Venante - Capítulo 23
Sendo um Venante experiente, o Dragão Verde analisou em voz baixa a criatura: — Uma Anomalia Mamífera de Grau D-… Talvez uma Soricomorfa. Parente dos Talphenics? — Seu conhecimento era tamanho que poderia tentar deduzir com apenas uma aparição o Grau de Energia e qual classe e ordem pertenceria.
Mesmo que isso pudesse dizer um pouco mais do Anômalo, não animou Leonardo, que logo deveria encarar aquilo.
Em passos devagar e mexendo a cabeça constantemente, o ser sem olhos parecia estar analisando os arredores de alguma forma.
O corpo desse Anômalo era como um homem adulto estivesse de quatro, só que era pelado, sem olhos, ouvidos, pelos e nariz, albino e seus membros dianteiros eram muito grossos, com algumas protuberâncias como espinhos sobre as mãos até os antebraços. Já as patas traseiras — também grossas — estavam em uma posição estranha, diferente de um animal quadrupede comum; assemelhava-se às patas de uma rã.
Para o jovem, olhar essa abominação era de dar frio na espinha. Não que nunca tivesse visto diversos monstro bizarros, mas encarar um frente a frente mexeu com ele.
“Eu vou ter que matar… isso?” pensou, sentindo seu estômago revirar. O cheiro do animal enrugado causava náuseas.
— Preste atenção, — advertiu Rafael — quando se mexer, ele vai atacar.
Leonardo engoliu em seco, assentiu e olhou para a poça d’água que tocava os pés. O líquido na fortaleza ficava mais profundo conforme se aproximava das escadas e as entradas, indicando que tinha alguma declive no solo.
Agarrou a adaga e a desembainhou. Uma energia fria percorreu seu corpo, fazendo-o se acalmar lentamente, como se o privasse das preocupações — até a respiração se tornou mais calma.
Quando notou que o menino não pretendia ativar o Auct, o Dragão Verde assistiu com cuidado, já que qualquer erro teria que ser corrigido por ele.
Apenas o som dos passos do Anômalo ecoava pelo ambiente. Os dois estavam quietos, pois o combate estava prestes a começar.
Conforme os espinhos de seus membros se mexiam, o monstro caminhava devagar pela área que a escama caiu.
“Ele está analisando o lugar?” O adolescente, agora calmo, assimilou as informações básicas.
Não muito depois de pensar isso, começou a caminhar em direção dos dois humanos, como se soubesse que algo estava ali. As pequenas ondas de água nas poças batiam em seus pés e se quebravam em menores, retornando para o caminho de origem.
Logo que a Anomalia ficou alguns passos de distância, o garoto respirou fundo e firmou o aperto na adaga.
Rafael analisou: “Leonardo não teve tempo para treinar nem mudar sua rotina, ele não vai ter chance de acertar esse Anômalo assim.” Estava claro o que aconteceria. No entanto, tentava entender por que o garoto não ativara o Auct ainda.
No momento que o pé direito se firmou no chão, dando o apoio para o avanço, uma pequena onda se formou na água.
Os espinhos do braço se moveram em direção do garoto.
Apesar que indicasse ter sido descoberto, Leonardo avançou com um pisão — o que levantou o líquido do chão para todo lado — de encontro com a criatura nojenta.
Com a adaga em sua frente, ele estava pronto para perfurar o monstro em uma estocada.
Seu coração já tinha sofrido o choque de ter sido descoberto com apenas um pequeno movimento, porém se acalmou rapidamente; já suspeitava que era a arma em sua mão dando essa clareza do momento.
Contudo, essa clareza não pôde combater a reação do inimigo.
Os olhos de Leonardo não acompanharam, mas foi como se alguns passos tivessem sido encurtados em um milissegundo, pois o Anômalo estava na frente do seu rosto, com uma boca enorme aberta, mostrando dentes grossos e tortos — era provável que metade da cabeça fosse arrancada com essa bocada. E uma baba verde e densa saiu dela, caindo sobre o rosto dele.
Só que, antes mesmo de pensar que iria morrer, a Anomalia sumiu de sua visão, restando apenas o barulho do crepitar e o cheiro de pele queimada no ar.
— Se eu não estivesse aqui, você teria morrido, Leonardo. — Uma voz grossa soou por trás do garoto. — Essa foi a sua primeira morte.
