesca que estava firme ali há pelo menos séculos.
Diante a força desse Venante Grau A, foi como se essa pedra resistente não passasse de barro seco. Desmanchou-se em pedaços e pó pesado por conta do úmido ar.
Assim que a nuvem de poeira abaixou, uma iluminação fraca atacou os olhos de Rafael. Era como os raios de sol que passavam pelas nuvens de um dia nublado; uma luz opaca manifestava o cenário à frente.
Com a experiência que tinha, sabia que esse era um espaço especial. E essa luz era graças a alguma fonte de Energia oculta no local.
Contudo o que mais incomodou o provecto era o ambiente do lugar.
Era espaçoso, alto, tinha luz e vegetação. Contudo, em seu espaço, além do caminho de pedra estreito que o levava para frente, não havia outro caminho ou piso, era um precipício para um lago negro no fundo.
As paredes eram cobertas por uma vegetação verde-escuro, como gramas baixas e molhadas.
E, se seguisse em frente com o caminho estreito e fino, se encontraria com um cristal vermelho flutuante sobre um pedestal dourado.
“O núcleo do Portal…”
Por mais que pensasse isso, sua mente já tinha definido uma nomenclatura para o local: Armadilha.
Ele olhou para baixo, em direção do lago de água preta e deduziu que, com base na formação desse lugar, se caísse ali, dificilmente um Venante de Grau baixo sobreviveria. Todo o ambiente parecia querer jogar qualquer um que entrasse no poço de lodo no fundo.
“E nada me atacou ainda, mesmo depois de quebrar a entrada.”
Rafael usou sua Energia para ampliar sua busca por algum indício de vida ali, mas não sentiu um sinal qualquer.
Experiente como era, estava pronto para qualquer tipo de Anomalia, então, com uma respirada pesada, deixou Leonardo próximo da entrada com a mochila em suas costas.
Com base no que esperava, no momento que aproximasse do núcleo, algo o atacaria. Dessa forma, preferia deixá-lo em um local seguro do que lutar com ele nas costas.
Ele caminhou em frente, pisando sobre as pedras escuras, sentindo a vegetação que cobria as frestas. Era escorregadio, desde as pedras até a grama.
“O que quer que esteja aqui, deve estar no lago” pensou.
Avançou vagorosamente, sem medo algum.
Silêncio continuou.
Apenas o núcleo do Portal transmitia alguma presença.
Então… Um barulho alto foi escutado saindo do lago e, tão rápido quanto esse som, Rafael apontou o braço para o lago e lançou muitas escamas de uma só vez.
Ele mal havia se aproximado do cristal flutuante e foi atacado.
Assim que atirou as escamas, um fino braço o acertou em cheio, lançando-o para a parede da caverna.
— Então era ali onde estava — falou, em pleno ar, batendo com os pés na parede escorregadia, para evitar cair direto na fossa de “piche”.
Rafael deixou ser acertado para conseguir atacar primeiro o inimigo. Se pudesse finalizar a luta com um só golpe para os dois, seria mais tranquilo, entretanto viu uma grande quantidade de água negra subir próxima do cristal.
Como uma erupção, uma criatura começou a se elevar de dentro do mar de petróleo.
Para que seu braço atingisse o Dragão Verde, que estava ainda alguns metros distante, além da distância do lago até onde estava, mostrava o comprimento do monstro. Só a sua metade havia saído do lago e mesmo assim era maior que quatro metros.
Diferente de qualquer outro Anômalo que Leonardo enfrentou do lado de fora, esse era diferente.
“Uma Anomalia Inorgânica?” indagou, enquanto dava um chute contra a parede, para lançá-lo novamente para o caminho estreito.
A constituição da criatura assemelhava-se a de um inseto, com um longo corpo fino, com as patas maiores que a si próprio. Parecia inteiro feito de um cristal escuro, com brilhos refletindo em cada parte, era um verdadeiro mineral.
E sua movimentação não parecia com algo natural, como se não fosse dotado de um cérebro, mas sim um tipo de programação inserido em sua existência que o fazia mover por conta própria.
Ademais, a parte mais grossa dessa Anomalia era a cabeça, que constantemente girava e tinha ranhuras e algumas escamas presas, além de refletir uma luz opaca para todos os lados da caverna.
Causava sentimentos estranhos para quem visse.
A camisa branca de Rafael já estava suja dos treinos de Leonardo, mas, depois de ser acertado uma vez pela criatura, ficou cheia de rasgos na lateral do ombro. Sem demora, a tirou e jogou no lago.
— Preciso acabar logo com isso.
O Dragão Verde tomou a sua decisão. Diferente de uma Anomalia que tinha instintos de sobrevivência, os Inorgânicos dificilmente sentiriam medo ou recuariam. Estavam longe de serem seres vivos.
Se fosse para defini-lo, seria classificado como um vírus gigante.
