Venante - Capítulo 27
Era domingo de manhã, e o fluxo de alunos no refeitório se provava constante. Muitas conversas e discussões alheias eram abertas naquele edifício.
Como um dos prédios do campus, só a área da cantina cobria três andares, enquanto as outras salas seriam para lazeres dos alunos no final de semana. Desenvolvido para ser uma área para interações e relaxamento, muitos calouros adoravam o ambiente aberto e espaçoso.
Independente do barulho e da quantidade de pessoas, os adolescentes sempre encontravam um local agradável em algum dos andares.
Nesse meio, um grupo de garotas estava sentado à uma mesa, dialogando.
— Acho que é a primeira vez que vejo só vocês duas por aqui — falou, conforme mexia as mãos, como se indicasse estar animada com aquilo.
— Realmente, não é comum a Agatha vir ao refeitório… — Essa, ao dizer isso, cortou uma fatia da torta de noz-pecã e a pegou no garfo. Antes de levar a comida à boca, continuou com uma dúvida: — Aconteceu algo? E aonde… Yik! — Assim que ia terminar de falar, seu corpo deu um pulinho e um gemido, como se algo tivesse a machucado. No final, parecia que a menina tinha percebido algo e ficou um pouco vermelha.
Ao ver o olhar das duas a sua frente, abaixou o rosto corado e começou a mastigar a fatia de torta.
— Ignorem a Lô, ela anda tristinha esses dias — disse Júlia sobre Charlotte, percebendo a outra parte que a olhava de soslaio, incomodada. —, mas por que vieram juntas hoje?
Na mesa, as quatro garotas — Júlia, Charlotte, Agatha e Luca — tinham se encontrado alguns minutos antes. Para a surpresa da loira, no sábado, o dia anterior, Luca e Leonardo não tinham ido para o refeitório, como de costume, então esteve pensativa sobre o que poderia ter acontecido.
Assim, quando viu que a gótica e a morena juntas, mas sem o menino, imediatamente chamou para se sentarem juntas e conversarem.
Com um suspiro, Agatha pegou uma colher do seu iogurte de morango e saboreou, aproveitando a doçura. Em vez de responder a outra, preferia só provar aquele querido doce.
Luca percebeu que a outra não ia responder, então, com animação e tomando um gole do café harrar direto de sua garrafa térmica laranja e cheia de adesivos, falou: — Agatha vir me acompanhar hoje. Ela poder odiar a sol, mas eu conseguir tirar ela da quarto!
Os olhos sombreados de preto e sonolentos se apertaram. Ninguém gostava de ser tratado assim, principalmente por um amigo.
— Well, é isso que recebo por fazer boas ações — replicou devagar.
Júlia levantou uma sobrancelha, já que era uma das poucas ocasiões que conversava com a garota sonolenta. Seu estilo e aura não se batiam já que a primeira era conversadora e cheia de assuntos. Até conversar com o Leonardo seria mais animado.
— Mas, meninas, é a nossa primeira vez só nós aqui. Sabem me dizer o que aconteceu para o Leo não vir? — Aproveitando a chance para tocar no assunto, deu aquela ajudinha para matar a pulguinha da orelha de sua amiga.
Ao ouvir isso, a loira conseguiu se recompor para escutar a resposta.
— Leo sair ontem. Eu ficar surpresa… Ele nunca sair antes!
— Ele saiu? — perguntaram Júlia e Charlotte ao mesmo tempo.
— Yep. O Weirdo falou que voltava pela segunda.
— Ele não falou aonde foi? — A loira estava mais interessada, buscando mais sobre isso.
Agatha, com todo o tempo do mundo, virou o rosto para olhar nos olhos dela. Era quase uma encarada que via através de tudo, próximo de um julgamento.
Charlotte apertou os lábios e encostou com força na cadeira. Tudo o que passava em sua mente era: “Por que está me olhando assim?!”
Luca e Júlia ficaram olhando para as duas, esperando alguém falar.
Depois desse momento constrangedor, a gótica mostrou uma mudança, abrindo sua boca devagar.
