Venante - Capítulo 18
Após ser chamado de “cagãozinho”, Leonardo mostrou enfim uma expressão de indignação.
Era extremamente raro dele demonstrar tanta raiva. Durante a sua infância, quando Luiz ainda estava vivo, o garoto era muito mais agitado e inquieto — um traço herdado de sua mãe — mas, após perder o pai, trancou esse lado e começou uma jornada introspectiva.
Odiava ser interrompido de seus pensamentos ou puxado para algum problema. E Gustavo parecia que querer afogá-lo nisso. Só de pensar em ser forçado a lutar por algo tão pequeno, fazia o seu sangue ferver.
— Ativar — disse baixo e firme, encarando com olhos semicerrados o jovem à frente.
Ele não se considerava rebelde ou problemático, muito menos queria ficar brigando por besteiras. Estava ali porque se considerava maduro e sério, em busca de ser um Venante… então estava detestando a situação infantil em que foi imposto a entrar.
A Energia correu por seu cérebro, dando-lhe um tipo de choque por todo o corpo que, invés de ser desagradável, o fez se sentir mais leve.
A primeira coisa que viu foi Gustavo com as mãos se levantando. O sorriso dele entregava o quão divertido era pisar em outra pessoa.
Sem pensar duas vezes, criou um corpo para se movimentar na Simulação e usou o estático Gustavo para descontar a sua raiva. Por mais que parecesse que estava socando uma parede de concreto, continuou por um tempo, até que aliviasse um pouco da sua fúria. Tudo que mais desejava agora era dar um bom soco na cara dele para descontar toda a frustração que sentia.
Já bastava o bullying na chegada. Não precisava fazer ele ser o motivo de chacota por não querer aceitar uma disputa.
— E você ainda fala a merda do nome do seu Auct! — gritou Leonardo, bagunçando o cabelo.
Ele não acreditava que o bully pudesse ser tão burro ao ponto de falar algo tão importante. Era como se pedisse por um tapa na cara só para ver se percebia quão idiota foi.
— Lâmina de Ar… — repetiu com escárnio. — Ainda fala como se fosse grande coisa!
O adolescente estava incrédulo. Além de ser instintivo esquivar do ataque de ar, ainda o poupou do maior problema que poderia passar na Simulação: Tentar entender como o Auct dele funcionava.
“Ele se acha grande coisa com um Auct que precisa mirar e atirar? Não, não pode ser só isso” refletiu. Por mais que quisesse acreditar que Gustavo era um imbecil, não engoliria o fato de o Auct ser só isso. Nem a raiva e indignação o fizeram menos sensato. “Eu devo só ter visto o básico…”
Enquanto tomava notas, o espaço da Simulação distorceu, trocando de cenário, mais especificamente onde Charlotte e ele lutaram. Esse era um ótimo lugar para simular situações.
Leonardo olhou para a plateia que foi transportada junto para o espaço simulado, percebendo que, por mais que estivesse focado em uma pessoa ou mudasse de cenário, as pessoas no raio da Simulação poderiam seguir em qualquer cenário. Isso o fez tomar mais algumas reflexões de seu poder.
Nessa hora, desejou que as pessoas sumissem do campo, dando-lhe mais espaço para simular. E, como mágica, a plateia sumiu.
“Então, eu posso fazer isso também…” indagou, conforme voltava a atenção para o oponente.
Antes de criar diversas simulações, quis entender como seria ser atingido pelo ataque; se de fato a Lâmina de Ar podia decapitá-lo. Claro, se isso acontecesse na simulação, seria uma experiência horrível, mas poderia evitá-la na vida real.
Um Leonardo e um Gustavo surgiram na Simulação e se prepararam. Com o balanço do braço, uma Lâmina de Ar vertical se formou, atingindo o corpo inteiro dele.
O sentimento não foi de um acerto único que o derrubaria para trás ou uma faca que o cortaria pela metade, mas sim como ser atropelado e continuamente acertado. Quase como se um roda estivesse girando em alta velocidade em cima dele, empurrando-o sem parar. E, para piorar, havia um estouro de ar no final, como se fosse uma pequena bomba de vento, jogando-o para longe.
Sem dúvidas não era forte o suficiente para matar, mas a dor que causava poderia fazê-lo desmaiar. Além que parecia que seu corpo tinha sido aquecido até ficar queimado na região que foi atingido.
“Isso não tem nada a ver com uma lâmina…” Na cabeça dele, nem fazia sentido o nome dado por Gustavo. O Auct era muito específico e causava um grande dano em área, até poderia afastar muitas pessoas ao mesmo tempo.
Conhecendo melhor o efeito do ataque, decidiu que precisava pensar em algumas medidas de diminuir ou anular esse acerto contínuo.
