Venante - Capítulo 24
Enquanto o garoto estava desabado pela situação, Rafael Tavares refletia: “Como pensei… Nem com a Adaga Fria ele conseguiu lidar.”
Essa anoferramenta era um dos itens caríssimos que comprou; capaz de não só acalmar a mente de quem a empunha, mas também de amenizar situações de choque mental. Digna de ser chamada de anoferramenta de Grau B+.
E só tinha passado essa arma para duas pessoas desde que a comprou.
O provecto caminhou em direção do garoto e perguntou com a voz séria: — Leonardo, consegue se levantar?
Como se não escutasse, continuou a balbuciar e, logo em seguida, vomitou outra vez — só que apenas líquido.
Rafael encarou essa cena com mistas emoções, imaginando que o jovem desistiria de entrar em uma raide depois disso. Gostaria que por vontade própria o outro levantasse, mas sabia que era impossível sem uma ajuda.
Leonardo foi criado em uma sociedade protegida — mesmo quando os Venantes tinham que passar por situações dezenas de vezes piores do que só matar um Anômalo. Era um mundo violento e cruel dentro dos Portais, onde até amizades poderiam custar a vida.
Sem sequer terminar o primeiro ano de ensino no colégio para futuros Venantes, não tinha como o garoto estar preparado. As gravações dentro de portais eram secretas e só quem tivesse a capacidade de ser um Venante poderia ter acesso tão cedo. Claro, havia sites ilegais com vídeos, mas somente aqueles que buscavam por isso encontrariam.
Por mais que o adolescente de olheiras fosse fissurado no assunto, não foi tão fundo nesse mundo para descobrir. Além do mais, mesmo que visse, vivenciar era uma história completamente diferente.
— Leonardo, — chamou, enquanto se agachava para analisar o jovem — está me ouvindo?
— Si-sim… — Ele virou o rosto lentamente, encarando os olhos tranquilos do Dragão Verde. — Se-senhor Rafael… Como v-você…
O provecto interrompeu colocando a palma sobre a cabeça do garoto, a afagou e o respondeu: — Está tudo bem. Segure a minha mão e se levante. O resto vem depois. — Tirou a mão da cabeça dele e a estendeu.
Apertando os dentes e sentindo os membros trêmulos, com dificuldade tirou a mão do chão alagado e cheio de vômito e sangue. Quando notou que estava coberta de sangue, por instinto tentou recuar e escondê-la de sua visão. No entanto, Rafael a segurou.
— Não desista assim — exclamou e, com a firmeza de sua mão calejada de incontáveis batalhas, levantou sem qualquer dificuldade o rapaz do chão.
As pernas de Leonardo tremiam, prestes a desabar, mas o provecto o puxou em um abraço forte, ignorando toda a imundície. Ele abraçou como se fosse o próprio neto.
— Mesmo que queira cair, eu não vou te deixar.
— Eu… só… — Lutava para tentar formar um sentido do que estava passando mentalmente, mas apenas se calou no final.
— Você quer saber como lidei com isso, não é?
O adolescente abaixou a cabeça; queria esconder seu rosto do olhar do homem. Tudo o que pôde fazer foi afundar o rosto no peito do outro e concordar, sentindo-se horrível. Foi possível ouvir as gotas que caíram de seu rosto ao chão alagado.
Rafael falou baixo: — Eu tinha a sua idade. Fui idiota e apressado, indo para um Portal sozinho…
— So-sozinho? — A voz baixa e sem reação soou abafada, como se tivesse saído sem querer de sua boca.
Por mais que o Dragão Verde fosse uma figura icônica no Brasil, era muito raro ter acesso ao seu passado. Na verdade, era como se quisesse que ninguém conhecesse esse “velho eu” dele. Quanto mais passava o tempo, mais evitava falar disso.
— Por ter um Auct Mítico, eu me achava invencível… Naquele Portal, só tinha minhas próprias mãos para terminá-lo. A cada morte, sentia me afastar de mim mesmo.
Leonardo forçou um pouco para se afastar, então o provecto diminuiu o aperto, deixando-o sair do abraço.
Os olhos do jovem se apertavam, parecendo sentir dor. Sua boca fechava e abria, buscando algo para falar algo. Sobre seu peito, a mão direita apertava forte a camisa.