Com uma engolida em seco, Charlotte ficou preocupada. “Aconteceu alguma coisa na casa dele?! Por que essa demora toda em falar? Por favor, que esteja tudo bem!” A sua mente estava uma bagunça, principalmente pela falta de detalhes.
A voz arranhada e cansada soou nos ouvidos das jovens ali. — S…
— S… — As outras três repetiram inconscientemente o que seria dito.
— Stalker. — Sem dó alguma, a gótica declarou o seu veredito. — Já não basta seguir ele nas aulas, tem que saber até aonde vai agora? — Um pequeno sorriso surgiu de seu rosto pálido.
Só com a primeira sentença, Charlotte havia levado um nocaute. Júlia e Luca ficaram incrédulas com tamanha cara-de-pau, mas tiveram que conter um pouco o riso, porque estava claro a garota podia chorar de vergonha a qualquer momento.
— N-não é isso! — Ela cerrou os punhos com força. — Uma amiga não pode ficar preocupada se um amigo some?! E eu não sigo ele! — afirmou, cada vez mais alto.
— Yeah, yeah. Tô sabendo. — Outra colherada de iogurte foi feita. — E também não sei aonde ele foi. Happy, Stalker?
Com o rosto já vermelho de vergonha, era só possível ouvir a indignação reprimida vazando de sua garganta.
Antes que pudesse reclamar mais, Júlia tocou no ombro dela e deu o “olhar de amiga”. Era algo que se acostumou a fazer pela colega; quando a loira estivesse sem resposta, ela cobriria a barra.
— Chega de falar disso. Na real, vamos aproveitar que ele não tá aqui hoje para falar de algo que tem sido discutido há tempos. Vocês duas, — Ela apontou para a gótica e a morena. — tem alguma ideia sobre o Auct do Leo?
— O Auct dele? — Luca foi a primeira a repetir a pergunta. — Isso ser importante?
— Ué? Você não soube? — Pareceu confusa, olhando para Agatha.
— O Weirdo não falou para ela. E eu também achei desnecessário falar.
A morena, curiosa, ficava olhando para todas ali, esperando entender. — Hã… O que acontecer? Leo fazer algo ruim?
Com essa situação, Charlotte resolveu o problema: falou sobre o dia que venceu Gustavo.
Luca abriu a boca, surpresa. Seus olhos ficaram bem abertos por um tempo e disse com animação: — Ele fazer isso tudo!? Uau! Eu também querer saber agora!
— Bem, não querendo dizer algo, mas temos uma pessoa aqui que pode falar melhor que qualquer um sobre ele.
— Quem?
— Who?
Júlia deu uma leve inclinada na cabeça e uma olhadela rápida para a direção de Charlotte.
A loira ficou desconfortável com o olhar de todas. — Por que eu?
— Não foi você que me contou daquela emocionante luta contra ele? Além do mais, amiga, você vive falando com ele, deve saber de algo.
— Charlotte ser próxima assim do Leo? — A morena mostrou muito interesse. — Como ser? Ele ser poderoso?
Era estranho o repentino interesse, mas Charlotte gostou de ouvir a primeira parte e, vendo que Agatha não se intrometeu, considerou ser algo comum da Luca se expressar assim.
— Não é questão de ser poderoso ou algo assim, é mais como ele parece lidar com tudo de um jeito… Sabe, parece que ele sabe como vai ser?
— Ele reagir de última hora? Ou parecer saber como vai ser o ataque?
Dessa vez, Júlia que olhou para Luca. Em sua cabeça, não esperava tanto interesse da última no poder do garoto. No entanto, sentia feliz porque a morena parecia mais acuada esses dias, diferente de quando a conheceu, que era bem animada. Vendo essa característica voltar, se sentiu bem.
— Eh… — Charlotte pareceu confusa com essas perguntas. — Eu acho que ele faça parte da Categoria Físico, igual ao Agente que me protegeu quando o prédio de treino foi destruído.
— Mas ele…
Antes que Luca fosse mais longe nas perguntas, Agatha interrompeu: — Luca, por que tanto interesse no Auct do Leo?
Por um momento, a morena pareceu ter acordado de um sonho, piscando algumas vezes. — Eu… Asif. — Abaixou a cabeça, incomodada. — Eu só querer saber mais… Asif — finalizou pedindo desculpa em árabe.
