Venante - Capítulo 19
A quadra estava silenciosa agora. Gustavo tinha sido levado para a enfermaria do colégio, visto que ainda estava desacordado. Já Leonardo, após ser tratado por Danilo, foi direto ao seu assento de antes, mais calado do que nunca.
O professor olhou para os jovens ali, não tão sorridente como antes. Afinal, justo na primeira aula já tinha acontecido uma situação tão problemática.
— Gente… — Suspirou e continuou: — Parece que não entenderam ainda, né?
Não sabia por onde começar, afinal, esses adolescentes pareciam mais hostis com seus colegas do que com as Anomalias. Logo, era difícil passar uma mensagem para eles.
— Essa disputa não é para definir quem é mais forte e quem é mais capaz. — Cruzou os braços, balançando a cabeça em desaprovação. — Todos vocês serão futuros companheiros, querendo ou não.
— Mas Professor, o maluco falou do pai do cara! Não tem como ignorar isso! — gritou um aluno, não querendo aceitar as palavras do outro.
Em resposta, Danilo levantou a mão, pedindo para o garoto se acalmar e escutar o restante. — Não estou dizendo que será ignorado. Na verdade, o Gustavo não vai sair impune disso; já encaminhei uma denúncia para a diretoria, para que avisem aos pais dele das atitudes que demonstrou hoje. — Em seguida olhou sério para o garoto cabisbaixo. — Mas isso não significa que o outro lado também tem razão.
Leonardo levantou um pouco a cabeça, encarando o professor se referir a ele.
— Olha, eu não sou surdo e sei das coisas que foram ditas aqui. Mas, mesmo assim, Leonardo, você não deveria ter tentado continuar a bater nele. Acredito que tenha visto que já tinha terminado ali, não é mesmo?
Como se não se movesse direito, o garoto com olheiras apenas assentiu com dificuldade, ainda fora de si.
Charlotte o olhava, mas não conseguia ter a coragem de falar. Afinal, o que poderia dizer?
Já a Agatha, não parecia muito preocupada com a situação.
Danilo torceu os lábios, incomodado com a situação. Sabia muito bem que o adolescente tinha entendido o que fez, então não daria um aviso para a família dele também. Se Leonardo tivesse agido igual o bully, aí sim teria um bom motivo, podendo até mandá-lo para a diretoria.
Com isso dito, passou a refletir a respeito de como era difícil passar uma lição de moral para esses jovens que não entendiam como o mundo funcionava ainda.
Os Portais ainda existiam, Venantes morriam aos montes todos os anos e havia até casos de Rupturas acontecendo, mostrando que a humanidade ainda não conseguia suportar todos os Portais que condensavam.
Só depois que esses adolescentes participassem de uma raide que entenderiam a gravidade que a humanidade enfrentava, parando de pensar em si mesmos e começando a investir no companheirismo.
Diante dessa falta de experiência, o professor só conseguiu dizer: — Seguinte, eu vou continuar com as disputas, mas quero que vocês parem de pensar que isso é uma competição. — Ele enfatizou o “parem”, falando alto. — Ninguém vai ganhar nada vencendo aqui, nem sequer existe um ganhador nesse tipo de coisa.
No topo da arquibancada, um aluno loiro apertou as sobrancelhas ao ouvir esse tipo de resposta de Danilo. Na cabeça dele, era uma desculpa forçada, afinal, viu muito bem que ele poderia ter interrompido a disputa na hora que quisesse, mas preferiu deixar Leonardo ter a chance de revidar.
Se isso não era hipocrisia, o que seria?
Marcos detestou ouvir aquilo.
Enquanto isso, os pensamentos de Danilo estavam focados na informação que havia visto de Leonardo.
“Leonardo Matioz Klavic. Grau C-, com Grau de Energia em 971. Auct da Categoria Física… Classe Rara. Subclassificação da Amplificação, um Amplificador Sensorial.”
Esses dados estavam batendo em sua mente como um martelo. Primeiro de tudo, só a presença de Leonardo no colégio já era um caso raríssimo.
Ele sentia que tinha algo muito sigiloso por trás da matrícula do garoto.
Os professores tinham Nelinks especialmente feitos pelo colégio para que tivessem acesso completo ao aplicativo secundário da Marvente, que era por onde podiam ver os dados dos alunos e outras funções importantes. O aplicativo era encriptado por várias camadas para que nenhum aluno pudesse nem chegar perto. E a chave mais básica de acesso as funções primárias era ter esse Nelink especial.
Era por isso que Danilo conseguia usar o aparelho enquanto os alunos não.
Então, com isso em mente, as informações constadas o indicavam algo muito mais profundo, como se fosse uma mensagem indireta aos professores mais experientes.