“Não envolve impacto ou perfuração… E sim acertos para causar um dano por cansaço…?”
Não entendia muito bem a lógica do dano, visto que era muito ambíguo, mas conseguia imaginar algumas formas de buscar uma resposta.
Diversos Leonardos e Gustavos surgiram das linhas da Simulação. Ele separou metade para testar formas de deter o golpe e a outra metade para situações diferentes.
E, como se o Auct lesse a mente dele, algumas simulações mostraram peculiaridades.
“Hm?” Leonardo vivia em cada uma de suas simulações, então, assim que uma estranheza se apresentou, parou para entender. “A Simulação fez isso…?”
Alguns Gustavos estavam não apenas lançando as Lâminas de Ar pelas mãos, mas também dos pés, após lançarem um chute em arco.
— Ele pode fazer algo assim…? — A mente dele estava rodeando as Simulações paradas, conforme se questionava. — Ou é algo que eu… ou o meu subconsciente, imagina que possa fazer?
Nessa hora, parou para pensar na Charlotte e a Naga que lutou no Ambição Real. No primeiro caso, lembrou que a loira apresentou demora nas respostas de comando de suas Invocações, quando no mundo simulado era como se fosse capaz de responder na hora certa, ou o que ele presumia como hora certa.
Na segunda ocasião, se a Simulação mostrasse o que as pessoas realmente poderiam fazer, então por que a Naga não teve uma simulação mostrando todos os movimentos reais na primeira tentativa?
Já imaginava que a sua Simulação dependia de informação, então era impossível de ser simulado algo da cabeça de outra pessoa. Ele só retornou com essa curiosidade por conta de ser um outro ser humano, diferente do jogo VR. Então, só restava uma forma de sua Simulação entregar algo assim.
“Meu Auct está… complementando com outras informações da minha cabeça…?”
O sentimento de ter um poder tão misterioso e complexo o fazia ter desejo de explorá-lo ainda mais. Parecia que estava apenas arranhando a superfície de algo no escuro.
Continuou por um tempo até descobrir algumas informações do Auct e padrões que poderia se aproveitar.
E como não tinha tempo para ficar na Simulação, era hora de desativar após ver que o oponente estava terminando o próximo ataque, que parecia vir em direções diferentes.
— Desativar.
Dessa vez, sentia que Gustavo não era nem de longe tão perigoso quanto implicava.
Um ataque em forma de X estava sendo formado, então decidiu correr o mais rápido possível para escapar, forçando o outro a se preparar para interceptar.
Por mais que não tivesse gastado muito tempo na Simulação, sentia que poderia desviar, mesmo que porcamente, dos ataques óbvios.
Atualmente, Leonardo se questionava se deveria se aproximar ou deixar o combate terminar pelo tempo. Se seguisse o primeiro, teria que enfrentar uma árdua batalha, além de que poderia haver imprevistos que nem imaginava — isso se Gustavo tivesse mais cartas na manga.
Por mais que ainda estivesse com raiva e desejasse acabar com a implicância com essa disputa, o jovem de olhos cansados estava mais inclinado a deixar o tempo passar e apenas denunciar o bully para a diretoria.
O holograma do temporizador acima da quadra mostrava que faltava 1 minuto e 33 segundos.
Gustavo parecia mais ansioso conforme notava que seus ataques erravam o alvo. Até a confiança em longos ataques estava sendo afetada, diminuindo em muito a largura, mas aumentando a frequência.
Leonardo e ele estavam em uma luta constante de quem tinha mais energia; um que se alimentava porcamente e mal fazia exercícios, e que só de fazer rolamentos contínuos já era um sofrimento; o outro estava usando constantemente um Auct em área, que cobrava caro de sua Energia.
Ver aquele zé-ninguém desviando com confiança o fazia sentir mais enojado. E já estava faltando 1 minuto, fazendo-o questionar se precisaria se aproximar para acertá-lo de uma vez.
Em um surto de nervosismo e cansado das esquivadas e corridas de Leonardo, estendeu os braços horizontalmente e juntou uma grande quantidade de Energia para fazer duas longas Lâminas de Ar em diferentes alturas, para que acertasse de qualquer jeito.
A plateia bravejou alto vendo essa mudança. Charlotte estava arrancando as cutículas com os dentes, e Agatha encarava séria isso.
O poder das Lâminas de Ar se mostrou na dificuldade que moveu o braço, parecia como se estivesse que empurrar dois enormes pesos em suas mãos para completar as linhas.
Vendo o ataque impossível de fugir prestes a ser lançado, Leonardo empalideceu. Com a Simulação, sabia um jeito de minimizar o dano, mas não havia tempo para preparar isso agora.