O adolescente, sentindo se arrepiar por inteiro, caiu de bunda no chão. Suas pernas pareciam ter perdido a força. Mesmo que voltasse a ter calma, a descrença da velocidade do Anômalo ainda foi chocante.
— Como…
— Eu já imaginava que aconteceria. Então, por que não ativou seu Auct?
Ele piscou algumas vezes, encarando o Anômalo caído — que agora mais parecia um pedaço de carvão — perto da parede, até entender a pergunta. Lembrou que o Dragão Verde não sabia do seu Auct, então foi natural perguntar sobre essa decisão.
— Eu… preciso ver pelo menos um movimento para conseguir simular.
Com um mês de práticas e testes, sabia muito mais do seu poder do que antes, porém ainda havia muitas coisas para descobrir e se melhorar.
— Simular? — Rafael, embora tivesse colocado alguém para vigiar o menino, não sabia muito do Auct. Esse era um dos motivos para não fazer as perguntas que queria no momento que o encontrou, esperando entrar no Portal para questionar. — É isso que você pode fazer? — Estendeu a mão para levantar o menino.
Leonardo aceitou e se levantou com a ajuda.
— Sim… — Limpou a baba da Anomalia do seu rosto.
— Mas, se não me engano, você simulou com perfeição aquela partida contra a jovem Veneditte.
Após ter sido salvo pelo Dragão Verde, um sentimento de confiança o tocou, permitindo contar mais sobre o Auct.
Não que ele não quisesse falar sobre seu Auct Singular, mas estava impossibilitado, pois sabia que era algo muito especial e raro. Todavia, agora poderia contar sobre seus testes e descobertas.
— Sr. Rafael, o meu Auct parece simular com o que sei ou penso. É difícil explicar… Mas, naquele dia contra a Charlotte, foi porque ativamos ao mesmo tempo e pude ver que era uma Invocadora… — Leonardo estava prestes a falar muito mais, já que passou um mês inteiro treinando; informação era o que não faltava.
— Um segundo. — Levantou a mão, interrompendo o menino. — Você consegue simular possibilidades, é isso? — Encarou sério.
Se o que o jovem estivesse afirmando era de fato a capacidade do Auct, então isso abria diversas portas de vantagens e desvantagens. Sendo o primeiro treino de Leonardo, era necessário conhecer o poder dele; porém, não era só o garoto que estava animado agora, o provecto ficou intrigado e ansioso para saber mais.
Logo, só restou esperar a resposta.
— Sim… — Leonardo estranhou o rosto sério de Rafael, mas logo adicionou: — Só que tem mais.
— Mais?
Ele começou a explicar dos testes que esteve praticando nos últimos tempos. Contou desde a disputa de Charlotte até anteontem — quando ele usou pela última vez para vencer um PVP no VR — descrevendo com mais precisão o que acontece dentro do mundo cinzento da simulação.
Leonardo agora tinha ideia mais precisa que existia uma complementação de informação. A Simulação não era regida de apenas fatos, mas de suspeitas ou ideias do subconsciente.
Por exemplo, se ele não tivesse visto os animais invocados de Charlotte, nem sequer poderia simular algo, já que as possibilidades eram infinitas. Na verdade, só simularia que a garota lutaria corpo a corpo, assim como aconteceu com o Semiboss Naga que lutou, que inicialmente não tinha poder algum.
Eram tantas possibilidades que parecia falhar a Simulação.
No entanto, se visse um movimento ou poder do oponente, então seria simulado algo mais fiel. Dessa forma, viria a complementação de informação. Como por exemplo a de Gustavo, que Leonardo viu que o bully poderia usar uma “Lâmina do Vento” com chute, mas não a usou na disputa inteira.
Isso fez o garoto de olheiras ficar pensativo sobre a resposta.
Chegou a conclusão através de testes simulando outros alunos que participaram das aulas de educação física… A complementação era a forma mais próxima de compatibilidade.
Charlotte dava sinais de mãos para comandar os animais invocados, assim como outros Invocadores famosos que Leonardo assistia vídeos. No entanto, no dia do combate, ela nem tinha feito um comando e ele já tinha simulado essa informação antes de existir. Ou seja, era a forma mais bruta de dar veracidade às possibilidades, baseado nas memórias ou no subconsciente dele.