Todos sabiam que uma das regras mais básicas para se estudar na Marvente era ter, no mínimo, Grau C. E eram raras as pessoas com Grau C que eram aceitas pela instituição.
Existiu os casos extremamente raros de Grau C- matriculados. No entanto, eram tão raros que só acontecera sete ocasiões disso em dez anos.
Não bastava apenas ser uma família influente, teria que ter contato próximo do diretor e ter um futuro promissor para ser admitido com um Grau tão inferior.
Dessa forma, só com os dados que Leonardo tinha disponível, o professor percebera que poderia ser uma informação manipulada pelo diretor Samuel.
Um Grau C- já era tão raro que em dez anos mal chegara em dez casos no colégio. E, acima de tudo, não existia cabimento que um simples Amplificador Sensorial ser Classe Rara com um Grau tão baixo.
“O diretor está escondendo a informação verdadeira com dados que apenas Venantes experientes e professores de longa data saberiam…” refletiu, enquanto encarava profundamente o jovem. “Esse garoto… É melhor eu não ficar muito próximo.”
De alguma forma, enquanto Danilo encarava Leonardo, um frio na espinha subiu pelo corpo do professor; como se alguém tivesse liberado uma aura assassina para ele.
Preocupado, olhou para os alunos, procurando pela fonte, mas tão rápida quanto surgiu, já tinha desparecido.
“Um… aviso?”
Após essa situação tensa, voltou a dar a aula, selecionando as próximas duplas para as disputas, para evitar maiores problemas.
No entanto, como teve que pedir a ajuda da enfermeira para tirar Gustavo, dar a lição de moral nos alunos e até interromper algumas pequenas brigas no meio, acabou que, no fim, a aula terminou sem ter todas as disputas entre os alunos. Nem Agatha e Charlotte participaram de uma disputa.
E a luta mais impressionante tinha sido a de Marcos contra Igor.
Foi tão impressionante que todos alunos ficaram boquiabertos, incluindo o cabisbaixo Leonardo.
Logo no início, Marcos avisou: — Vou te dar cinco segundos para desistir.
Porém, Igor parecia tão confiante quanto o oponente, recusando a proposta com um sorriso desafiador. Um parecia um valentão e o outro o típico esportista animado.
Assim que Danilo iniciou o embate, Igor usou o seu Auct.
A Energia parecia visível para todos quando ativou; de uma massa invisível para uma matéria acinzentada, forjando uma armadura em cima das roupas. Foi como mágica. E, além disso, um escudo e uma espada enormes surgiram flutuando em torno dele; só que com uma energia azul flutuando em volta dos equipamentos.
— Esse é o meu Auct! — bradou animado, movendo a espada flutuante em círculos. — Quero ver se vai continuar cantando vitória depois que te colocar no chão.
No entanto, a voz animada de Igor foi suprimida pela contagem de Marcos, que não parecia impressionado.
— … três…
O garoto avançou em passos pesados para cima do loiro.
— Quatro…
O enorme escudo se posicionou para frente de Igor, para protegê-lo, e a espada foi voando em direção do inimigo.
Claro, Igor sabia que se Marcos não fizesse nada, era provável que se machucasse de verdade, assim, estava prestando atenção constante no oponente para não cortar ele ao meio.
— Cinco. — Mostrou um olhar de nervoso, apertando as sobrancelhas e finalizou: — Chega então.
Assim que falou, a espada que estava vindo para cima dele mudou de direção, como se algo tivesse batido nela, fazendo-a voar para longe.
O que quer que tivesse batido na espada, a fez se enterrar fundo na parede contrária que estava indo, virando pó. E, para a surpresa de todos, ninguém conseguiu ver o objeto que a fez mudar de curso.
Marcos bufou, ignorando o choque de Igor. Dessa vez, diferente da espada que havia sido jogada para longe, o escudo do garoto foi prensado por uma força absurda, empurrando o metal de fora para dentro, fazendo uma barriga ser formada.
A força foi tão tamanha que, o quer que tenha colidido, lançou o escudo para trás, acertando o Igor, jogando-o para longe.
O loiro caminhou devagar para frente, se agachou e pareceu pegar algo no chão.
— Professor, já acabou. Ele não tem mais Energia para continuar — disse sem se importar muito e voltou para a arquibancada, ignorando o lesionado se contorcendo de dor no chão.
Danilo demorou um segundo para acordar da surpresa, mas logo foi socorrer o garoto machucado.
Todos ali pareceram entender o motivo do boato de não provocar Marcos.
Leonardo sentiu muita vontade de ativar a Simulação para entender o que aconteceu, mas tinha acabado tão rápido que perdera a chance. Se o loiro viesse buscando vingança pelo que fez com Gustavo, então era quase certo que perderia sem nem ter chance de esquivar.