As outras três se entreolharam e sentiram o clima ficar pesado.
Contudo, Agatha foi a primeira a se mover pela sua colega. — Alright. It’s fine, Luca. — A puxou um pouco para mais perto. — Quando o Weirdo voltar, você vai poder perguntar para ele.
A gótica mostrou o seu lado amigável, o que chocou um pouco Charlotte e Júlia. A cena parecia digna de série, aliviando o clima chato que tinha ficado.
Balançando a cabeça, Luca apenas concordou com a afirmação da colega, engoliu um pouco de saliva e levantou a cabeça. Ela parecia ter se controlado.
Charlotte deu uma cotovelada de leve na colega do lado, que entendeu na hora e puxou uma conversa que estava guardando.
— Mas então, gente, como estão nas aulas? — Bateu na mesa, balançando os pratos e copos das meninas. E continuou, cada vez mais revoltada: — Sério, eu tô odiando as aulas de educação física, aquele baixinho do Danilo é um porre! Prefiro ficar ouvindo o Estevan falando de pesquisas a aula inteira do que ouvir aquele toco de amarrar bode falando que temos que fazer tantos exercícios e blá-blá-blá. Chato! — Parecia que queria animar as outras duas à frente; o monólogo de pura indignação era cômico.
A primeira a responder foi Luca, dizendo baixo: — Ah… Eu gostar dos professores… Atenciosos e legais. Ser problema?
Júlia brilhou os olhos vendo o rosto tímido daquela garota ingênua. Ela queria saltar e abraçá-la, só para dizer que estava tudo bem agora. Depois daquela cena de antes, ver a outra responder como antes a fazia aliviada.
Luca não gostava de se colocar em fogo cruzado, então quando ouvia alguém dizer que não gostava de algo, tendia a evitar falar que gostava.
— Bem, as aulas acabaram de começar, então não tem muita coisa difícil. Na verdade, estou mais animada com o que vai vir. — Charlotte começou a demonstrar seu lado intelectual, já que no assunto de estudo era tão viciada quanto o Leonardo. — Em breve teremos que escolher nossas armas pessoais, depois um clube e as aulas de combate e pesquisa de Anômalos estarão disponíveis para nós. — A animação dela começou a aumentar. — Melhor de tudo, será com professores que ainda atuam como Venantes!
Agatha só ouvia de canto, afinal, ouvir alguém falar tanto a cansava. Já bastava durante as aulas, quando esses dois começavam a falar de pesquisas.
A conversa delas continuou, abordando todos os assuntos que Júlia podia inventar.
No entanto, no fundo, as perguntas de Luca ainda ressoavam na cabeça de Charlotte…
— Lagarto voador…? — A voz confusa e lenta soou pela sala espaçosa e clara.
O jovem de olhos cansados piscou algumas vezes para tentar focar.
Seu corpo estava deitado sobre uma cama de solteiro.
Não estava mais naquele local fechado, escuro e úmido que estava antes, e sim uma sala do seu mundo, com uma lâmpada acesa no teto, mobília e era possível ouvir o barulho de fora.
Levantou as mãos para cima, colocando sobre seu rosto, e cobriu a luz que atacava seus olhos, mas não parecia ser esse o objetivo.
— Hah… — Expirou com força, ao sentir o ar mais leve e limpo.
Sem pressa, levantou-se. Sentia que algo tinha mudado.
Até onde se lembrava, seu corpo estava cheio de feridas e dolorido por inteiro. No entanto, fora a sonolência, seu corpo não tinha mais qualquer ferida ou dormência. No máximo, um cansaço que atacava sua cabeça e ombros.
Ele se sentou na cama e pensou: “Onde estou?”
Nessa hora, o barulho de uma tranca sendo aberta foi ouvido de outro canto. Institivamente, olhou para a direção que veio o som e esperou ver quem era.
— Leonardo? Acordou agora? — A voz firme retumbou pelo local.
Vendo o provecto surgir, com um terno totalmente diferente de antes, só restou perguntar: — Rafael? Onde… Digo, o que aconteceu?
