Venante - Capítulo 26
Os tons de cinza suprimiram qualquer outra cor no ambiente presente. Somente Leonardo, Rafael e o Anômalo permaneciam coloridos e vívidos, mesmo que parecessem estar presos no tempo, imóveis.
Por mais que o jovem tivesse percebido que dentro da simulação até a escuridão do local não fosse mais um problema, não perdeu tempo e trocou o cenário.
Já tinha virado um hábito, após doze lutas exaustivas e os treinos diários que fazia no VR, tornou-se um processo básico.
Era um campo, aberto e sem fronteiras, exceto pela parede enevoada que limitava a distancia da Simulação. Tal ambiente foi visto dentro do Ambição Real.
O céu estava iluminado por uma luz que assemelhava ao Sol; todo o cenário estava visível e espaçoso para realizar sua última batalha.
O adolescente dividiu sua consciência em dezenas e levantou outras dezenas de Anomalias. Sua convicção não vinha mais das simulações anteriores, mas a experiência adquirida após elas e os ensinamentos de Rafael, lembrando-o do básico.
“Primeiro as pontas dos dedos e depois os braços, mas nunca esqueça dos olhos…” recordou.
Esse foi a lição mais importante e crucial.
O Dragão Verde o relembrou dos exercícios básicos que toda criança passava durante a infância — guiar a Energia pelo corpo.
Não era algo que o garoto tinha esquecido ou não praticava, mas, depois de perder o pai e se confinar em casa, não o fazia com tanto ânimo que antes. Na verdade, lembrou da prática no dia do teste e na hora de ativar seu Auct.
O exercício de guiar a Energia era só um pré-requisito futuro dos Venantes. Não ajudava em acúmulo de Energia, mas sim na velocidade de circulação pelo corpo.
No dia que Marcos destruiu o prédio de treino, os muitos Agentes reagiram quase instantaneamente, contudo não era graças aos seus Aucts. Muitos dos Agentes ali podiam ser de Categoria Suporte, Manipulação ou Invocação, que não teriam tanta mobilidade.
A melhora da reação, defesa, velocidade e força era um bônus dado através da Energia.
Era por isso que Leonardo tinha tanta dificuldade em reagir a tempo a velocidade do Anômalo, enquanto para Rafael era como se movesse em câmera lenta: seus Graus de Energia tinham uma enorme disparidade.
E também não foi à toa que a defesa padrão do Leonardo, um D-, frente ao ataque do Gustavo, um simples B-, era como uma folha de papel. Além de não muito praticar a circulação de Energia, também tinha a ideia que o acréscimo do foco de Energia em uma área seria mínimo, afinal, era apenas um Grau baixo.
No entanto, o provecto ficava o lembrando que qualquer chance de sobrevivência era importante.
Era um conhecimento básico que a Energia só apresentaria seus benefícios depois de ativar o Auct pela primeira vez. Era o ponto de virada. Então todo adolescente não sabia como utilizar a Energia durante um combate, mas a maioria saberia como circulá-la pelo corpo.
Para o Dragão Verde, foi uma surpresa ver que o jovem tinha negligenciado essa atividade tão comum…
“… Aqui, eu posso ter o tempo que precisar para encurtar essa diferença” refletiu Leonardo.
Ele sabia que, na Simulação, onde o tempo decorria muitas vezes mais lento, era sua chave de ouro para treinar a sua Energia também. Estava atrasado em comparação com os outros, mas podia alcançá-los, desde que tivesse tempo.
Diferente do choque inicial de ter que entrar em um Portal e tomar a vida de outro ser vivo, sentia-se mais confiante que era uma missão que devia passar para alcançar a promessa que tinha feito.
Lembrou-se da simulação quando lutou contra o primeiro Anômalo. Em vez de utilizar um cenário aberto e diferente, como agora, analisou totalmente as estratégias que poderia abordar. Desde lutar de frente até iniciar a batalha de diferentes formas. Todas resultaram em derrota.
Foi um choque ser morto da pior forma por uma criatura tão feroz e horripilante que o fazia suar frio toda vez que recordava da cena. Apesar de que pudesse privar esse sentimento de medo ou evitar de acontecer o último ataque, ainda precisaria reagir a tempo e pensar corretamente em todo momento.
Principalmente porque Rafael pediu para ele desafiar a morte dessa forma. Quanto mais seguro se sentisse em uma situação, menos atento ficaria. E este não era o objetivo do treino. O provecto sozinho já era uma parede de segurança, seria errado ter segurança até mesmo no mundo simulado.
E, acima disso, agora não podia mais utilizar a estratégia de arrancar um pedaço da roupa e jogá-la à água para um ataque furtivo: estava só de calça e tênis.
Leonardo segurou o cabo da Adaga Fria, que, mesmo na simulação, passava a frieza da calmaria para a sua mente, e de diferentes formas avançou para cima do Anômalo.
