Venante - Capítulo 17
— O que você está fazendo? — A voz soou do lado de Agatha, fazendo-a virar a cabeça em direção da pessoa para olhar. No entanto, invés de alguma surpresa, a jovem mantinha a mesma expressão apática habitual.
Charlotte, que saíra de seu assento, estava inclinada para frente em seu lado, quase atrapalhando a visão da gótica sobre a quadra.
Com piscadelas lentas, a jovem replicou: — Nada. — E retornou a olhar para os dois garotos que disputariam. — E vai ficar em pé aí por quanto tempo, Stalker?
Foi então que a loira notou que os colegas ao lado e atrás das duas tiveram que se mover para continuar a ver Leonardo e Gustavo. Ela não era do tipo que se incomodava com olhares dos outros, mas odiava ser o motivo do incômodo.
Então, com toda a educação que lhe foi ensinada, pediu para o garoto ao lado de Agatha para trocar de lugar. Claro, cativado pela graciosidade da jovem, sem pensar duas vezes, levantou animado e a deixou sentar. Não era muito raro acontecer isso, mas os garotos normalmente sentiam que isso dava espaço para cobrar algo de volta dela, então não fazia isso se não fosse por algo que se importava.
— Então… — Com dificuldade, tentou continuar a conversar com a Agatha. — Você costuma falar sozinha? — Ela tentava dividir a atenção em olhar para a quadra e para a colega. — E não precisa me chamar de stalker… É só que…
Com uma revirada de olhos e uma bufada, Agatha a cortou. — Yeah, yeah. Tô ligada. Você só quer falar do teu boy. — Só nessa frase, Charlotte pulou de branca para três tons de vermelho em um segundo. — E, sim, eu gosto de falar comigo. Happy? — E finalizou com leve incômodo.
Na cabeça da gótica, a loira não era um tipo que faria amizade com ela, nem mesmo em outros mundos. Só de ver as conversas que puxou com Leonardo, já a fazia quase vomitar. Não porque viveram em criações diferentes, mas porque, na visão dela, Charlotte não sabia se expressar com o garoto, o que era ridículo.
Para ela, o mais importante de tudo era ser direto e sincero, então, todo aquele drama que ela fazia era algo que não suportava.
Já Leonardo, que havia apresentado uma para a outra no caminho, acabou que as fez criar entendimentos mútuos — seria muito difícil as duas serem amigas. Porém Charlotte parecia querer construir amizades, então aceitou isso como um desafio. Só que, ao ouvir a acusação de que tinha um “boy”, a fez quase perfurar o assento duro com as unhas de tanta força.
— Ehhh… — Charlotte abriu um sorriso trêmulo, olhando para o lado, com dificuldade de virar a cabeça. — Não… não era nada disso… Só… Sabe…
E, mais outra vez, foi interrompida pela gótica, sem deixar terminar o raciocínio: — E o que você vê naquele tarado? — Se virou para olhar nos olhos da outra.
— Tarado?! — A loira parecia prestes a quebrar, com os olhos escancarados, revezando o olhar em Leonardo e a colega do lado.
— Yeah. E do pior tipo. — Por mais que afirmasse isso do jovem, a expressão dela não tinha mudado nem um pouco. E, enquanto prosseguia no alerta à Charlotte, Agatha aproximava mais o rosto do ouvido dela. — E… você deveria é tomar cuidado quando estiver com ele. Quem sabe uma hora ele vai te…
— Vai me… — Uma das mãos dela estava apertando fortemente o assento, e a outra, trêmula, estava subindo até a boca.
Como um sussurro do vento frio atacando a pele, Charlotte foi atingida pela voz apática e baixinha no seu ouvido. — Comer.
A pobre garota tinha quebrado ao escutar isso. Estava olhando para o teto da quadra, como se tivesse perdido toda a energia. Foi tanta indecência que o cérebro não fora capaz de processar. Nem mesmo os documentários de biologia humana, que ela tinha estudado, transmitiam cenas tão obscenas.