— Por que… — Pausou para respirar com dificuldade isso e tentou continuar: — isso é tão… ruim? Sr. Rafael, por quê? — Mostrou uma expressão de tristeza e raiva.
— Porque isso é guerra, Leonardo — O provecto não poupou.
Com essa réplica, o garoto deu um passo vacilante para trás, batendo o pé de novo no cadáver Anômalo. Ele virou para olhar por instinto e deparou com o monstro com a cabeça jogada para trás, com o pescoço aberto e mostrando o corte horrível que tinha.
Antes de ter chance de sequer pensar em algo, a voz de Rafael soou alto: — Os Anômalos estão em guerra conosco, e nós estamos perdendo lentamente.
Leonardo escancarou os olhos vagos pela frase chocante.
— Como…
— A paz que fingimos que conquistamos é tudo uma forma de esconder nosso desespero. A força do nosso país não é suficiente para se defender, Leonardo, e você sabe disso melhor do que qualquer outro… Preciso que você seja forte e enfrente esse sentimento. Não o deixe consumi-lo! — Segurou os ombros do garoto.
— Mas eu…
— Você é mais do que só isso, rapaz! — O provecto parecia ler as intenções das frases do outro, pronto para interromper qualquer fala depressiva. — Essas criaturas não apenas ameaçam a sua vida, mas a da sua mãe, a dos seus amigos e de todo os outros. Foi por causa dessas Anomalias que seu pai perdeu a vida.
Nesse momento, Leonardo sentiu seu corpo travar. Sua mente, que já sofria o estresse do choque de tirar a vida de outro ser, foi lançada contra uma memória que havia sido enterrada.
O dia que Luiz partiu com Elisa para a raide pela última vez, não mais voltando.
Um sorriso sincero de um pai surgiu das recordações.
Não importava qual momento estivesse, Luiz sempre foi feliz e sorridente.
“Mesmo você… teve que fazer isso, não é, pai…?” O peso em seu peito e a dor angustiante que sentia do desespero se amenizaram quando lembrou de Luiz. “Você sorria para esconder esses sentimentos…?”
Vendo que o garoto não respondia, o Dragão Verde viu que tinha falado demais. Ele evitou propositalmente colocar mais peso nas costas do jovem, focando em algo que poderia fazê-lo levantar sozinho da próxima vez.
Os olhos vazios pareciam tomar vivacidade outra vez, como se focassem novamente em algo.
A respiração errática começou a se pesar, mas com um ritmo definido.
— Sr. Rafael…
Ao ouvir essas duas palavras, o rosto sério do homem se tornou mais calmo. De alguma forma, sabia que aquele jovem tinha conseguido se erguer finalmente.
— Chega de “Senhor”, Leonardo. — Balançou a cabeça em negativa. — Agora, você é oficialmente um companheiro meu. Um Venante.
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Enquanto o jovem e o provecto estavam no Portal, um par de engravatados estava conversando em uma cafeteria próxima do campus Marvente.
Como o colégio era frequentado por filhos de pessoas influentes, os comércios próximos eram também de altíssima classe. Por mais que cafeteria pudesse ser pequena comparada com os outros pontos próximos, o espaço era bem decorado e quieto.
— Camil, o nosso salário não vai durar muito se continuarmos vindo aqui.
— E você queria o que? Não podemos comer no colégio nem nos afastar. — Ele olhou em volta, percebendo que a conversa não tinha chamado a atenção. — Aqui continua sendo o local mais barato para uma refeição. Isso para não citar que seu dinheiro só está acabando porque nos levou naquele restaurante da última vez.
— Eu falei que não sabia que os preços tinham mudado, desgraça! — gritou, atraindo atenção dessa vez.
— Shh! — Camil tentou aquietar Pablo o mais rápido possível. — Pare de gritar e me passa logo o relatório.
— Tá, tá. — Ele tocou no Nelink e selecionou um ícone de pasta, jogando-a para o compartilhamento que tinha com o Nelink de Camil. — Queria que o Rafael te mandasse pelo menos uma vez para seguir esses pirralhos — resmungou.
Camil revirou os olhos e tirou um dos fones de ouvidos para escutar o relatório ser lido para ele.
Todos os sábados Camil e Pablo se reuniam fora do colégio Marvente para discutir atualizações da semana. Afinal, sempre havia saída de alunos nos fins de semana, mas voltando sempre no domingo.