Enquanto não visse todas capacidades da outra parte, a Simulação cuidaria do grosso da falta.
Não fazia ideia se isso seria um problema ou não, então, para evitar, decidiu sempre ver o primeiro golpe do oponente antes de simular, para não depender apenas do que imaginava.
Ainda que Leonardo tentasse conter a animação de poder falar do Auct, o resumo foi extenso e carregado de dados. Rafael sentiu até dor de cabeça, mas não conseguiu conter um pequeno sorriso de ver aquele jovem promissor em sua frente.
— Parece até que o Luiz está aqui — disse, olhando para os olhos do garoto.
Leonardo parou de falar, mostrando um rosto desanimado. — É…
O provecto percebeu que sua fala trouxe incômodo para o outro, então tocou no ombro e exclamou: — Bom, agora que sei mais do seu Auct, é hora de te ensinar como lidar com aquilo. — Apontou para o carvão em tamanho adulto caído na parede..
O jovem concordou. Enquanto estivesse com a adaga em mãos, sentia estar pronto para tudo.
— Antes de tudo, eu quero que você deixe de lado essa ideia de simular depois de um ataque.
— Mas…
— Escute antes — interrompeu e adicionou: —, como viu, se continuar a fazer isso, vai acabar morto, só porque não conseguiu acompanhar. Você pode até desviar de ataques dos seus colegas, mas, aqui, qualquer chance de sobrevivência é valiosa.
Leonardo pareceu ter notado algo que não tinha pensado antes. Estava tão confiante em descobrir através do primeiro ataque que esqueceu completamente a realidade dentro dos Portais.
— Ter o poder de presenciar infinitas possibilidades de padrões antes mesmo de iniciar a luta… Isso é algo que até eu desejaria, Leonardo. — Rafael não se privou de enaltecer. Por mais que isso pudesse formar uma autoestima arrogante no jovem no futuro, sabia que precisava desse tipo de apoio emocional.
Embora desejasse ser especial, sabia claramente seus limites e que ele não era tão incrível. Era tudo graças ao Auct, então sentiu um misto de emoções dentro de si.
O Dragão Verde não se importou muito, visto que era algo comum adolescentes se sentirem assim. Porém, logo olhou para a poça de água mais funda, próxima da escadaria; algumas ondulações se formavam.
— O Anômalo está perto. Esteja pronto.
Do lado esquerdo, vindo da passagem mais próxima da escadaria, outro Anômalo apareceu. Idêntico ao outro, apenas com alguns padrões diferentes nos espinhos dos braços.
Dessa vez, Leonardo nem sequer esperou o monstro aparecer por inteiro.
— Ativar.
Na visão de Rafael, foi como se o jovem tivesse parado. Os olhos dele estavam brilhantes, e a cada respiração a força da exalada ficava mais pesada.
O Anômalo saiu da passagem devagar, indo em direção do amigo morto.
Leonardo estava suando e com uma respiração pesada. Até a adaga em sua mão estava trêmula, não conseguindo segurar firme.
Após treze segundos, a pele do garoto pareceu estar mais pálida. O suor estava mais frequente. Com apenas uma olhada, o provecto sabia que estava ficando sem energia.
Leonardo não tinha mencionado a quantidade de tempo que poderia simular para Rafael, para não tomar mais tempo, mas a falta dessa informação fez a cabeça do Dragão Verde tomar a decisão de que se a Anomalia se aproximasse muito, mataria de imediato.
Após outro segundo, logo que a Anomalia estava vindo em direção, a mão que segurava a anoferramenta apertou firme o cabo mais outra vez. Os olhos brilhantes do garoto voltaram a cor castanho escuro.
— Sr. Rafael, vou tentar.
Antes de esperar a resposta, Leonardo segurou a gravata do uniforme e a cortou com a adaga. Nesse ato, sem sair do lugar, enrolou o tecido e jogou perto do Anômalo.
Quando tocou a poça, criando uma pequena ondulação, a criatura atacou o local, jogando água para cima por todo o lugar.
Sem perder a oportunidade de ter o oponente distraído e aproveitando que ele estava criando ondulações sozinho, avançou dessa vez segurando a adaga com a lâmina para baixo.