Fingindo ter acontecido nada, Agatha voltou a olhar para a quadra. Entretanto, havia uma mínima mudança; um pequeno sorriso zombeteiro estava nascendo em seu rosto.
— But don’t worry, o Weirdo sabe se comportar.
De uma forma estranha, a amizade, que seria um desafio, agora parecia mais provável de se alcançar.
Enquanto isso, na partida, Leonardo sentiu pelo menos umas cinco vezes vontade de espirrar. Parecia que o Capeta que estava falando dele, declarando que era um dia de azar. Por sorte, aprendeu um jeito de impedir o espirro, que era apertar a parte de cima do lábio, abaixo do nariz. Foi um dos bizarros ensinamentos que o seu pai o passou enquanto vivo.
Os dois já estavam mais afastados, com Gustavo estalando os dedos e o pescoço, como se quisesse se mostrar.
Do lado oposto, Leonardo estava com os braços cruzados e a cabeça baixa. Após tantas práticas com a Simulação — o Auct dele — parecia ter causado alguma mudança na forma como via o mundo ao seu redor.
Por exemplo, neste momento, diferente do primeiro uso contra Charlotte, pensava em diversas situações… Se deveria ativar o Auct junto de Gustavo, para poder analisar cada pequeno movimento que teria até descobrir qual era o poder dele.
Ou como estava mais disposto a tentar: Ativar após ter algumas amostras de informação em tempo real para entender e preparar um contra-ataque possível.
No entanto, nas duas situações, se o bullying possuísse um Auct impossível de desviar, só restaria ser espancado de qualquer jeito. Além disso, a primeira opção poderia custar toda a Energia dele antes mesmo de descobrir qual era o Auct do adversário.
Leonardo tinha em mente que depender de sorte não era funcional em combates reais. Por mais que tivesse treinado em “Ambição Real” — o jogo VR — o sentimento de ter uma fera pulando em cima para matá-lo foi mais do que aterrorizante. A vida real não era como o mundo simulado dele, que poderia enfrentar diversas vezes a morte sem medo, mesmo sentindo as mesmas dores.
Como alguém que não costumava pensar muito em suas ações, ainda era algo novo. Então, quando ficou convicto da estratégia que tomaria, levantou a cabeça e encarou o oponente, que estava entrando em posição.
A pose de Gustavo era com um dos braços estendidos, com a mão aberta apontando para ele.
Danilo estava distante e, assim que viu os dois prontos, gritou: — Já!
A plateia bravejou junto, com todos alunos se levantando e gritando. Queriam ver os Aucts ativados. E um grande holograma de um temporizador se iniciou acima da quadra, mostrando que faltava 1 minuto e 59 segundos para terminar a partida.
— Ativar! — berrou Gustavo, com toda animação, sentindo arrepios com o apoio dos gritos.
A mão apontada para o adversário tremeu enquanto fazia um pequeno movimento para baixo.
Sem pensar duas vezes, Leonardo se atirou para o lado esquerdo, fazendo uma esquiva de última hora.
“Até parece!” pensou o jovem de olhos cansados, conforme se rolava no chão liso.
Para ele, era ridículo ficar de frente para onde seu oponente aponta. Era óbvio que apontar indicava que estava mirando o ataque nele de cara.
Um som alto ressoou pela quadra inteira, como se um carro freasse de última hora. Uma fumaça subia do chão, onde Leonardo tinha saído, como se o que tivesse acertado continuava a bater contra o solo.
“Eu não consegui ver direito…” Leonardo estava preocupado, pois teve que se esquivar na hora que ouviu o oponente ativar. “Ele lançou algo da mão, né!?”
O coração dele estava a mil, imaginando o que aconteceria se tivesse acertado em seu rosto. Possivelmente ficaria com uma marca de queimadura.