— Vamos com calma. Antes de falar disso, recomendo tomar um banho. Deixei sua mochila na frente da porta do banheiro.
O adolescente sabia que estava com a roupa toda rasgada e fedendo do mesmo jeito que saiu do Portal.
Após ouvir tantas ordens do Dragão Verde, já tinha se acostumado a não discutir e ouvir o que o mais velho tinha para dizer.
Assim, foi direto para o banheiro.
Durante o banho, Leonardo esteve refletindo sobre o que tinha feito. O cheiro não o incomodava por estar acostumado, mas, após lavar seu cabelo e encontrar vestígios dos miúdos dos Anômalos preso em sua cabeça, a cena dele tirando a vida de uma criatura surgiu em sua mente.
A ânsia o atacou e vomitou no piso do box. Não importava se fosse uma Anomalia ou um bicho do seu mundo, sem contar o tamanho — próximo a de um boi — matá-lo foi uma experiência traumatizante.
Por exemplo, as pessoas estariam acostumadas a matar insetos, seja propositalmente ou sem querer. O problema viria se esse bichinho não morresse em um só acerto. O sentimento de empatia atacaria qualquer um que visse a luta pela sobrevivência de outra criatura que sofria até os seus últimos segundos antes de falecer.
E foi exatamente isso que Leonardo sentiu. Por mais diferentes fossem; por mais que os dois existissem para se matar; ainda ter que matar era algo cruel para todos que possuíam empatia.
Ele não tinha parado para refletir sobre isso pelas constantes lutas que teve de enfrentar, porém, agora, aquele banho que deveria ser relaxante, parecia um confinamento, asfixiando-o.
— E-era necessário… Hah… Hah…
Tudo o que mais desejava agora era ser como os Venantes fortes que pareciam ter superado esse sentimento horrível.
Após se lavar, o adolescente saiu vestido com um conjunto de roupas comum, jogando fora aquele uniforme todo rasgado.
Uma blusa preta, calça jeans azul escura e um tênis casual cinza escuro.
Com a mochila ainda gorda, de ter trazido mais conjuntos do que deveria, foi se encontrar com Rafael.
— Sente-se — disse o provecto, ao ver o rosto abatido do jovem.
Ainda era o cômodo que tinha acordado. Antes de ir ao banheiro, notou que estavam numa espécie de apartamento minimalista, com pouquíssimas mobílias.
O jovem sentou-se na beirada da cama de solteiro e olhou para o Dragão Verde sentado em uma cadeira.
— Aqui é um dos postos de descanso. Se for olhar pela janela, vai conseguir ver até o Portal se fechando daqui.
Postos de descanso eram locais privados para a pausa e repouso dos Venantes após a raide. Ficavam dentro das áreas isoladas e perto dos postos de vigilância. Esse tipo de alojamento dependia de vários fatores; mas era comumente visto em raides próximas as cidades.
Com uma olhada rápida, Leonardo viu que a luz alaranjada batia na cortina do quarto. Era fim de tarde. Mas, preferiu não olhar para fora da janela.
— O que aconteceu depois…?
O engravatado olhou para o rosto do menino, pensando que não era só isso que queria falar.
“Você não precisa fingir ser tão forte, rapaz…” pensou.
Estava estampado que o jovem tinha diversas coisas que gostaria de desabafar, mas preferiu guardar para si mesmo.
— Após você desmaiar, te carreguei e destruí o núcleo do Portal. Quando saímos, chamei uma pessoa para te curar.
— Por quanto tempo fiquei dormindo?
— Contando desde a hora do desmaio, por volta de dez horas.
Leonardo não se incomodava de ter sido protegido pelo Rafael. Na verdade, desejava até dormir mais. O cansaço, os pensamentos conflituosos e o sentimento ruim ainda eram frequentes. Sua cabeça estava cheia e desejava apenas dormir mais, só para ver se no próximo dia isso desapareceria.
Desatento, ouviu o Dragão Verde dizer: — … quer ainda saber do anel?
Com certa demora, ele olhou para o anel em seu dedo. Porém, levantou o olhar e encarou os olhos firmes do provecto a sua frente e afirmou resoluto: — Sim.