Assim que aula finalizou, Leonardo recebeu uma mensagem no Nelink e foi chamado por alguns colegas para falar sobre a disputa contra Gustavo.
Eles enfatizavam o fato que foi bem merecido. Parecia que tiveram desentendimentos antes com o garoto, por isso gostaram que apanhou no final.
Em resposta, deu um singelo sorriso e começou a descer da arquibancada. Justo no piso da quadra, percebeu o brilho de algo e foi em direção.
Quando olhou mais de perto, percebeu que era uma pequena esfera de metal caída, menor do que um olho, riscada, como se algo afiado tivesse batido nela. Contudo, deixou de lado e não a pegou.
No caminho à sala de aula para o terceiro período, começou a ler a mensagem enviada para o Nelink, então acabou que nem percebeu que Charlotte estava o seguindo com Agatha.
Era basicamente uma mensagem do professor citando os problemas que notou na disputa do Leonardo, além de algumas críticas, também sugeriu alguns clubes para ele participar, para cobrir as falhas. Leonardo considerou que todos alunos que tiveram disputa receberam uma mensagem parecida, então ficou aliviado de ter realmente uma instrução.
Depois das três primeiras aulas, sendo a terceira uma aula de Biologia, era enfim o intervalo.
Leonardo se manteve quieto mesmo na última aula, refletindo sobre si mesmo. A loira tinha sentado do seu lado, mas nem havia falado algo, o que também o deixava incomodado internamente.
Por mais que não quisesse que as pessoas perguntassem o que estava pensando, ver alguém que queria muito saber não perguntar, era tão irritante quanto.
Ele queria ir para o dormitório e jogar o Ambição Real para afastar os pensamentos ruins, porém ainda tinha mais aulas para frequentar. Então, com um grande suspiro, para aliviar o sentimento ruim, disse: — Que tal irmos para o refeitório?
Charlotte, que demonstrava um rosto triste, ficou radiante, como se após mil anos de escuridão a luz do sol tivesse surgido para ela.
— Vamos!
Agatha no entanto disse: — Nah, vou procurar a Luca. Falou aí, Weirdo e Stalker. — Ela foi andando na frente, tirou dois fones de ouvido wireless do Nelink e os colocou, tocando um heavy metal que vazava das orelhas de tão alto.
Deixando os dois para trás, a loira sentiu o coração bater mais rápido, afinal, fazia tempo que não ficava sozinha com Leonardo.
— Eh… — Tentou falar algo, mas claramente não conseguia. — Leona…
Leonardo olhou para a cara dela, notando como era fácil ler ela, e disse com calma: — Leo tá bom. Não gosto de ficar ouvindo meu nome completo.
A menina pareceu ainda mais surpresa. Não esperava ver um ato tão gentil daquele que a provocava tanto. Contudo, além de felicidade, sabia que o outro estava em um momento muito pessoal para tal decisão. Não era do feitio dele.
— Certo… — Com dificuldade se acalmou e tentou reunir força para finalizar: — Leo… — No fim, deu um sorriso bobo, o que a deixava mais graciosa.
Esse gesto fez Leonardo lembrar de quão bonita era Charlotte. Ele não entendia porque a adolescente queria tanto a amizade dele, então decidiu tomar uma nota mental para refletir mais tarde sobre o que fez para conquistar a atenção dela.
Dessa forma, os dois foram direto para o refeitório.
No caminho, Leonardo recebeu olhares de alguns primeiranistas que andavam com outros grupos, como se estivessem falando dele.
Assim que chegaram no local, o garoto estava com menos fome que de costume, então pegou um rissole de frango e uma latinha de refrigerante para preencher o vazio.
Charlotte, vendo a escolha dele, mostrou uma cara estranha.
— Você… vai comer isso?
— Ué? Vai me proibir agora? — Leonardo mostrou uma cara de dúvida e logo voltou a atitude provocativa.
A garota bateu o pé, apertando a boca de raiva, mas soltou em seguida um sorriso também.
— Tá. Só fica quieto então e acha uma mesa para nós então — disse, indo pegar um café da manhã mais requintado.
Ele sentou-se à uma mesa mais ao canto e esperou o retorno da colega.
Para a sua surpresa, a garota voltou com uma bandeja contendo um croissant artesanal, uma compota de groselha, uma xícara de mocaccino e um pequeno cheesecake de frutas vermelhas.
Leonardo olhou para Charlotte e depois para bandeja, repetindo isso mais duas vezes.
— Que foi!? — perguntou ela, não aguentando mais o julgamento.
— Como… cabe isso tudo aí dentro?
A garota ficou vermelha de raiva, quase indo devolver os alimentos para a tia da cantina.
Nessa hora, como um fantasma, uma garota sentou ao lado da loira, causando surpresa nos dois.