O jovem também tinha compreensão a diferença nos Graus, pois ele era o único Grau D- ali. Qualquer um que quisesse realmente machucá-lo de um modo grave poderia, sem nem dar chance dele se defender. Além disso, Gustavo estava apenas usando a Energia básica para lançar esse ataque, então era só para doer um pouco, e não o matar.
Os alunos bradavam para que Leonardo também ativasse o Auct e que não desviasse mais. Desejavam apenas que os dois disputassem da forma mais selvagem.
Assim, Gustavo fez um longo arco horizontal com a mão estendida para a frente, cobrindo a direção de Leonardo, que agora estava em pé e pronto para se esquivar de novo.
Dessa vez foi possível ver o que formava o Auct dele. Era como se o espaço distorcesse onde a mão de Gustavo passava, preso no lugar como uma gelatina ou cola sem gravidade. Seria mais difícil definir uma forma para o que se formava ali, mas de acordo com os movimentos dele, Leonardo só poderia supor:
“Ele tá prendendo uma área e jogando em mim?”
Assim que o bullying recuou a mão, uma rajada de ar atacou o rosto de Leonardo. Em resposta, imaginando como viria o ataque, abaixou-se rapidamente, sentindo alguns fios de cabelo sendo cortados.
O coração de Leonardo faltava só sair da boca agora. “Isso não ia arrancar a minha cabeça?!” A maioria dos alunos deu gargalhadas ao ver a expressão em choque dele, que até tinha ficado mais pálido do que de costume. Vaias também iniciaram a ser jogadas para cima de dele, chamando-o de “cagão”.
— Tá ouvindo, cagãozinho? Vai continuar só fugindo? Ou vai querer desistir de uma vez? — provocou Gustavo. Ele estava adorando brincar com Leonardo. Para ele, era até fácil demais. — As minhas Lâminas de Ar vão te ensinar nunca mais vir com aquela marra para cima de mim. — Finalizou com um grande sorriso.
Enquanto os dois prosseguiam com a disputa, Danilo estava verificando os dados dos alunos na quadra em seu Nelink. Tomou essa atitude após ver que Leonardo não tinha ativado seu Auct no momento que precisava, estranhando.
Seria um problema grande colocar dois alunos de Graus muito diferentes em um combate, principalmente na fase infantil do Auct. Então, seria bom ver se Gustavo e Leonardo poderiam ter uma experiência conjunta ou deveria parar.
Como o único na sala que deveria ter acesso ao Nelink, o professor foi no aplicativo do colégio e procurou a matrícula dos dois.
Primeiro encontrou a de Gustavo, que mais chamou atenção dele.
“Gustavo Ferreira…” Começou lendo o conteúdo em sua mente. “Grau de Energia em 1684… Um B-. Auct da Categoria Manipulação… Classe Incomum. Subclassificação dos Alquímicos, um Manipulador Alquímico Elementar. Elemento Ar.”
Uma sobrancelha de Danilo se levantou, bem interessado no conteúdo do jovem. Os Manipuladores eram muito comuns no mundo Venante, além de também serem os que tinham mais formas de se desenvolver e adaptar os seus estilos.
Era dito que, em uma equipe Venante, por mais que tivesse que ter a maioria das Categorias inclusas, se um time fosse formado inteiramente por Manipuladores, este seria capaz de completar as mesmas raides que as equipes formadas pela maioria das Categorias.
E isso não se devia ao fato de que a Categoria Manipulação era a melhor, mas porque era a mais comum da população manifestar. Eram tantos casos que a Associação tinha o dobro de dados sobre Manipuladores em comparação as outras Categorias; claro, tinha algumas que chegavam próximo dos Manipuladores, como os Físicos e os Transmorfos, mas ainda era muito distante.
Após analisar Gustavo, Danilo foi atrás da matrícula de Leonardo.
“Leonardo…” Assim que avistou o nome do aluno na lista, clicou. “Hã…?” Porém, no momento que acessou, se deparou com algo que não esperava.