Os três, que antes continha Jonas, foram escolhidos a dedo por Rafael para encontrar um possível espião. Como o Dragão Verde não tinha entrado em detalhes sobre proteger o Singular, mas sim procurar um espião, entenderam o papel deles era encontrar provas e encaminhá-las apenas.
O papel de se livrar do inimigo era de outra pessoa, não deles.
“Mesmo depois de ter feito uma triagem, ainda tem muitos primeiranistas esse ano… É muito improvável que o verdadeiro culpado cogite sair do colégio agora, visto que mesmo depois de ter matado alguém, o colégio reagiu da forma esperada.”
Com o áudio do relatório, Camil estava constantemente refletindo diferentes hipóteses de situação.
Ele planejava fazer uma exclusão de alunos até encontrar o espião, isso com base nas principais suposições: Era um colegial, um primeiranista em essência, com um passado forjado; este que evitaria sair do colégio para não atrair atenção, mas ainda sairia do quarto para encontrar o alvo — isso se baseando no fato de fingir ter matado o correto — ou nem sairia do quarto, acreditando que tinha eliminado o correto.
O que preocupava o Agente não era o fato de estar bem disfarçado entre todos os alunos, mas que fosse tão bom que passaria fingindo ser mais um dos alunos até terminar o colegial. Ou mesmo que fosse tão improvável que já tinha sido descartado.
Como foi uma missão entregue em segredo por Rafael, sabia que teria que dedicar tudo de si para descobrir. Todos os alvos que descartou foram revisados pelo menos 3 vezes, confirmando cada detalhe da família dos alunos.
“Esse espião teria um passado simplista ou exótico? Será que devo começar a considerar que o alvo tem a personalidade certa para o passado que foi informado…? Droga… Vou ter que madrugar outra vez.”
— Ei, Camil — Pablo tomou uma golada de café —, se encontrarmos esse espião, vai apenas passar a mensagem para o Rafael? — Seu rosto ficou sério.
O Oficial da Associação sabia onde o seu parceiro queria chegar.
— Desde quando eu tomo a última palavra nas nossas operações? Se ele nos colocou juntos, sabe muito bem o que devemos fazer.
— O moleque Jonas merecia pelo menos ser enterrado. Esse filho da puta vem até aqui, mata nosso colega e acha que pode ficar por isso.
Jonas era um recém-admitido na Associação, conhecendo Pablo e Camil de última hora para essa operação. Era um jovem com um futuro inteiro pela frente, tendo acabado de fazer 18 anos.
Pablo podia não gostar de mais novos, mas ainda era seu colega. Assim, quando viu que foi morto a sangue frio, sem chance de revidar, o Oficial esteve focado em encontrar o espião e devolver todo o ressentimento que sentia.
— Hmm…? — Camil levantou a sobrancelha, curioso.
— Qual parte do relatório você está? — Pablo sabia que seu colega estava escutando os documentos, logo foi direto ao ponto.
— É o bullying com uma garota. A mesma da semana passada… Quantas vezes já foram? Cinco só neste mês? — Ele apoiou o queixo na mão, pensando.
Pablo ativou o holograma do Nelink para ver os documentos e viu a parte que Camil estava citando.
— Ela é uma estrangeira, é normal que o pessoal pegue no pé. Fui eu que tirei essas fotos, aliás.
— Não é esse o ponto, Pablo. Não é muito estranho a quantidade de bullying e o colégio não fazer nada? O campus é cheio de câmeras, depois de cinco vezes alguma deve ter pego isso e já ter sido avisado na secretaria, mas ainda acontece…
Conhecendo bem o colega, o engravatado sabia que não era alguém que dava ponto sem nó. Se não fosse relevante para o caso, não teria sido citado.
— Você já não verificou todos os dados de alunos estrangeiros? Por que essa desconfiança agora?
— Sim, verifiquei e não estou desconfiando, só achando curioso as situações… Por exemplo, todos os cinco casos foram cometidos por pessoas diferentes. Como pode uma estrangeira ser odiada por todos?
Pablo pareceu surpreso e foi direto para os relatórios das outras semanas, notando que todos os implicantes que mexeram com a garota eram diferentes dos anteriores.
Camil semicerrou os olhos e finalizou: — Avise o Diretor Samuel, parece que teremos que observar mais de perto isso.
— Ha… Ha… Ha… — respirava pesado.