Sabia que se não destruísse por completo a criatura, a luta tomaria muito tempo. Então, para terminar logo, o provecto arqueou os joelhos e abriu os braços, exibindo o seu físico poderoso.
Diferente do terno, que mal podia conter seus músculos de se exaltarem no traje, agora essas montanhas de fibras estavam à mostra e se contraindo constantemente. Era possível ver até alguns formatos estranhos em sua carne, como se fossem pequenas marcas de picada por baixo da pele. Eram visíveis em suas costas, ombros, peito e braços.
Sem dizer algo, essas marcas de picada começaram a levantar a pele e protuberantes espinhos verdes nasceram de sua carne e se alinhar deitados como azulejos de uma parede. Eram as escamas do Dragão Verde.
Logo em seguida, como se suas escápulas tivessem com vida, ossos grossos e gosmentos começaram a se estender para fora, criando uma longa membrana, formando a carne e se alocando em suas costas. Era a vinda das asas do Dragão Verde.
Rafael Tavares havia ativado o seu Auct.
— A forma base deve ser mais do que suficiente para um Guardião Grau C que nem você.
Os Transmorfos tinham por sua qualidade básica a manifestação de suas habilidades básicas no corpo humano. E, para um Auct Mítico, como o de Rafael, as suas características dracônicas estariam perceptíveis para qualquer um.
Era um dragão em tamanho humano.
Duas enormes patas cristalizadas vieram por cada direção, soltando uma rajada de ar poderosa para cima de Rafael.
Ao atingirem o local, pó subiu e o caminho se quebrou, mas o provecto não estava mais lá.
Em um piscar de olhos, estava em pleno ar, batendo forte as asas enormes. De seu pescoço até as bochechas, formações de escamas subiam, suas pupilas esverdeadas estavam verticais, mostrando sua animalesca transformação.
Sem demora, voou com fogo subindo de sua garganta em direção da cabeça da Anomalia.
Ela tentou se defender, descendo para o lago e movendo os braços para capturar o Dragão Verde, contudo a diferença de velocidade era gigantesca.
Quando atingiu a cabeça cristalina do monstro, a inércia cobrou o pescoço da Anomalia para trás, empurrando ainda mais rápido para água negra e soltando um barulho pesado pela caverna. Além de jorrar para os lados, a água agora batia nos pés de Rafael.
Assim que o alcançou, as garras do Dragão Verde cravaram fundo na cabeça dela.
— Huargh! — Uma baforada de fogo verde vazou da boca.
A criatura lançou seus braços para cima dele, mas apenas ignorou os golpes contínuos, que arrancavam algumas pequenas lascas de suas escamas, e continuou a expelir labaredas constantes para fora. Os golpes estavam tão fortes que, ao colidir contra o corpo de Rafael, quebravam em pedaços, como uma tentativa de fuga.
A cabeça do inimigo parecia vidro em uma fornalha, cada vez mais vermelho e afundava conforme derretia.
Os ataques ficaram mais violentos, era como se a Anomalia estivesse desesperada.
Porém, depois de ter a cabeça derretida por longos segundos, enfim seus ataques começaram a reduzir.
Perdera boa parte da capacidade de combate nisso.
Em um último esforço, suas patas finas engrossaram. Ela havia sugado o restante do material do corpo para tentar impedir Rafael de fugir. O lago já tinha alcançado os joelhos dele nesse momento.
— Acha que uma armadilha como essa vai ser suficiente?
Suas garras se soltaram do cristal derretido, que antes era uma cabeça de cristal.
Com uma respiração funda, as escamas tremeram e se eriçaram como pelos e se lançaram contra o que o prendia. Frente a essas escamas mortais, esse esforço fora em vão.
As escamas cortaram as patas em todas as direções, e o Dragão Verde bateu suas asas para baixo, lançando-o para cima. Mesmo o grude do lago não foi capaz de suportar a pressão de ar que gerava com o bater de asas.
A visão que tinha era da Anomalia Inorgânica afundando sem se mover.
No entanto o sapato, que foi rasgado pela transformação do Auct, e boa parte da calça tinham derretido sob o contato da água negra. Parecia mais que estava apenas de bermuda, sem camiseta e sapato.
Por sorte, a proteção básica de Energia de um Grau A e as escamas míticas de Rafael garantiriam mais do que o suficiente para que ficasse lá para tomar um banho. Não que fosse realmente testar isso.
Sem mais preocupações, destruiu o cristal vermelho flutuante, desativou o Auct e segurou Leonardo.
Quando um núcleo era destruído, um portal laranja se abria próximo. Era o caminho de volta para o mundo anterior.
— Você ainda não está preparado para esses tipos, rapaz — comentou baixinho, olhando o dorminhoco em seu ombro.
Agora, mais acordado do que nunca, Leonardo estava sentado na beira da cama, esperando Rafael começar a explicar.
— Certo. Mas quero que fique claro que não sei muito. Se quiser saber mais sobre isso, é com a sua mãe que deve falar.