— Cheguei, lindinhos! Atrapalhei o namoro? — Deu um grande sorriso para eles.
— Jú! — exclamou Charlotte, abraçando a amiga.
Até para Júlia foi surpreendente o abraço. Por mais que Charlotte tivesse ficado mais animada desde que soube que Leonardo estava matriculado, nunca demonstrou esse tipo de apego por ela.
No entanto, a loira falou baixinho no ouvido dela: — Obrigada… Eu não consigo ficar sozinha com ele assim…
Não era apego, era só que precisava de outra pessoa para ajudar com a ansiedade.
Mas isso não incomodou Júlia, na verdade sorriu relaxada, vendo que a sua amiga tinha esse lado também.
Depois desse reencontro, o papo das fofocas começou pela boca da garota.
— Gente! Vocês nem vão acreditar! — disse animada, parecia até ter gosto da notícia. — Aquele babaca do Gustavo levou suspensão! E melhor ainda, apanhou na aula para ficar na dele!
Ela riu alto. Parecia que não gostava mesmo do menino.
Só que isso fez Leonardo ficar tenso, já que a notícia tinha chegado até os ouvidos da maior fofoqueira que conhecia.
— Júlia… Você sabe de mais alguma coisa sobre isso? — O garoto com olheiras, preocupado que virasse motivo de fofoca, perguntou.
Charlotte pareceu entender a preocupação, então não falou de cara quem bateu no Gustavo.
— Não se sabe muito, já que aconteceu hoje. Mas tenho certeza que o Yuri vai ficar possesso quando souber que o priminho dele apanhou! Hahaha.
— Yuri? — Os dois mostraram curiosidade.
— É. É o primo do Gustavo. Não chega ser um babaca que nem o priminho dele, mas é um daqueles metidinhos a chefe de “gangue”. — Depois de dizer isso, Júlia voltou a rir sobre a situação, até lacrimando, mas, assim que viu a expressão dos dois colegas, ficou confusa. — Que cara é essa? Vai me dizer que vocês conhecem quem bateu no Gustavo?
Com essa pergunta, Charlotte explicou o que aconteceu para Júlia.
— O Leo?! — Ela abriu a boca, mas logo pareceu interligar os pontos e disse com a maior seriedade: — É… Foi bom te conhecer, Leo. Te vejo no outro mundo. — E fez um sinal da cruz no peito, fechando os olhos.
O garoto apoiou a testa na mão, massageando as têmporas. Ele não acreditava que tinha se metido em mais outro problema.
Com a refeição finalizada, o sinal tocou, alertando os adolescentes para voltarem à sala de aula, continuando suas vidas nesse campus.
Após um dia de aula, era enfim a hora de voltar para o dormitório. Leonardo sabia por Agatha que não encontrou a Luca no intervalo, o que fez os dois ficarem preocupados, então esperavam encontrar a morena no quarto.
Logo que abriram a porta para a sala de estar do quarto, foram atacados pelo abraço de Luca.
— Leonardo, Agatha! Saudades! — exclamou feliz, abraçando-os em conjunto.
Os dois puderam relaxar.
Assim que se soltou do abraço, Agatha deu uma olhada profunda na colega e perguntou séria: — What happened? Aonde você se meteu no recreio?
A morena pareceu ficar sem jeito, colocando os braços para trás e respondeu: — Estar andando… por aí.
Leonardo, assim como a Agatha, notou algo estranho na garota. Não era o jeito de agir, mas quando havia parado de abraçar, viu uma marca escura no braço dela, que podia ser facilmente escondida pela manga longa.
Agatha parecia incomodada com outra coisa. Entretanto, vendo que a outra não estava à vontade, deixou de lado.
Luca já tinha tirado o uniforme, e agora vestia um pijama felpudo, como se estivesse cansada do dia de aula, pronta para dormir.
Agatha foi direto para o banho, deixando Luca e Leonardo para conversarem sobre como foi o dia de aula.
Quando a gótica saiu do banheiro, Leonardo pôde enfim tomar um banho e relaxar. Já havia até pedido um novo conjunto de uniforme para a diretoria, visto que seu paletó tinha virado um trapo.
Ele tinha muito o que refletir e estar preparado para uma retaliação futura vinda do primo de Gustavo.
“Vou ter que virar noites jogando Ambição Real…” A confiança dele estava no aprendizado do Auct agora.
E, dessa forma, um mês e alguns dias se passaram rapidamente.
Era sexta de noite, quando alguém ligou para o Nelink de Leonardo.
Assim que atendeu no quarto, a figura de um provecto homem apareceu em sua frente.
— Leonardo, estou te ligando para avisar que este fim de semana você virá comigo para uma raide. Esteja preparado.