Nesse momento, sentado com as costas na parede fria do forte de rocha, um jovem tinha acabado de enfrentar outro Anômalo, que agora jazia queimado em sua frente.
— Foi a sua quinta morte agora, Leonardo. É hora de descansar, você não tem mais um pingo de Energia já.
O adolescente estava com o rosto para cima, com os olhos fechados, concentrado em retomar o fôlego e ignorar o cheiro de queimado da Anomalia em sua frente.
— Eu… Hah… Consigo… Hah… Na próxima…
— Lembre-se do que eu falei no terceiro Anômalo: Foque em um golpe. Esse golpe não pode depender da sorte nem do seu corpo, mas uma sequência de ações que Auct já te favoreceu antes.
— Ha… Eu entendo… mas é difícil. — Engoliu uma boa quantidade de saliva e continuou: — A Simulação ainda gera muitas variações… E essa água… É difícil de se mover. — Bateu no chão com a palma.
Leonardo estava em péssimo resultado. Suas roupas estavam cheias de rasgos e diversas partes do paletó foram cortadas. O cheiro que o jovem exalava era uma mistura de suor e sangue pútrido. Além de estar todo molhado por estar se jogando na água do chão.
— Sim. Eu sei das suas deficiências, contudo consigo ver a sua evolução na reação motora. Por mais que seu corpo não melhore, quanto mais Simula e se acostuma, melhor fica nas suas ações.
— Eu… estou melhorando? — Sua respiração estava rápida e sentia-se o tom de alívio em sua voz ao perguntar.
Rafael encarou o rosto sujo do garoto e deu um sorriso. — É óbvio. Aposto que você sabe disso também. Depois de tantas simulações, me pergunto quantas vezes já perdeu para esses Anômalos.
— Sete mil e oitocentas e nove vezes…
Os dois riram um pouco.
A aproximação que tiveram após o segundo Anômalo foi uma maneira de libertar o garoto de uma carga emocional que não estava preparado. Tanto que Rafael esteve poupando-o de ter que matar outra vez, para que absorvesse e lidasse com o sentimento de tirar uma vida.
Esse último Anômalo era o quinto que Leonardo teve que enfrentar, mas acabou sendo morto pelo Dragão Verde para evitar que o jovem fosse ferido. E essa era a segunda vez que descansavam.
Sendo um Grau D-, tinha pouquíssima capacidade de atividade usando o Auct.
Nessas pausas, o provecto aproveitou para lecionar e discutir estratégias que o menino fizesse melhor uso do Auct, mesmo tendo deficiências em suas ações.
O atual foco era polir um movimento que poderia tirar a vida de um Anômalo em um só golpe preciso e mortal.
— Leonardo, — chamou a atenção — o quanto você sabe sobre as Categorias? Principalmente sobre a sua. — O Dragão Verde se encostou na parede e perguntou.
Com essa pergunta, o adolescente de olheiras abriu os olhos para olhar nos olhos do Agente.
— Sei que existem seis. Que Singular é mais rara de todas, mas isso não significa algo bom. Tem também o Efeito de Harmonia e Rivalidade, as fases de crescimento e revoluções…
Percebendo que iria continuar sem parar, Rafael, surpreso, o interrompeu. Não tinha como estudar tudo isso apenas em um mês no colégio, então tinha que ter sido de pesquisas anteriores do rapaz.
Não eram informações secretas, já que todos adolescentes aprenderiam uma hora ou outra de seus pais, mas ainda havia detalhes que apenas verdadeiros Venantes poderiam repassar.
— Vamos aproveitar esse descanso para falar disso.
Nessa hora, Rafael tocou seu Nelink, ativando-o.
— Hã? Mas não devia funcionar aqui… — Assim que ia falar mais, lembrou que havia gravações feitas dentro de Portais.
Era de conhecimento comum que dentro de Portais qualquer tipo de energia proveniente da Terra não funcionava, exceto a cinética e a Energia dos Venantes e Anômalos.
No entanto, existia uma forma de energia nova, proveniente dos próprios Portais: Gemas, as mesmas que eram utilizadas nos testes de medição.
Lembrando-se das novas mecânicas desenvolvidas, Leonardo se deparou com um holograma do hexágono das Categorias de Auct.
— Vou te ensinar sobre a Singularidade e porque é tão diferente das outras Categorias.