— Eu já imaginava… Esse anel foi feito pelo meu pai, não é?
— A Elisa te contou?
— Não… É que eu estive pensando por um tempo e sempre pensei que era algo que já tinha visto antes. Até que lembrei de um desenho que adorava quando menor. — Deu um sorriso pequeno, lembrando-se da infância. — E aí eu vi que o personagem principal usava um anel muito parecido.
— Entendo… Pois é, o Luiz era o chefe da equipe de desenvolvimento de anoferramentas na Associação Brasileira, além de um grande Venante — abordou o tema com mais vigor, depois de lembrar do seu velho companheiro.
— Manipulação de Anometais, esse era o Auct do meu pai. — A nostalgia o atacou, fazendo algumas pequenas lágrimas nascerem em seus olhos. — Ele sempre me falava disso.
— E não é por pouco, ele tinha um Auct de Classe Extraordinária. As suas criações eram de primeira linha na Associação. E esse anel é um que tem sido a sua maior criação, mesmo que esteja incompleto.
— Incompleto?
Leonardo mexeu o dedo, tentando ver algum indício da falta de algo no anel, mas parecia um como qualquer outro, melhor, tinha até muito detalhe para um.
— Luiz morr… — O provecto ia falar mais, contudo, vendo que abordou errado e causaria reações que não deveria, reformulou: — Luiz não teve tempo suficiente para aplicar o restante dos materiais nele.
— Mas o que exatamente ele faz? Ou faria?
Rafael levantou e se curvou na frente de Leonardo e apontou para a gema em cima do anel. — Sabe o que é isso? É uma gema de catalisação de Energia. Seu pai foi um dos poucos sortudos nesse mundo que conseguiu uma.
O garoto ficou boquiaberto. Em sua cabeça, só uma lembrança que dizia respeito a essa “gema de catalisação”. Era uma das três gemas fundamentais da anoferramenta do Espada Suprema.
— Então…
— Não, ela não te permite subir de Grau, se é o que está pensando. Se fosse isso, a Associação nunca deixaria a gema ficar com Luiz. Além do mais, precisaria de uma outra gema para ajudar nisso.
A animação do rapaz sumiu, todavia ainda sentia que era algo muito raro.
Contudo, Rafael complementou: — Ela lascou e perdeu sua poderosa capacidade de balanço de Energia, mas, graças ao empenho de mais de dez anos do seu pai, conseguiu trazer de volta um pouco da propriedade principal de volta para a gema.
— Qual propriedade?
— O equilíbrio de Energia no corpo de um Venante. Esse anel deve te permitir que utilize Energia no Auct por mais tempo.
Rafael se afastou, e Leonardo tocou devagar o anel que antes o incomodou tanto para retirar.
— É por isso então… — Lembrou que seu tempo na ativação do Auct tinha mudado e ficou emocionado pelo esforço de seu pai ao pensar em seu filho.
— Isso é o que sei pelo que seu pai me disse anos atrás — finalizou Rafael. — Deve ter mais coisas, afinal, seu pai realmente deu tudo de si nessa anoferramenta, então pergunte a sua mãe.
Leonardo deixou as lágrimas escorrerem de seus olhos e disse: — Obrigado. Obrigado, Rafael…
— Não tem porque me agradecer, rapaz. — O Dragão Verde levantou e se dirigiu para fora do quarto. — Quando você estiver melhor, me encontre na saída. — Se virou para olhar o menino. — Aliás, deixei algumas análises do seu treino para o seu Nelink e quero que siga estritamente todos os avisos que deixei. Seja bem-vindo ao mundo Venante.
De alguma forma, o adolescente sentiu seu peito aquecer e suas costas arrepiarem. Era como se uma mão tivesse o empurrado para frente.
Em sua mente, o pensamento surgiu: “Eu esperei por isso.”
Depois de limpar as lágrimas e ter dado um tempo para respirar fundo, Leonardo parecia decidido e foi se encontrar com Rafael. Ambos saíram daquele posto de descanso, e o provecto pediu para o jovem chamar um carro para levá-lo de volta.
— Tome cuidado e lembre-se do que eu falei, rapaz. E vê se não esquece de ler o Nelink.
O garoto assentiu e foi para a localização onde o carro que o levaria para o colégio estava. Não tiveram uma conversa mais longa.
A luz do fim da tarde cobria as suas costas junto do silêncio da falta de pessoas ali.
Além do peito pesado, a sua cabeça estava uma confusão, um turbilhão de pensamentos. Agora, tinha que levar muitas coisas em consideração.
Depois da caminhada e de entrar no carro, passou a tentar colocar tudo em ordem. Pegou os fones de ouvidos e foi acessar as mensagens que Rafael lhe enviara para o Nelink.
Desejava que a viagem de volta à Marvente fosse mais demorada, para lhe dar tempo de se organizar mentalmente.