Algumas simulações partiam de ângulos baixos, alguns saltavam e outros circulavam, mas todos tinham sua variação de ataque, buscando uma solução para vencer a rapidez da criatura.
A consciência do garoto vivenciava tudo, aprendendo da sua forma o manejo, o uso dos cotovelos, ombros e das costas, a pressão correta a se colocar nas pontas dos dedos, inclinar dos pés e a força dos joelhos. Além de que cada corpo simulado tinha sua frequência, então a circulação de Energia era diferente para todos.
Independentemente de não existir uma melhora física, o entendimento do próprio corpo era um conhecimento que poderia ser passado. A sua mente era a criadora de toda a Simulação.
Era mais que perceptível que Leonardo já tinha investigado tudo sobre o Anômalo que enfrentou. Doze vezes, doze simulações, mais de 50 horas dentro das simulações. E, dessa vez, estava convicto que só desativaria quando vencesse a Anomalia.
“Eu e você somos do mesmo Grau, mas só eu perco!”
O garoto estava cansado de ser sempre o derrotado. Ele queria vencer uma vez. Era a única prova real que as palavras de Rafael estavam certas. Buscava uma autoconfirmação.
Ser um Venante que poderia vencer uma Anomalia por conta própria.
Do lado de fora da Simulação, os segundos passavam lentamente.
O Dragão Verde já tinha se acostumado com isso.
“Quantos segundos vai precisar dessa vez, rapaz?” pensou.
Com a pergunta retórica, sabia que levava de dez até catorze segundos em cada simulação. E também percebeu que depois que passava do décimo segundo, mais difícil seria.
A Energia que a Simulação cobrava era alta demais para o Grau D-.
“Se não fosse graças a esse anel…” O provecto lembrou de um homem em sua sala de pesquisa, dedicando horas de cada dia para formar um anel. “Luiz, seria você que estaria no meu lugar hoje para ensinar o Leonardo?”
Ele balançou a cabeça. O homem que questionava já estava morto.
Os segundos passaram, o Anômalo vagueava pela água, cada vez mais próximo.
Não parecia uma criatura intelectualmente evoluída, senão, teria notado que, se um predador chegou tão fundo ali, foi porque já matou outros da sua espécie no caminho, então fugiria.
Rafael encarou o movimento dos dois. Leonardo estático, com os olhos brilhantes, e a besta se aproximando devagar.
Por sorte, o garoto quando simulava se mantinha em pé como uma rocha, não gerando qualquer movimento além da respiração calma. Nenhuma reação acontecia na água.
Mas esses Anômalos ainda eram capazes de entender que, uma vez que a onda de água batesse e voltasse mais cedo, era porque tinha algo próximo.
Doze segundos se passaram. O suor misturado com a sujeira já não fazia diferença. As costas magras do garoto começaram a tensionar conforme ficava difícil se manter em pé.
A Anomalia estava distante, arquejando o bafo fétido. Porém, invés de se aproximar de quem estava mais perto — ou seja, Leonardo — pareceu evitar e estava indo em outra direção, como se quisesse circular.
Rafael olhou de soslaio e pensou: “Ele deve imaginar que o predador seja eu. E o Leonardo foi entendido como uma isca minha… Esperto, mas nada muito diferente dos anteriores.”
Outro segundo passou. A anoferramenta era segurada com menos ímpeto.
“Leonardo já deve sair da Simulação.” Estava claro que o décimo quarto segundo era o limite do jovem, por fim, não restava muita Energia depois disso.
Porém, assim que mais um segundo se foi, Leonardo continuou na Simulação.
E outro.
Mais outro.
A Anomalia se aproximava pelo lado esquerdo.
“Por que essa demora?”
Rafael, que olhava o corpo pálido e o arfar pesado, não conseguia entender porque ainda se mantinha na Simulação.
— Leonardo…? — perguntou baixo.
Ele já tinha entendido que o Anômalo não se importava com o som em si, mas com a vibração que poderia gerar pela água.
O garoto, no entanto, não parecia que iria sair da Simulação. Seu corpo estava escorrendo suor, que era absorvido pela calça. Seus olhos brilhantes pareciam estar com dificuldade para se manterem abertos. E a Adaga Fria estava frouxa em sua mão.
Quando chegou ao vigésimo segundo, aconteceu uma mudança. Sangue começou a escorrer do nariz do garoto.
“Leo…?”
Inconscientemente, Rafael deu um passo para frente, para ir até lá.
A vibração da água alcançou o monstro, que imediatamente se lançou contra ele.
Parecia que seria impossível desviar, mas Rafael, mesmo dando apenas um passo, foi como um fantasma no seguinte. Sua velocidade foi tanta que uma explosão aconteceu no chão alagado, ressoando por toda a caverna.
Ele alcançou Leonardo e o segurou agachado no outro canto do lugar. Foi um instante necessário para cruzar mais de dez metros.