Não era algo que ele não tinha simulado, mas sim que o poder havia assustado por um segundo, impedindo que raciocinasse direito.
“Ativ…” Ele nem sequer quis falar com a boca, com medo de não ter tempo. Contudo, as duas Lâminas de Ar já estavam próximas dele.
Instintivamente deu um salto para esquivar da lâmina de baixo e colocou o braço esquerdo em sua frente, e, com a outra mão, o segurou, como se fosse o escudo dele.
Um dos ataques passou por baixo da sola do sapato, mas o outro atingiu de frente contra o braço. A força foi tamanha que, mesmo em pleno ar, começo a empurrá-lo.
— Aaaaaa!
— Professor! — Muitos alunos gritaram para o professor interromper pela cena chocante e angustiante.
Seu braço parecia não ser capaz de enfrentar aquele golpe, quase tendo que colocá-lo na frente do peito, para que toda a força fosse distribuída pelo corpo. No entanto, Leonardo, por mais que tivesse soltado um longo grito de dor, continuou a segurar o golpe com tudo o que podia. Parecia que partiria o membro ao meio, e seu ombro estava sem força, prestes a deslocar do lugar.
Em seguida, o golpe estourou, lançando-o metade da quadra para trás, quase batendo na parede.
A arquibancada ficou em silêncio nessa hora. O jovem estava jogado no chão, com um dos braços tremendo muito.
Danilo olhou para aquela cena com olhos sérios, analisando se Gustavo faria algum movimento também; o qual não fez. No entanto, por mais que depois de um segundo os alunos voltassem a gritar para ele que interrompesse a disputa, apenas levantou um dos braços, pedindo para que se acalmassem. A curiosidade dele já tinha sido despertada, e, caso piorasse um pouco mais, interromperia.
Após outro segundo de pausa, Leonardo mostrou alguma reação, tentando erguer o corpo. A dor estava longe do que já havia sentido na vida. Mesmo na Simulação contra as feras de Charlotte não o causaram um sentimento assim. A ardência era real, como se o braço dele tivesse queimado e sem vida.
Diferente dos outros alunos, que tinham um Grau de Energia maior, a defesa natural de um D- era tão grossa quanto uma folha de papel frente aos ataques de Grau superior.
A dor se estendia até as costas, dando-lhe uma sensação de pressão baixa, como se seu coração estivesse dando tudo de si para mantê-lo vivo. A visão estava turva e com cores mais fortes. Uma forte dor de cabeça o atacou. Até os seus óculos tinham sido jogados para longe.
Do outro lado, o bully sentia um misto de raiva e satisfação. Estava feliz de poder acertá-lo, mas detestava o fato de não ter pedido desistência, como se quisesse ainda lutar.
Leonardo ouviu alguns passos sendo dados pelo oponente. Porém a sua mente estava concentrada em pensar se deveria continuar ou desistir ali.
Foi então que Gustavo falou entre arfadas: — É bom que fique no chão… — Seu rosto estava puro suor, por conta da Energia gasta no último ataque. — Igual o inútil do seu pai.
Sentia a necessidade de humilhar de toda forma uma pessoa que, de acordo com Gustavo, era inferior a ele. Um zé-ninguém que ousou desafiá-lo merecia todo tipo de humilhação, para nunca mais se sentir superior a ele.
— Como…? — Leonardo ficou sem palavras. Não sabia se Gustavo estava atacando o seu falecido pai por saber de algo ou apenas para insultá-lo gratuitamente.
Só que isso despertou um sentimento horrível dentro do jovem. Para ele, estava tudo bem provocá-lo, ser puxado para uma briga idiota ou até mesmo espancá-lo. Só que nunca permitiria que Luiz fosse insultado.
— É, aquele Venante inútil… — Expirou pesado e continuou: — Merece ser esquecido mesmo.
Ao ouvir isso, o garoto rangeu seus dentes com toda a força, sentindo seus ouvidos zunirem até não escutar mais o que o outro dizia, e fez com que o seu braço ainda útil o desse suporte suficiente para se erguer.
Com a manga do paletó do uniforme rasgada e o braço com uma longa marca de queimadura, o jovem ficou em pé, com as pernas trêmulas.
Gustavo engoliu em seco quando olhou o rosto dele. Não era a expressão que esperava de alguém que apanhou agora há pouco.
— Gustavo… Eu posso aceitar qualquer merda que fale para mim… — falou com um nó na garganta, enquanto tirava o paletó. — Pode me bater, pode me humilhar e me xingar… — Com a mão livre, começou a enrolar o paletó em volta do braço machucado, deixando-o como uma bola de tecido. — Mas não fale da minha família.