Ele podia não ter experiência de usar uma faca durante o combate, mas parecia ter mudado agora, o que fez Rafael se sentir surpreso pela mudança do estilo após a simulação.
Mesmo que ainda fosse lento, inexperiente na forma de se movimentar e estava claro o que faria, não foi como antes.
A anoferramenta foi de encontro à carne do Anômalo, perfurando o ombro esquerdo com facilidade. O instinto do monstro o fez girar o corpo e usar a pata direita para afastar quem o acertou.
Entretanto, Leonardo forçou seu corpo a se jogar para frente com força, em uma cambalhota, conforme seguia o movimento de virada do Anômalo. A adaga só saiu do corpo da criatura após atravessar do ombro até a lateral das costas dela.
A carne da criatura parecia papel na frente da lâmina. E o cheiro fétido do sangue roxo estava permeando o local agora. Diferente daquele que foi tostado por Rafael, esse conseguiu exalar todo odor possível.
Com adrenalina correndo pelo corpo, Leonardo sabia que conseguiu ferir muito, só que não era o suficiente para matar.
“Eu preciso cortar os espinhos ou…” relembrou da simulação, mas antes de ter chance de completar o pensamento, a criatura se lançou para ele.
Por ainda não ter se levantado da cambalhota, era impossível desviar da velocidade do Anômalo.
Porém, mais rápido do que o pulo do monstro, um pé se encaixou na barriga da fera, jogando-a para o lado durante o avanço. Foi tão forte que se contorcia no chão pela dor excruciante.
— Outra morte. — Rafael pegou o garoto pela gola do paletó e o levantou. — Mas foi muito melhor agora.
— Obri…
— Foco. Agora é a hora de finalizar.
Estava mais calmo dessa vez, sabendo que o Dragão Verde estava ali para ajudar. No entanto, sua mente estava focada na situação atual.
Ia fazer algo que sempre evitou de pensar.
Não era novidade Venantes lidarem com Anômalos, mas Leonardo era apenas um adolescente que iniciou sua vida colegial.
Ele não saía de casa, sua mãe vivia longe, seu pai tinha partido e seus amigos eram virtuais. Mesmo que fosse seu sonho ser um Venante, não gostava de imaginar isso.
Os relatos de primeiras raides estavam passando em sua mente desde que chegou no Portal.
“— Mesmo sendo sujo e angustiante, eu tive que fazer.”
“— Era a minha vida ou a dele. Eu escolhi a minha.”
“— Não temos como evitar, é pelo bem da humanidade.”
Lembrou do que falaram, mas era a vez dele agora.
A criatura estava trêmula, tentando se levantar, claramente com as costelas quebradas. Rafael, que ainda se controlou no chute, já tinha a ferido mortalmente. Só dependia de o garoto finalizá-la.
Ele respirou fundo, não sentindo medo daquela fera que podia matá-lo agora há pouco, mas pena e tristeza.
Cerrou os dentes e segurou a adaga com as duas mãos, pronto para defender e atacar.
No entanto, parecia que o destino estava predestinado a entregar uma cena degradante para os dois. Logo que o adolescente chegou perto, a força do Anômalo se esvaiu, caindo pesado no chão e respirando com dificuldade.
— Não solte a adaga, Leonardo. Não agora — disse Rafael por trás.
Anestesiado pela adrenalina e o caos de sua cabeça, Leonardo nem prestou atenção e, com todo o peso do corpo, cravou a adaga na garganta da Anomalia, fazendo um sangue borbulhante vazar do pescoço dela.
O cheiro forte atacou o nariz dele. Seus braços perderam a força no momento que perfurou a garganta e viu o corpo da criatura se contorcer, buscando uma forma de sobreviver.
Leonardo não aguentou e soltou a adaga presa no pescoço do Anômalo.
Contudo, assim que a soltou, pareceu que toda a calma e firmeza da sua mente haviam desaparecido. Sentiu tontura, enjoo e olhou para suas mãos cobertas de sangue fétido.
Não aguentou e caiu de joelhos no chão, vomitando o café da manhã sobre a poça d’água e sangue ao lado do cadáver que acabou de apunhalar.
Conforme as lágrimas se formavam em seus olhos, seu corpo tremia incontrolavelmente.
— Eu… matei… M-matei… — balbuciou com terror.