Enquanto o Anômalo tinha se jogado contra o nada, sem saber onde seu inimigo tinha ido. Ele arranhava o ar, saltando de um lado para o outro, pensando em fugir.
“Merda, agora vai ser mais difícil… Esqueça, preciso tirar o Leonardo daqui.”
Ele esticou a mão coberta de chamas verdes e mirou a criatura que pulava incessantemente.
— Foi um bom trein…
Antes de terminar, uma mão trêmula segurou o braço do provecto.
— Po-por favor… Ele… comigo.
Rafael parecia surpreso. Leonardo havia saído da Simulação, mas seus olhos e nariz estavam escorrendo sangue.
Era sabido que o uso excessivo de Energia causava complicações no corpo, podendo ser leves até seríssimas. Mas, para um experiente como o Agente, com uma leve avaliação notara que o garoto tinha apenas rompido os vasos capilares. Não era uma lesão séria e passaria com um bom descanso. Só que demonstrava que chegou no limiar do leve para uma lesão pesada.
E, além disso, o adolescente não tinha uma reserva de Energia como o Dragão Verde. Ir ao combate nesse estado seria inimaginável. Era o mesmo que assinar sua morte…
— Você quer isso?
O jovem assentiu devagar, tentando se levantar.
… Isso se estivesse sozinho.
Rafael sabia que os olhos que encaravam agora tinham um brilho diferente de antes. Não era confiança sem fundamento. Era o brilho fraco de um Venante pronto para vencer.
Ele ajudou o menino a ficar em pé.
— Meu… corpo está leve…
Sentiu o peso do próprio corpo, enquanto expirava pesado pela boca.
— Seus músculos estão cansados.
Respondeu, sabendo que o outro também tinha ideia.
— Eu ganhei.
Um sorriso genuíno de felicidade e orgulho surgiu.
— Eu sei.
Afagou o ombro do jovem.
Não foi necessária uma conversa longa para os dois se entenderem. O mais velho confiava que o mais novo tinha a sensatez correta agora.
Rafael ajudou Leonardo a segurar a adaga outra vez.
— Eu estarei olhando dessa vez. Mostre o que você alcançou.
— Certo…
A Anomalia estava tensa dessa vez, visto que o predador ainda estava no local, mas não a atacou. Dessa forma, manteve-se alerta ao limite.
No entanto, Leonardo pareceu não se importar. Ele tinha visto os movimentos dessa fera muitas outras vezes. Nem sequer importava se estava atenta ou não.
Um dos olhos do garoto estava fechado, ainda escorrendo sangue. Já o outro tinha uma longa mancha de sangue seco que estendia pela bochecha. E seu nariz, incapaz de respirar corretamente, o forçava a inspirar pela boca.
Leonardo sentia vibrações pequenas em seus músculos cansados e tensos. Foi como se tivesse treinado incontáveis vezes o mesmo movimento. O corpo parecia entender que teria que executar mais outra vez.
Reconhecia o sentimento de usar exatamente cada fibra específica de seus músculos.
A Anomalia já tinha percebido de longe o aproximar do jovem. Afinal, não tinha tentado esconder dessa vez.
— Sabe, Anomalia… — Leonardo começou a divagar. — Você é só mais um problema na minha vida. Um dos menores. — Uma risada seca e dolorida saiu de sua garganta.
A consciência dele estava prestes a se ir, mas de alguma forma ainda se mantinha em pé.
O Anômalo ficou em posição para o seu ataque, usando toda a força de suas pernas. As garras das patas traseiras arranhavam o chão por debaixo da água, sustentando-se.
Leonardo firmou as pontas dos dedos do pé no chão, levantou os calcanhares e colocou a adaga sobre o ombro esquerdo com a mão direita, e sua mão esquerda para dar um suporte de firmeza no ataque.
— E vou dar um fim nesse problema hoje.
A fera se lançou e Leonardo avançou. Duas explosões de água aconteceram, uma maior e outra menor.
Rafael, que estava pronto para matar a Anomalia, encarou o movimento dos dois.
Ainda que não tivesse velocidade, foi como se o adolescente tivesse polido por meses uma técnica.
Com o avanço nas pontas dos dedos, a angulação do corpo dele se jogou por baixo do salto do Anômalo, e a adaga em seu ombro se encaixou perfeitamente no ataque do outro — a lâmina tinha alcançado o corpo do inimigo.
O corte se iniciou da clavícula, destroçando-a, e rasgou o resto do tronco até a perna do monstro. Possivelmente, se não tivesse a ajuda da mão esquerda para suportar o peso, a anoferramenta teria ficado presa no osso.
Só foi possível graças a Energia posta nos braços de Leonardo, o fio da lâmina e a velocidade do monstro.
O Anômalo teve toda sua parte frontal rasgada pelo corte e caiu morto na poça de água com os seus órgãos vazando do corpo.
E, do outro lado, Leonardo desabou na água.
— Você conseguiu, rapaz.
Rafael sorriu emocionado, caminhando para o desmaiado.