Os olhos dele transmitiam uma convicção nunca antes vista. Ninguém ali parecia reconhecer o ele de antes com o de agora. Não estava com apenas raiva, mas sim com um motivo para se provar. Agora, para Leonardo, essa briga infantil tinha aumentado de gravidade e estava no que determinava como “sério”.
A mente de um adolescente era simplista e qualquer situação que mexesse com o emocional mais profundo seria sua queda ou o motivo de se provar.
Leonardo criou uma imagem para si mesmo de quieto, calmo e sério. Essa era a visão que queria que todos tivessem dele; não o tratando como um jovem, e sim como adulto. Enterrando quem realmente era — não por vergonha, mas porque queria fugir de memórias ruins.
Memórias do seu animado pai falando alto sobre o dia que ativou o Auct pela primeira vez, teorizando que tipo de poder seu filho teria. Um espírito aventureiro e ansioso por novas descobertas, que agora já havia partido.
Aqueles dias foram enterrados em suas memórias.
Memórias da sua mãe desabada no chão do quarto, chorando ao lado da cama vazia. Uma mulher invencível, que o ensinou a enfrentar qualquer perigo, tendo que enfrentar a dor de perder quem mais amou em sua vida.
Esses momentos foram cravados em suas memórias.
Leonardo fugia de sua verdadeira personalidade pelo medo e trauma.
Agora, tendo que ouvir isso vindo de outra pessoa… Só havia um jeito que poderia reagir.
Ninguém tinha o direito de falar sobre Luiz. Ninguém tinha o direito de falar sobre o homem que o criou. O pai que amou e admirou. O marido que a sua mãe havia perdido…
O seu herói.
— E quem… é você para tentar me mandar? — Gustavo, ainda sentindo-se superior, voltou a se exibir. — Só desiste de uma vez…
Leonardo firmou os pés no chão, abaixando um pouco o corpo, preparando-se para avançar.
— Eu sou o filho dele — disse decidido. — E vou te fazer arrepender de ter falado do meu pai.
Gustavo já estava preparado, visto que estava óbvio que ele tentaria correr até ele.
— Desiste, porra! — Começou a lançar Lâminas de Ar pequenas em sequência para frente.
Ele não tinha mais energia para continuar a forçar um recuo do oponente, então tinha que desgastá-lo com mais ataques.
Mas se provou inútil. Leonardo estava usando o braço ferido para aparar os ataques, enquanto corria em direção do oponente.
Suas pernas estavam leves, mas sentia uma força inexplicável para continuar a correr. Seu braço ardia, mas com o ajuda do outro, conseguia mantê-lo para cima.
Os golpes caiam continuamente no paletó enrolado na mão dele, que conseguia absorver os golpes. Por mais que estivesse ficando quente e rompendo o tecido, o avanço não parou.
15 segundos restantes.
No entanto, para a surpresa de Leonardo, o bully pareceu cessar os ataques rápidos e decidiu concentrar em outro ataque com as duas mãos. O ataque foi formado verticalmente de baixo para cima, como um último ataque usando toda a reserva de Energia que tinha.
Sete passos para alcançá-lo.
Os braços de Gustavo pareciam ter dificuldade para formar o ataque, visto que não tinha mais Energia para executar, mas, quando prestes a lançar, notou que o outro jovem abaixou o braço com o paletó.
O coração dele parecia ter parado por um segundo. Um frio na espinha subiu, fazendo-o suar frio.
Havia entendido o que aconteceria…
Leonardo deu uma rolada pesada para o lado, esquivando desse último ataque.
O ataque que tinha gastado praticamente toda a Energia dele foi inútil.
Assim que sentiu que de fato estava numa situação horrível, gritou com raiva: — Você sabe quem eu sou?! Se me tocar, vai se arrepender!
No entanto, um soco pesado encaixou no meio do seu rosto, amassando o nariz empinado dele. Já sem Energia, seu corpo não aguentou o peso jogado no punho; apenas sentiu Leonardo desabar em cima dele, colocando o braço enrolado em tecidos sobre o pescoço.
Uma parte dos colegas gritavam animadas pela mudança repentina. O restante ficou quieto, como se não gostasse do que aconteceu.
Leonardo olhou o rosto machucado e o nariz sangrando de Gustavo, sentindo algo esquisito dentro de si.
Ele ergueu o punho trêmulo. — Vê se… — O nó na garganta e a vontade de chorar estava mais claro agora. — Para de falar tanta merda!
Outro soco, dessa vez não tão pesado, por não ter colocado todo o peso do corpo como antes. Contudo, Gustavo sentiu esse ser ainda mais forte que o anterior, nocauteando-o assim que caiu pesado na sua têmpora.
Quando ia dar mais um soco, a mão do Professor tocou o ombro do jovem, que tremia por inteiro, sem saber o que estava sentido.
— Leonardo… A disputa já terminou.